Por: Cesar Sanson | 05 Abril 2016
A compra de serviços educacionais ofertados pelo setor privado por prefeituras, como a formação ou treinamento de professores e apostilas, vem crescendo no Brasil: em alguns casos, grupos empresariais chegam a, para todos efeitos práticos, assumir a orientação da política de educação do município, criando situações que violam aspectos importantes do direito à educação, como a adaptabilidade e a acessibilidade.
É o que diz estudo coordenado pela ONG Ação Educativa e desenvolvido com a participação do Grupo de Estudo e Pesquisas em Políticas Educacionais (GREPPE) da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, USP e Unesp, e realizado com apoio da Open Society Foundations e da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação.
A reportagem é de Carlos Orsi e publicado por Jornal da Unicamp, 01 de abril de 2016 a 10 de abril de 2016.
O relatório publicado sobre o assunto, intitulado “Sistemas de Ensino Privados na Educação Pública Brasileira: Consequências da Mercantilização para o Direito à Educação”, aponta que “a municipalização abrupta e mal planejada do ensino fundamental nas últimas duas décadas (...) explicitou a precariedade de muitas das administrações locais, gerando um promissor mercado para assessorias privadas nos campos pedagógico e de gestão”.
O texto prossegue notando que essa situação estimula uma “proliferação da lógica privada na educação pública e a incidência dos atores empresariais na gestão da política educacional”, o que se dá “em detrimento dos mecanismos de participação democrática e do fortalecimento de atores comprometidos com a estruturação de sistemas públicos de educação”.
O trabalho pode ser obtido, online, no site do Observatório da Educação, projeto da ONG Ação Educacional. Esse mesmo site traz também um mapa dos municípios onde se sabe que foram adotados sistemas privados de ensino na rede pública municipal: http://www.observatoriodaeducacao.org.br/mapas .
Expansão
A pesquisadora Theresa Adrião, da Faculdade de Educação, conta que grandes grupos educacionais privados, que já ofereciam conteúdo para cursinhos pré-vestibular e escolas de ensino médio, passaram a ver nos municípios – responsáveis pela educação infantil e fundamental – um novo mercado.
“Esses grupos encontraram mesmo um novo ‘filão’ para o seu mercado. Num determinado momento, expandiram seus sistemas, seus formatos de ensino padronizado, porque voltado para a preparação para vestibulares competitivos, para escolas privadas ‘franquiadas’”, disse. “Essa mesma lógica agora foi expandida para a rede pública”.
“Através da adoção dos sistemas privados padronizados enfatiza-se o planejamento centralizado dos aspectos pedagógicos, que são assim terceirizados para agentes privados de fora da rede de ensino local”, aponta, por sua vez, o relatório.
O trabalho chama ainda atenção para o fato de que é difícil levantar dados concretos sobre quantos municípios, exatamente, adotam esses sistemas, e quais são os sistemas usados em cada cidade. “É preciso ressaltar a dificuldade de acesso a informações sobre a adoção de sistemas privados de ensino pelos municípios brasileiros, uma vez que não existem dados consolidados pelas instâncias de governo em nível federal, e o país é dividido em 5.570 municipalidades”, explica o texto. “Tal configuração impossibilitaria, nos limites deste trabalho, uma checagem município a município. Ao mesmo tempo, os Tribunais de Contas de Estados e Municípios que, por analisar contratos dos entes federados com prestadores de serviços privados, poderiam ter dados mais abrangentes, em sua maioria não estão preparados para organizar e disponibilizar estas informações ao público”.
“Tivemos uma dificuldade muito grande, a despeito da Lei de Acesso à Informação (LAI), de obter informações, apesar de serem recursos públicos”, acrescentou Theresa. “As empresas, quando contatadas, não respondem, e as prefeituras, também não. A não ser aquelas com que já tínhamos algum tipo de contato no Estado de São Paulo. Tínhamos, numa pesquisa anterior feita em 2010, 345 municípios, que optaram por esse tipo de política, [o Estado de São Paulo conta com 645 municípios]. Ou seja, mais de 50% dos municípios paulistas já adotavam sistemas privados há seis anos”.
“O que se sabe hoje é que o avanço da lógica privada sobre o setor público afeta o direito humano à educação, tendendo a produzir, na maior parte dos casos, aumento das desigualdades educacionais, com maior prejuízo para as populações em situação de maior vulnerabilidade”, disse Gustavo Paiva, da ONG Ação Educativa e coautor do trabalho. “Neste contexto, o estudo se propôs a analisar quais são os impactos da adoção de sistemas privados de ensino para a realização do direito humano à educação. A conclusão é de que estes sistemas tendem a reduzir a disponibilidade de recursos, reduzir a capacidade do poder público de planejar e gerir seus sistemas educativos e reduzir a autonomia de professores, além de não haver garantia de melhoria na qualidade e o devido controle social”.
Recursos
Theresa lembra que o governo federal já mantém um Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) que oferece material gratuito para as redes municipais de ensino, o que faz com que parte dos gastos das prefeituras em material didático privado possa ser encarado como desperdício.
“E a gente tem um mercado que é disputado por grandes grupos, mas também por inúmeros outros pequenos grupos que veem nas redes públicas esse “filão’”, disse ela. “Ocorre que o recurso público destinado para a aquisição desse material, e acho que esse é um dos principais alertas desta pesquisa, é o mesmo que seria destinado para pagamento de professor, ou mesmo para construção de escolas. São gastos que concorrem entre si e, num período de escassez de recursos como o que estamos vendo hoje, isso é seríssimo”.
A pesquisadora relata que as prefeituras contatadas oferecem alguns argumentos, “com base na realidade objetiva”, para adotar dos sistemas privados. “As nossas escolas não oferecem a educação que seria necessária para os seus estudantes, têm muitos problemas, então há uma preocupação legítima, por parte dos gestores, em ofertar um ensino de qualidade para essas pessoas”, reconhece.
“Entretanto, para muitos gestores, a ideia de qualidade é aquela vendida por essas empresas, é uma qualidade que se baseia fundamentalmente numa padronização curricular”, afirma. “Então, a questão da padronização como condição para melhoria do ensino é a justificativa de alguns dos gestores”. Há casos, no entanto, em que a adoção desses sistemas é uma decisão política do prefeito e independe da posição de secretários ou gestores da área.
Serviços
As empresas, explica a pesquisadora, oferecem pacotes de serviços cuja composição varia com o interesse e a capacidade de pagamento das prefeituras. “Vão desde o material instrucional, as apostilas, que são padronizadas para todos, ignorando uma questão que para qualquer educador é fundamental, que é considerar objetivamente o grupo com o qual ele trabalha”, disse. “Depois, oferece-se formação ou qualificação para o uso desse material, e ao mesmo tempo um call-center para atender à escola, caso haja dúvida em como usar o material. O que entra no lugar da formação que deveria ser oferecida pelos gestores”.
“Também se vendem modelos de avaliação: avaliação das escolas, dos estudantes – sistemas de avaliação da própria empresa, para além dos testes de avaliação a que as escolas já são submetidas”, acrescentou Theresa. “E há cestas de serviços que incluem um tipo de supervisor na escola: vai um representante da empresa na escola ver se o professor está adotando o material segundo a orientação da empresa”.
“Verificamos que esse tipo de compra de serviço acaba incorrendo num problema grave que é substituição da política educativa dos municípios pela política educacional da empresa”, disse.
Custo e qualidade
A adoção desses sistemas pode representar uma queda de custos para as prefeituras, mas Theresa define o resultado como um “barateamento no mau sentido”. “Com isso, os governos na verdade não precisam investir na formação e na profissionalização de um corpo técnico para acompanhamento dessas escolas”, disse.
“No lugar de ter uma equipe de supervisores ou um núcleo de formadores na estrutura da secretaria, você compra isso e cada prefeito que muda, muda eventualmente o programa, muda a empresa”, aponta. “Já indagamos a alguns profissionais: tudo bem, a prefeitura não teria recurso para investir num corpo técnico, então por que não contatam as universidades públicas que, enfim, poderiam cumprir essa função?” Uma resposta possível, segundo a pesquisadora, é que “há uma sedução por parte dos grupos empresariais”. “Eles vão às prefeituras, oferecem muito fortemente esses produtos e serviços para os prefeitos e secretários e acabam envolvendo, muitas vezes, os gestores”.
Quanto à promessa de qualidade, argumento de venda oferecido pelas empresas com base no renome dos cursinhos pré-vestibular em que algumas se baseiam, ela nem sempre é cumprida, e é de difícil mensuração. “Uma das pesquisas anteriores que fizemos, lá no começo dos anos 2000, viu quais os municípios que essas empresas apresentavam como ponta de lança em suas ações de propaganda, municípios então bem colocados em rankings e indicadores nacionais de educação. Eram municípios com alto IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal). Portanto, já tinham condições, do ponto de vista educacional, de apresentar melhor qualidade que a média. Ou seja, tem um viés de seleção aí”.
Foto: Antoninho Perri.
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Relatório revela privatização da educação pública no país - Instituto Humanitas Unisinos - IHU