Por: Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos | 19 Fevereiro 2018
Enquanto no Brasil os recursos públicos para ensino e pesquisa em universidades parecem minguar a cada semestre, no Chile, o congresso aprovou medida que assegura gratuidade universal no ensino superior. A matéria, aprovada no final de janeiro, faz parte de uma ampla reforma na educação, que está em discussão desde o início do segundo governo de Michelle Bachelet, em 2014. Até então, o governo financiava escolas privadas e as universidades públicas eram pagas, levando estudantes a contraírem financiamentos de bancos para cursar a faculdade. Esse sistema foi o estopim para a chamada “revolta dos pinguins” em 2006. Os “pinguins”, apelido de estudantes secundaristas chilenos em função de usarem terno e gravata como uniforme, foram às ruas e ocuparam escolas em todo o país, reivindicando gratuidade do ensino e também do transporte. Em 2011, houve outra onda de protestos. Essas ações, em parte, inspiraram as Jornadas de Junho de 2013 no Brasil.
O curioso é que essa notícia tem sido bem pouco comentada, como constata o professor Peter Schulz. Para ele, a decisão chilena poderia pautar um debate similar no Brasil, tencionando uma reflexão sobre o papel do Estado no ensino superior. “Os meios de comunicação deveriam dar espaço igual para notícias dos dois lados, tanto a relatórios que sugerem o fim da gratuidade do ensino superior público no Brasil, quanto a movimentos que levam à volta da gratuidade onde esse ensino é pago. Sem essa equidade não é possível o debate qualificado”, aponta, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Schulz reconhece que esse novo sistema de financiamento de ensino no Chile precisa ser mais bem estudado. Para ele, é mais um motivo para os brasileiros acompanharem bem de perto as discussões, tendo sempre em vista a sua realidade local. Isso porque, acredita o professor, há muitas semelhanças nos sistemas chileno e brasileiro. “Lá e cá, a maioria dos estudantes está no ensino superior privado”. Entretanto, reconhece que “as diferenças são enormes quanto ao financiamento, sistema de ingresso comum (que é diferente do uso do Enem por aqui) etc. Aproximarmo-nos do modelo chileno implicaria em problemas enormes”.
De qualquer forma, defende Schulz, o debate deve ser feito. Do contrário, a educação verá sempre seus recursos minguarem. “Congelamento de investimentos em educação e pesquisa significa que educação e pesquisa não são vistos como investimento e sim como custo. Assim é impossível pensar em um desenvolvimento do país como um todo de forma sustentável”, analisa. E não se pode só esperar as ações do Estado. “As universidades públicas (e privadas) precisam ser mais protagonistas na formação da opinião pública. Existe muita confusão ainda sobre o que é ensino superior, sua diversidade de cursos e objetivos destes, as diferenças internas entre as instituições do sistema de ensino, seus custos, sua importância”, dispara.
Peter Schulz | Foto: Unicamp
Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" - IFGW da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. É autor dos livros Einstein - muito além da relatividade (São Paulo: Instituto Sangari, 2010) e Encruzilhada da nanotecnologia - inovação, tecnologia e riscos (Rio de Janeiro: Vieira e Lent casa Editorial, 2009). Também foi curador da exposição Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade, no Museu de Arte Brasileira - FAAP, São Paulo, em 2010.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que significa, em termos de política institucional, a decisão do Chile de tornar o ensino 100% gratuito?
Peter Schulz – O que foi aprovado recentemente (final de janeiro) pelo congresso chileno foi a Lei de universidades estatais junto com uma reforma do ensino superior, que estabelece por lei a gratuidade. Esse projeto de lei foi levado ao congresso em 2016, após dez adiamentos e só votado agora no início de 2018. Ou seja, polêmicas e debates não faltaram. E não faltarão.
Quanto à gratuidade, hoje ela é para os 60% mais vulneráveis economicamente e a meta dos 100% é para 2020. O que se chama de gratuidade, tanto para as universidades públicas quanto privadas, é, no entanto, um pouco confuso para nós e está relacionado com mecanismos de subsídio e financiamento, negociado ano a ano. Agora seria garantido por lei com a meta da universalidade para 2020.
No meu artigo recente sobre o tema eu destaco que “entender um sistema de ensino em outro país não é tarefa rápida e simples” e que devemos acompanhar seus desdobramentos. Isso inclui entender melhor as diferenças entre o que é público e privado (no que se refere ao ensino superior) aqui e no Chile.
IHU On-Line – A decisão aprovada pelo Congresso chileno em 24 de janeiro não repercutiu e nem foi debatida no Brasil, diferentemente de quando o Banco Mundial sugeriu que o ensino fosse totalmente privatizado. Por que o silêncio?
Peter Schulz – Esse é de fato o tema principal do meu artigo. Os meios de comunicação deveriam dar espaço igual para notícias dos dois lados, tanto a relatórios que sugerem o fim da gratuidade do ensino superior público no Brasil, quanto a movimentos que levam a volta da gratuidade onde esse ensino é pago. Sem essa equidade não é possível o debate qualificado.
Essa qualificação também deve levar em conta as diferenças dos sistemas de ensino nos diferentes países. Os mecanismos do silêncio eu busco ilustrar com um exemplo sobre outro assunto analisado em profundidade por um pesquisador em uma universidade dos Estados Unidos, que evidencia como “nós não estamos vendo pontos de vista diferentes e sim mais do mesmo”.
IHU On-Line – Como é o modelo proposto pelo Chile? De onde virá o financiamento à educação e como se tornará sustentável?
Peter Schulz – Esse é um tema delicado, procurei chamar a atenção a uma notícia importante, mas as diferentes fontes da imprensa internacional não organizam os detalhes do modelo claramente. Em linhas gerais a implementação total, ou seja, gratuidade universal dependerá do desempenho econômico do país. Esse modelo não propõe, por exemplo, o fim das universidades privadas, mas mexe com o seu financiamento.
IHU On-Line – Qual a diferença entre as perspectivas neoliberais propostas pelo Banco Mundial, que sugerem, por exemplo, a experiência dos Estados Unidos e da Inglaterra, e o caso do Chile? Qual modelo parece ser mais adequado à realidade brasileira?
Peter Schulz – Nenhum deles é adequado à realidade brasileira. Nos Estados Unidos e Inglaterra, privado é privado e público é público, mas ambos são pagos. As anuidades de universidades públicas estadunidenses são menores do que as das privadas, mas os cortes do financiamento dos estados levam ao aumento das anuidades para cobrir os gastos das universidades públicas. Existem críticas e movimentos pela gratuidade, tanto nos EUA quanto na Inglaterra .
O caso chileno precisaria ser estudado em mais detalhe, quanto ao subsídio estatal às universidades privadas, a estrutura do sistema de ensino etc. Existem semelhanças entre o Chile e o Brasil. Lá e cá, a maioria dos estudantes está no ensino superior privado. Por outro lado, as diferenças são enormes quanto ao financiamento, sistema de ingresso comum (que é diferente do uso do Enem por aqui) etc. Aproximarmo-nos do modelo chileno implicaria em problemas enormes.
Pelo que se depreende da imprensa internacional, a gratuidade lá significa o financiamento das mensalidades e um mecanismo de perdão da dívida (tanto para as universidades públicas quanto privadas). Aqui as universidades públicas têm um alto grau de autonomia financeira, têm um orçamento próprio e não existem mensalidades por princípio. Não entendi bem, ainda, as implicações do que, nas palavras da presidente Michele Bachelet, significa que “A lei das universidades estatais aprovada hoje (24/01/2018) no congresso, que fortalece sua gestão institucional, devolve ao estado seu papel de protagonista ao assegurar uma educação superior pública de qualidade”.
IHU On-Line – Quais são os desafios, pensando no contexto brasileiro, de implementar uma proposta como a chilena de universalizar o acesso ao ensino superior de forma gratuita?
Peter Schulz – Significaria, pelo que foi noticiado sobre as mudanças no Chile, a universalização do Programa de Financiamento Estudantil, o Fies. Ou seja, o estado financiaria todos os estudantes das universidades privadas. Além disso, os estudantes não teriam que pagar nada de volta, depois de terminados os estudos. Vale lembrar, porém, que segundo matéria publicada pela Andes, as mudanças no Chile não seriam tão profundas assim, pois o paradigma atual continua mantido em grande parte (autonomia - ou falta de - das universidades, por exemplo) e aqui no Brasil a gratuidade das universidades públicas é princípio constitucional.
IHU On-Line – A admissão do Banco Mundial de que manipulou dados sobre a realidade chilena pode gerar que impactos na credibilidade de suas análises?
Peter Schulz – Tanto essa manipulação de dados sobre a competitividade do Chile, quanto o relatório “ajuste justo” aqui no Brasil, abalam profundamente sua credibilidade, mas volto a lembrar do estudo que eu menciono no artigo sobre as mudanças no ensino superior no Chile: “nós não estamos vendo pontos de vista diferentes e sim mais do mesmo”. Aqueles que querem ouvir exatamente o que certos organismos dizem, continuarão a dar crédito a eles.
IHU On-Line – É possível fazer prognósticos sobre a pesquisa e ensino superior no Brasil levando em conta o congelamento dos investimentos em educação pelos próximos 20 anos? Se sim, de que ordem seriam os prognósticos?
Peter Schulz – É um horizonte muito distante (20 anos) e que depende do desempenho da economia. Se o cenário atual se mantiver, meu prognóstico é de catástrofe. Mas existe uma questão de fundo maior: congelamento de investimentos em educação e pesquisa significa que educação e pesquisa não são vistos como investimento e sim como custo. Assim é impossível pensar em um desenvolvimento do país como um todo de forma sustentável.
IHU On-Line – Como estabelecer uma agenda de debate sobre o ensino superior no Brasil?
Peter Schulz – Acredito que as universidades públicas (e privadas) precisam ser mais protagonistas na formação da opinião pública. Existe muita confusão ainda sobre o que é ensino superior, sua diversidade de cursos e objetivos destes, as diferenças internas entre as instituições do sistema de ensino, seus custos, sua importância. Boa parte da população acredita que as universidades públicas também são pagas, por exemplo. A opinião pública talvez não tenha se dado conta ainda da importância da pós-graduação, a diferença entre strictu e lato senso. Quando se fala de pós-graduação, pensa-se muito em MBA e não em mestrado acadêmico ou doutorado. Sem falar que a maior parte dos programas de pós-graduação encontra-se nas universidades públicas e os MBAs nas instituições privadas.
Parte da opinião pública acredita que não se faz pesquisa em várias universidades privadas. Além disso, a ciência é considerada importante pela maioria da população, segundo pesquisas de percepção pública de ciência, mas essa população tem dificuldades de citar uma instituição que faça pesquisa . Como isso é possível? Bastaria citar uma das inúmeras universidades que realizam pesquisa. Em Campinas bastaria responder: Unicamp. Em São Leopoldo: Unisinos.
Não é culpa da população não ter essas informações e é responsabilidade das universidades divulgarem a relevância de seus papéis. Um ponto crucial é a transparência e consistência no atendimento à mídia. O reitor da Unicamp, Prof. Marcelo Knobel, por exemplo, tem esse ponto como princípio de gestão e é tarefa da Secretaria de Comunicação da universidade promover esse diálogo. Mas só isso não é suficiente, as universidades precisam formular projetos de informação ao público de forma mais sistemática e abrangente, um pouco na linha das iniciativas da Academia Brasileira de Ciências ou da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Um exemplo interessante, que poderia servir de inspiração, é o Lincoln Project da Academia Americana de Artes e Ciências, exatamente para divulgar a relevância das universidades públicas para o desenvolvimento econômico e social daquele país.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Peter Schulz – A pauta deve ter sido motivada pelo artigo que eu escrevi, cuja repercussão, um tanto surpreendente, evidencia a necessidade de aprofundar o debate sobre tema. Queria dar visibilidade a uma notícia, chamando a atenção a dois pontos: 1) o fim do ensino superior pago no Chile, e 2) o porquê do silêncio sobre isso. Acho que o fim do ensino pago despertou uma empatia muito maior e as armadilhas da informação ficaram em segundo plano. Descobri que o assunto sobre essas mudanças no Chile é bem complexo e espero que a minha contribuição motive outros a se aprofundarem mais sobre o tema como ele merece. Ao discutir as causas do silêncio eu chamo a atenção exatamente à necessidade de mais informação e de debate. Tenho recebido emails perguntando sobre imprecisões e uma ou outra ambiguidade que ficou no texto.
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Fim da faculdade paga no Chile e o papel do Estado no ensino superior no Brasil. Entrevista especial com Peter Schulz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU