Por: Vitor Necchi | 27 Mai 2017
O professor Colby Dickinson, da Universidade Loyola de Chicago, nos Estados Unidos, proferiu a palestra A Glória enquanto arcano central do poder e os vínculos entre oikonomia, governo e gestão, na manhã da quarta-feira passada (24/5), encerrando o VI Colóquio Internacional IHU – Política, Economia e Teologia. Contribuições da obra de Giorgio Agamben, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Em sua fala, destacou que, para o filósofo italiano discutido no evento, o corpo é um exemplo primordial de resistência à assinatura teológica que é colocada sobre o sujeito.
Dickinson, que no dia anterior realizou outra palestra, intitulada Ser e Agir, Reino e Glória: a oikonomia trinitária e a bipolaridade da máquina governamental, fez referência a três autores para, em “conjunto uníssono e estranho”, propor uma “interpretação teológica específica que não se manifestou explicitamente dentro da maioria das explicações histórico-teológicas da relação do cristianismo com as formas econômicas”. Além de Agamben, mote da conferência, o professor tratou de Michel Henry e Jean-Yves Lacoste. “Poderia se dizer que a dívida implícita do cristianismo para com formas mitológicas de inclusão excludente resultara na perpétua rearticulação e justificação do emprego, por parte de Deus, da humanidade e da Igreja, de poder soberano em termos muito reais e mundanos”, afirmou.
De forma semelhante a Lacoste, Henry concebe uma forma de cristianismo que chama de vida absoluta, que busca uma equivalência genuína para além das formas econômicas. Uma equivalência que coloca o próximo num terreno precisamente igual à própria pessoa, produzindo com isso a verdade que se encontra debaixo de todas as formas de troca econômica, mas que nunca pode ser realmente representada por uma dada economia de símbolos ou representações e transações financeiras ou qualquer coisa semelhante. “Este é o impulso que sustenta o retorno à religião de Henry, como algumas pessoas o formularam, mas se aplica a muitos autores, se olharmos para a filosofia continental contemporânea. Esse impulso que dá um foco decididamente teológico ao trabalho fenomenológico de Henry”, comentou Dickinson.
O professor disse que se pode sugerir que Paulo também tinha aprendido imediatamente as identidades abstratas que sustentam relações econômicas: escravo/senhor, judeu/grego, homem/mulher e assim por diante. “Essas identidades são de alguma forma desfeitas pela pretensão cristã de passar além do domínio firme das formas econômicas, independentemente de essas economias serem simbólicas, financeiras, religiosas, literárias, políticas, sociais, culturais e assim por diante.” Para Dickinson, essa é a pretensão substancial que Henry deseja lançar com força filosófica sobre as forças políticas e econômicas do mundo, que deixaram de levar em conta, por tempo longo demais, uma perspectiva alternativa sobre a própria vida, que aqui ganha um sentido explicitamente teológico, ainda que talvez indeterminado e irrepresentável. “Essa é a preocupação de Henry com a vida absoluta, que ele extrai da tradição teológica e que tem uma forte semelhança à exposição de Agamben a respeito da forma da vida.”
Lacoste fez referência à experiência de se estar em casa no mundo como uma oikologia. Ele cunhou essa expressão, uma oikonomia misturada com logos, ou seja, uma oikologia, “uma interconexão íntima entre a oikonomia e a linguagem, que define a experiência humana de estar no mundo ou de ser no mundo, em um contexto heideggeriano”, detalhou Dickinson. “Esta expressão sugestiva não está muito longe da análise de Agamben a respeito do sacramento da linguagem, que é discernível dentro da economia que governa os assuntos humanos e replica os sujeitos como pessoas ou como seres humanos.” O professor ressaltou que, para Lacoste, em particular, “a única resistência possível a essa oikologia é uma resistência que pode ser localizada no que ele chama de redução litúrgica de nosso ser ou estar em casa no mundo”. Isso se trata de um procedimento explicitamente teológico que tem um paralelo na obra de Agamben.
Conforme Dickinson, as posições teológicas modernas expressas pela crítica de Agamben acerca do que ele chama de caráter biunívoco seguem a perspectiva de teologias feministas, queer e outras teologias contextuais “que articularam uma vasta crítica das formas heteronormativas e estritamente binárias, opressoras de gênero e de sexualidade, que são utilizadas para oprimir pessoas ou grupos minoritários”.
Citando Carl Schmitt, disse que todos os conceitos políticos da era moderna são basicamente conceitos teológicos secularizados. “Agamben resiste a essa cronologia, de que primeiro eram sagrados e depois se tornaram seculares. Em vez disso, pensa o contrário, como anterior ao momento em que as atividades humanas são simplesmente neutralizadas e tornadas inoperosas durante a festa – isso seria o ato de profanação.”
Há uma batalha política infindável entre o sagrado e o secular, sugere Dickinson, e isso às vezes é chamado de guerras culturais. Vamos ser sagrados ou totalmente seculares? – questiona, emendando que Agamben não quer nenhuma dessas duas opções. “Ele acha que encontrou a forma mais autêntica de interpretar o que Cristo estava fazendo quando rasga a cortina do templo e torna o santo dos santos profano. Isso não é uma coisa nova, é um ato muito antigo, mas é algo que nós ainda não entendemos.”
Dickinson afirma que são esses gestos religiosos de tentar ressacralizar algo que devem sofrer resistência, “pois eles tentam isolar, identificar ou criar o sujeito religioso”. O que restaria, conforme a crítica de Agamben desses atos falsamente religiosos de sacralização, “é a percepção de que um novo uso do corpo humano é possível para além de sua assinatura teológica, um uso que pode ser estranhamento identificado no mundo moderno”.
Essa noção de corpo é um exemplo primordial de como Agamben tenta resistir à assinatura teológica colocada sobre o sujeito. “Ele acha que, apontando para isso, pode começar a discutir ou ilustrar o que poderia ser a profanação do ser humano. Seria um corpo sem a assinatura teológica que é imposta.”
O primeiro exemplo que Agamben dá desses possíveis novos usos do corpo se encontra no livro A comunidade que vem, onde os processos capitalistas emergentes de reificação ou objetificação também são estranhamente libertadores, “na medida em que eles pelo menos removem, afastam a assinatura teológica que tinha sido colocada sobre o corpo”. Dickinson aponta que o corpo da mulher é um exemplo destacado da objetificação cultural. “O corpo feminino é de alguma forma, também, liberto no período moderno de sua escravização às assinaturas teológicas colocadas sobre ele, por exemplo, a virgindade ou ser uma mãe que reproduz.”
Esta libertação das assinaturas acontece no mesmo tempo em que o corpo feminino é sexualmente objetificado. “São afastados os ideais da virgindade e da maternidade, que são atribuídos a elas com uma certa leitura cristã teológica ocidental da mulher e de seu corpo, ao mesmo tempo em que sexualmente é objetificado.” Dickinson salienta que Agamben não diz muito mais sobre isso nesse contexto, mas sugere que os processos de reificação e objetificação de alguma forma libertam o corpo, ao mesmo tempo em que, talvez, o dominam em outros sentidos. “Trata-se de um sentido ambíguo do novo uso do corpo.”
O segundo exemplo que ajuda a esclarecer a trajetória do pensamento de Agamben sobre o corpo é disponibilizado através do surgimento de filmes pornográficos e dos corpos envolvidos neles, que introduzem, mais uma vez, um novo uso para o corpo, para além de sua assinatura teológica. Agamben retoma isso em vários contextos. “É um novo uso que de fato paraleliza o corpo glorioso e ressurreto que os teólogos, durante muito tempo, cogitaram como um corpo que existe para além do registro das funções corporais cotidianas.” O filósofo retoma isso em sua coletânea de ensaios chamada Nudez. “A falta de economias corporais vividas dentro do corpo glorificado só poderia espelhar o corpo das estrelas de filmes pornográficos, pois nem o corpo glorioso, nem o astro dos filmes pornográficos, se envolve nas necessidades básicas do cotidiano que o corpo precisa suprir em outras circunstâncias. Por exemplo: usar o banheiro, se alimentar – isso não acontece para os corpos gloriosos, nem nos filmes pornográficos. Eles não participam da economia do cotidiano”, afirma Dickinson.
Nos exemplos apresentados, testemunha-se um novo uso possível do corpo para além de sua assinatura teológica, “ao mesmo tempo em que sentimos certas limitações que nos mantêm distantes de realmente tornar nossas representações do corpo inoperosas”, explicou o professor, comentando que esses dois exemplos nos deixam de certa forma mesmerizados ou muito intrigados com eles, embora também causem um pouco de repulsa ao mesmo tempo. Dessa forma, questiona: “Será que é por isso que os cristãos têm se oposto tanto à pornografia?”.
Deixando de lado a questão da exploração das pessoas e, em particular, das mulheres, que é muito real, ele afirma que a simples imagem em si parece perturbadora. “Eu me pergunto por que e até que ponto ela é perturbadora, especialmente nos Estados Unidos, onde temos uma grande mentalidade puritana.” Neste contexto, questiona até que ponto a afronta ou o desafio da imagem pornográfica, ou da nudez que é afastada de um contexto cotidiano, apresenta o desafio de ter que pensar em um novo uso do corpo para além da sua assinatura teológica.
A pornografia é tão perturbadora para as pessoas cristãs – o grupo que mais a condena – porque justamente – e este é o aspecto que Agamben destaca – ela ataca a assinatura teológica normal que é dada ao uso do corpo. Parece falar de algo para além daquele uso, e por isso é perturbadora. “Também é secretamente aquilo que nós queremos, o corpo glorioso, que todos nós esperamos atingir algum dia, quando tudo que é imperfeito em relação aos nossos corpos seja tornado perfeito”, comenta. Isso é ancorado na característica geral da pornografia: “Vários corpos perfeitos realizando atos que nós desejaríamos fazer, mas não sabemos como expressar isso, então nos opomos”. Dickinson disse que se trata de um jogo muito complexo para os cristãos entenderem o que está em jogo na imagem pornográfica.
O terceiro exemplo, que vai além dos dois primeiros e tenta desenvolver algo mais positivo, surge no último volume da série Homo sacer, no livro O uso dos corpos, “onde a tarefa da contemplação proporciona outra perspectiva secundária, a partir da qual se pode ver a operação da desativação no tocante à assinatura teológica colocada sobre o corpo humano e assim também a sua possível libertação”.
Referindo-se a Plotino, Agamben procura ampliar a noção da vida como uma forma imediata de contemplação, tendo com isso “condições de conceber a contemplação como um paradigma para o uso, em vez de sua parceira complementar, que é a posse”. Para Dickinson, “nós temos condições de acessar algo como uma forma-de-vida através do ato tanto teológico, quanto filosófico, de contemplação, porque esse ato em particular nos restaura a nossa mais própria potencialidade”.
Agamben trata da contemplação como outra forma de inoperosidade, especificamente em relação a um novo uso do corpo para além de sua assinatura histórico-teológica. “Essa ideia de contemplação é mais do que apenas uma discussão da inoperosidade para o corpo, é na verdade um conceito político, e nós vimos isso em uma série de teóricos políticos, e até teóricos contemporâneos, que defendem dar um passo para trás da necessidade de práxis ou ação política, e contemplam um estado de contemplação”, comenta Dickinson. “Eles querem pensar em vez de agir.”
Para o professor, Agamben pretende fazer pelo corpo aquilo que Adorno e Žižek querem para o pensamento político: dar um passo para atrás, pensar e não colocar qualquer ideia pré-concebida de práxis ou de ação sobre os corpos ou seres que somos. Na sua leitura, esta conclamação ao pensamento como força de resistência talvez seja melhor ilustrada através da obra de Derrida, “cuja hesitação em se envolver em qualquer forma direta de política foi frequentemente uma fonte de desincentivo para as pessoas mais inclinadas à práxis política, especialmente por parte dos teóricos marxistas”.
“O que está claro é que o único novo uso possível do corpo humano é disponibilizado através da desativação do corpo antigo, o corpo que nós achávamos que possuíamos”, propõe Dickinson. “Em certo sentido, isso talvez seja parecido com a insistência de Derrida de que o ato desconstrutivo é possível somente a partir de dentro de uma estrutura ou identidade pré-existente, e não do lado de fora dela.”
Para ilustrar sua fala, Dickinson contou duas histórias do seu filho. Quando moravam na Bélgica, a criança tinha em torno de quatro anos. Estavam em um restaurante, em uma festa de aniversário. O garoto não identificou o gênero de um adulto que entrou no banheiro e indagou se era homem ou mulher. “E eu, sendo um professor universitário liberal muito sensível a essa questão, respondi: Que importância tem isso?”. Dickinson ficou pensando por que era tão importante categorizar e rotular o indivíduo. “Por que não deixamos a pessoa ser um ser qualquer? Meu filho foi taxativo: precisava saber quem é. Homem ou mulher? É a necessidade da assinatura que é colocada sobre o corpo. Precisava entender a forma pela qual o corpo era representado”, explicou.
O palestrante compartilhou a outra história envolvendo o filho. O menino estava no playground da escola quando fez referência a um amigo proveniente do Tibet, usando palavras do gênero feminino. “Fiquei confuso, porque sabia que se tratava de um menino. Então disse: é um menino ou menina?”. Por conta da tradição tibetana, a criança tinha cabelo comprido e furos nas orelhas. “Meu filho disse: não interessa, tanto faz, é meu amigo.” Dickinson comentou: “Não interessava a categorização do corpo, podia deixar isso de lado, mas, em um ambiente estranho, como no restaurante, ele precisava saber”. Retomando o pensamento do filósofo italiano, o professor completou: “O que Agamben quer para este novo uso do corpo é algo como aquilo que meu filho tinha em relação ao amigo ou a amiga dele”. O uso do corpo é definido por Agamben como uma forma de intimidade sem relações pré-estabelecidas.
Dickinson, citando Derrida, disse que ele insiste que não há nada fora do texto, das representações com as quais se trabalha. “Derrida não pode cogitar, em certo sentido, a nudez como uma possibilidade real.” Agamben, por sua vez, quer dizer que existe uma nudez real: “Nós é que temos dificuldade de falar sobre ela e de vê-la. Nós usamos roupas e sabemos que a apresentação real está debaixo da roupa, mas não sabemos como falar sobre isso. Na verdade, isso nos desconcerta”.
Prosseguiu afirmando que se sabe que a nudez é real, ela existe, “mas não sabemos como colocá-la em uma forma simbólica e econômica, e é por isso que recorremos à pornografia”. Para Derrida, existem somente as roupas; para Agamben, existe a nudez, mas não se sabe lidar com ela. O âmbito teológico, diz Agamben, conclama que se preste atenção a essa nudez. “Para mim, neste contexto, a grande figura é o corpo de Cristo, que é crucificado nu, mas colocam um pano em cima dele”. Para Dickinson, colocar roupa sobre Cristo indica uma percepção profunda: “Não sabemos lidar com a coisa em si, a nudez de Cristo ou de uma pessoa, a vulnerabilidade, a precariedade, a fragilidade de uma pessoa. Ela está lá, existe, mas não sabemos como lidar. E Agamben está dizendo que precisamos aprender a lidar com ela”.
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