18 Março 2015
"Eu jamais ia estuprar você porque você não merece." As palavras do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), em pleno salão verde da Câmara dos Deputados, a sua par Maria do Rosário (PT-RS), chocaram ao menos uma grande parte da sociedade brasileira no fim de dezembro. Ocorrer a cena dentro da Casa das Leis é um agravante, o cúmulo exato do oposto à organização da sociedade em regras para garantir a sobrevivência e a constituição da comunidade, isto é, impedir a tese hobesiana do "todos contra todos".
A reportagem é de Jorge Felix, publicada pelo jornal Valor, 17-03-2015.
Como um parlamentar, em nome da causa de alguns, mesmo do direito de uns, extirpa o direito de outros? Apodera-se de um direito, jamais lhe conferido pela sociedade - de estuprar, no caso -, fabricando um ser sem direito, ou seja, a mulher estuprável. Esse é um exemplo para ajudar a entender o objeto de estudo do filósofo italiano Giorgio Agamben, cada vez mais presente na academia brasileira, com a tradução em série de suas obras pela Boitempo.
Aos 72 anos, Agamben é o maior pensador contemporâneo do conceito do "homo sacer" - talvez o principal produto social do capitalismo e da geopolítica do século XXI. O termo, que tem origem no direito romano, diz respeito ao indivíduo que, mesmo vivendo em uma sociedade organizada sob regras, leis, pactos, é condenado por esse mesmo sistema social - em nome de alguma causa política, econômica ou religiosa - a viver à margem dessas regras, ou melhor, sem a proteção desse conchavo social. É um ser, portanto, "matável" por qualquer um sem risco de punição, sem que o crime seja visto como tal. De acordo com o raciocínio de Agamben, o "homo sacer" foi escravo em Roma, mas no século XXI vive nas prisões clandestinas, nas sessões de tortura para obtenção de informações pelos organismos de Estado, em Guantánamo, por exemplo; ou nas favelas sob o jugo de milícias. Quem sabe como imigrantes em porões de fábricas ilegais trabalhando sem nenhuma proteção social?
Aluno de Martin Heidegger (1889-1976), estabelecendo um diálogo intelectual com Hannah Arendt (1906-1975) e Walter Benjamim (1892-1940), Agamben impôs para si um trabalho arqueológico para construção de seu conceito que o levou à conclusão de que a fabricação do "homo sacer" resulta em um Estado de exceção como um "novo normal" da sociedade contemporânea em convivência hipócrita com o Estado de direito.
Agamben busca a origem do "homo sacer" dentro da teologia e, em seus livros anteriores (sobretudo "O Reino e a Glória"), explica o grau teológico do Estado moderno que, segundo ele, mesclou conceitos cristãos com os políticos. Em "Altíssima Pobreza" (157 páginas), o autor empreende uma erudita investigação sobre as regras monásticas, para ele, a matriz das regulações da vida, dos valores, do comportamento, dos costumes cotidianos e dos hábitos (ou habitus para Michel Foucault, com que Agamben trava esse debate).
A preocupação do filósofo está em pesquisar a raiz religiosa das regras e como, ao estabelecê-las, a preocupação central era "governar a vida e os costumes dos homens, tanto individual quanto coletivamente". Essa construção de "uma forma-de-vida" comum nos mosteiros (o cenóbio) influenciou o direito, o Estado moderno e implicou ceder direitos. Essa abnegação começa com a forma vivendi franciscana, a altíssima paupertas (altíssima pobreza) - o caminho para a perfeição - e tem seu extremo na pós-modernidade no ser "sacer" (de sacerdócio, sagrado, em sua origem). Este, porém, tem sua pobreza de direitos imposta e sucumbe no limiar entre a vida e a morte. Retorna, assim, à condição arendtiana da "vida nua" em oposição à almejada "vida boa" na pólis harmônica uma vez prometida pela ação política.
Ao passo que a sociedade testemunha acontecimentos como o bate-boca entre Bolsonaro e Mária do Rosário ou o massacre na redação do jornal "Charlie Hebdo" ou o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza, supostamente sequestrado por policiais no Rio, os livros do filósofo italiano e suas reflexões sobre o Estado moderno mostram-se obrigatórios para clarear e impedir que a névoa do totalitarismo, dos sentimentos antissemitas ou os argumentos de botequim dificultem uma visão mais transparente da organização política na sociedade contemporânea. É bom lembrar que Agamben é também um militante dos direitos humanos e pediu demissão da universidade onde lecionava nos Estados Unidos depois da reação de George W. Bush ao 11 de Setembro, o qual considerou um retorno ao Estado de exceção.
Seu alvo é mostrar que o poder soberano, mesmo aquele que é inquilino da Casa das Leis, contém em seu âmago um elemento ditatorial e a possibilidade de instaurar todos os tipos de violência sob a justificativa de estar em defesa das regras e das leis. Não é uma preocupação nova na filosofia. Mas a pesquisa de Agamben, sem dúvida, enriquece o debate com reflexões sofisticadas e baseadas em literatura sólida.
A Boitempo já publicou sete títulos de Aganbem e também acaba de editar "Pilatos e Jesus", em parceria com a editora da UFSC. O livro discute o encontro irreconciliável entre Pilatos e Jesus, um encontro do "mundo dos fatos" e o "mundo da verdade".
Neste mês, Boitempo lançará "O Mistério do Mal" e ainda programa outras três novas traduções.
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As traduções em série do filósofo Giorgio Agamben - Instituto Humanitas Unisinos - IHU