Por: João Flores da Cunha | 26 Mai 2017
A influência da religião na estrutura de poder moderna e a necessidade de resgate, pelo cristianismo, de um tempo messiânico, a partir da obra de Giorgio Agamben. Esse foi o centro da palestra de Alain Gignac, professor de Teologia e Ciências da Religião da Universidade de Montreal (Canadá), em 24-5 no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Intitulada A função angelológica do ministerium e do mysterium e sua relação com a teoria do poder, sua fala fez parte do VI Colóquio Internacional IHU – Política, economia, teologia. Contribuições da obra de Giorgio Agamben, que ocorreu nos dias 23 e 24 de maio na Unisinos.
A obra de Agamben mais explorada por Gignac em sua fala foi O Reino e a Glória. Gignac assinalou que Agamben faz teologia, e “muito bem”. Ele se usa da teologia para fazer filosofia, segundo o pesquisador. Gignac buscou explicar como, em Agamben, “a angelologia serve para decifrar o impasse do governo moderno”.
Influenciado pelo teólogo alemão Erik Peterson, Agamben tem uma visão crítica de Pseudo-Dionísio, tratado por ele como um “mistificador”. Esse buscou fazer “da hierarquia angélica o modelo e por consequência a legitimação da hierarquia eclesiástica”, disse Gignac.
O pesquisador afirmou que “Agamben me fez descobrir uma acepção da palavra hierarquia, a partir de sua etimologia, um significado tão evidente que a gente esquece: hiera – archie significa ‘poder sagrado’. É o que faz Pseudo-Dionísio, e é o que Agamben lhe reprocha: ele sacraliza o poder. O poder se torna sagrado”.
“Pseudo-Dionísio fala menos de anjos que de humanos. Quando ele fala de anjos, ele descreve na verdade os humanos, e quando ele fala de humanos, ele lhes atribui características ‘angelomórficas’”, disse Gignac, valendo-se de um neologismo. Nesse sentido, “os anjos justificam o poder do governo”, notou o pesquisador.
“Segundo Agamben, antes mesmo de o Estado moderno inventá-lo, o governo burocrático encontra sua assinatura na organização angélica”, destacou Gignac. Isso tem reflexos na forma como, por exemplo, a economia opera na sociedade atual, segundo o pesquisador. “O sistema tem necessidade de um mistério, de uma aura mística, para funcionar”, assinalou Gignac.
Nesse sentido, a economia moderna tem a necessidade de um mistério para sobreviver. O funcionamento de suas operações é misterioso, de acordo com o professor: a alta e a queda das ações na Bolsa de Valores são um mistério. “A economia não é uma ciência matemática, mas uma filosofia que diz que o mercado funciona”, afirmou Gignac.
Ele se referiu ao “caráter sagrado das leis do mercado” como uma “verdadeira crença quase-religiosa erigida em axioma do capitalismo”. Nesse sistema, dá-se como evidente, resultado desse axioma, que bens são mais importantes que pessoas, e que a livre circulação de mercadorias é mais importante do que a ecologia – ou seja, não importa que os produtos consumidos no Ocidente provenham do outro lado do mundo, tampouco o custo ambiental desse deslocamento.
Alain Gignac (Foto: João Flores da Cunha)
Há uma passagem da Primeira Epístola aos Coríntios, na qual, conforme Gignac destacou, Agamben propõe uma tradução diferente de um termo presente no grego original, substituindo destruir – a tradução usual – por desativar: “Então virá o fim, quando ele entregar o Reino a Deus, o Pai, depois de ter desativado todo domínio, autoridade e poder”.
Para o pesquisador, “nessa passagem, os domínios, autoridades e poderes são os anjos. É dessa maneira que é desarmado (como se desarma uma bomba) o câncer biopolítico que corrói o governo humano”. Agamben assinala que, de acordo com Paulo, “o tempo messiânico se caracterizará pela desativação do ministério dos anjos (e, portanto, do governo biopolítico que é o seu reflexo caricatural e desviante”.
Para Agamben, “o messianismo paulino deve ser visto nessa perspectiva. Funciona como corretivo da hipertrofia demoníaca dos poderes angélicos e humanos. O messias desativa e torna inoperosos tanto a lei quanto os anjos e, dessa maneira, reconcilia-os com Deus”. Assim, é preciso desativar o governo, que é demoníaco – disso se trataria o messianismo do apóstolo Paulo, na visão de Agamben.
Gignac se referiu a uma fala de Agamben que ocorreu na Catedral de Notre-Dame, em Paris, em 2009, na qual o pensador se dirigiu aos cristãos (leia aqui o texto, em português; assista aqui à conferência, em francês).
“Ele resume muito bem seu pensamento político” nessa fala, disse Gignac. “É quase compreensível”, brincou. Ali, trata-se de Agamben, um agnóstico, dizendo: “eu tenho uma mensagem à Igreja de Deus em Paris: vocês devem ser messiânicos, vocês esqueceram o tempo messiânico. Vocês têm de viver o que eu descobri em São Paulo”.
Alain Gignac (Foto: João Flores da Cunha)
Alain Gignac é professor assistente na Faculdade de Teologia e Ciências da Religião da Universidade de Montreal, do Canadá, desde 1999, onde leciona Novo Testamento. Especializado no corpus paulino, ele interessa-se pelos métodos de análise sincrônica (retórica, estrutural, narratológica e intertextual) e os seus impactos hermenêuticos. A sua investigação Ler a Carta aos Romanos hoje, subvencionada pelo governo canadense, propõe-se reler a carta paulina aos romanos com estes métodos, mas também sobre o horizonte do questionamento moderno/pós-moderno: como o escrito paulino propõe uma identidade e um agir no seu leitor? De sua produção acadêmica, citamos Juifs et chrétiens à l’école de Paul de Tarse. Enjeux identitaires et éthiques d’une lecture de Rm 9-11 (coll Sciences bibliques 9, Montréal, Médiaspaul, 1999, 342 p.).
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Política e messianismo na obra de Agamben - Instituto Humanitas Unisinos - IHU