17 Junho 2017
"A única coisa que possuímos e podemos conhecer com alguma certeza é o passado, enquanto o presente é, por definição, difícil de se apreender e o futuro, que não existe, pode ser inventado de cabo a rabo por qualquer charlatão".
O comentário é de Giorgio Agamben, filósofo italiano, em artigo publicado por Quodlibet e reproduzido pelo blog Flanagens, 13-06-2017. A tradução é de Vinícius N. Honesko.
Essas notas reproduzem parte da intervenção no Salão do livro de Turim no dia 20 de maio de 2017.
1. “Tenho tamanha desconfiança no futuro que faço projetos só para o passado”. Essa frase de Flaiano – um escritor cujos trocadilhos devem ser levados extremamente a sério – contém uma verdade sobre a qual vale a pena refletir. O futuro, como a crise, é de fato hoje um dos principais e mais eficazes dispositivos do poder. Que ele seja acenado como um ameaçador pesadelo (empobrecimento e catástrofes ecológicas) ou como um radiante porvir (como pelo doentio progressismo), em todo caso, trata-se de dar a ideia de que nós devemos orientar nossas ações e nossos pensamentos unicamente por ele. Isto é, que devemos deixar de lado o passado, que não se pode mudar e que é, portanto, inútil – ou, no máximo, deve ser conservado em um museu –, e, quanto ao presente, que por ele devemos nos interessar apenas na medida em que serve para preparar o futuro.
Nada de mais falso: a única coisa que possuímos e podemos conhecer com alguma certeza é o passado, enquanto o presente é, por definição, difícil de se apreender e o futuro, que não existe, pode ser inventado de cabo a rabo por qualquer charlatão.
Desconfiem, tanto na vida privada quanto na esfera pública, de quem lhes oferece um futuro: esse aí está quase sempre procurando capturá-los ou enganá-los. “Jamais permitirei à sombra do futuro”, escreveu Ivan Illich, “de pousar sobre conceitos por meio dos quais procuro pensar o que é e o que foi”. E Benjamin observou que na recordação (que é algo diversa da memória como imóvel arquivo) nós agimos, na realidade, sobre o passado, o tornamos de algum modo novamente possível. Flaiano tinha então razão ao nos sugerir fazer projetos sobre o passado. Só uma investigação arqueológica sobre o passado pode nos permitir ter acesso ao presente, enquanto um olhar dirigido unicamente ao futuro nos expropria, com nosso passado, também do presente.
2. Imaginem entrar numa farmácia e pedir um remédio de que têm necessidade urgente. O que fariam se o farmacêutico lhes respondesse que tal remédio foi produzido há três meses e, portanto, não está disponível? É exatamente isso que hoje acontece ao entrar numa livraria. O mercado editorial se tornou hoje um Absurdistão no qual a circulação exige que o livro seja mantido na livraria pelo menor tempo possível (com frequência não mais de um mês). Como consequência, o próprio editor programa livros que devem exaurir suas vendas – se acontecem – a termo breve e renuncia a construir um catálogo que possa durar no tempo. Por isso, eu – que ainda assim permaneço sendo um bom leitor – tenho cada vez mais desgosto ao entrar numa livraria (naturalmente existem exceções), onde as bancadas são ocupados apenas pelas novidades e onde é cada vez mais difícil encontrar o remédio (isto é, o livro) de que tenho vital necessidade. Se livreiros e editores não se voltarem contra esse sistema, em boa medida imposto pelas grandes distribuidoras, não deveremos nos espantar se as livrarias desaparecerem. Da mesma forma como surgiram, não poderemos nem mesmo por elas chorar.
3. Nicola Chiaromonte certa vez escreveu que a pergunta essencial, quando consideramos nossa vida, não é o que tivemos ou o que não tivemos, mas o que resta dela. O que resta de uma vida – mas também e ainda antes: o que resta de nosso mundo, o que resta do homem, da poesia, da arte, da religião, da política, hoje que tudo com que estávamos habituados a associar a essa realidade tão urgente está desaparecendo ou até mesmo se transformando a ponto de se tornar irreconhecível? Ao entrevistador que lhe perguntava “o que resta, para a senhora, da Alemanha em que nasceu e cresceu?”, Hannah Arendt respondeu: “resta a língua”. Mas o que é uma língua como resto, uma língua que sobrevive ao mundo do qual era expressão? E o que nos resta quando nos resta apenas a língua? Uma língua que parece não ter mais nada a dizer e que, todavia, obstinadamente resta e resiste, e da qual não podemos nos separar? Gostaria de responder: é a poesia. O que é, com efeito, a poesia senão o que resta da língua depois que desta desativaram uma a uma as normais funções comunicativas e informativas?
Lembro que Ingeborg Bachmann certa vez me disse que não era capaz de ir ao açougue e pedir: “me dê um quilo de bife”. Não creio que quisesse dizer que a língua da poesia é uma língua mais pura, que se encontra além da língua que usamos nos açougue ou em outros usos cotidianos. Creio, antes, que a língua da poesia seja o indestrutível que resta e resiste a toda manipulação e a toda corrupção, a língua que resta mesmo depois do uso que dela fazemos nos SMS e nos tweet, a língua que pode ser infinitamente destruída e todavia permanece, assim como alguém escreveu que o homem é o indestrutível que pode ser infinitamente destruído. Essa língua que resta, essa língua da poesia – que é também, creio eu, a língua da filosofia – tem a ver com o que, na língua, não diz, mas chama. Isto é, com o nome. A poesia e o pensamento atravessam a língua em direção ao nome, àquele elemento da língua que não discorre e não informa, que não diz algo sobre algo, mas nomeia e chama.
Um breve texto que Italo Calvino costumava dedicar aos amigos como seu “testamento espiritual” se fecha com uma série de frases quebradas e quase sem fôlego: “tema da memória – memória perdida – o conservar e o perder aquilo que se perdeu – aquilo que não se teve – aquilo que se teve atrasado – aquilo que levamos atrás – aquilo que não nos pertence...”. Eu creio que a língua da poesia, a língua que resta e chama, chama justamente o que se perde. Vocês sabem que tanto na vida individual quanto na coletiva a massa das coisas que se perdem, a profusão dos ínfimos, imperceptíveis eventos que todo dia nos esquecemos, é tão ilimitada que nenhum arquivo ou nenhuma memória poderia contê-la. O que resta, a parte da língua e da vida que salvamos da ruína, tem sentido apenas se intimamente tem a ver com o perdido, se é de algum modo para[1] este, se o chama pelo nome e responde em seu nome. A língua da poesia, a língua que resta, nos é cara e preciosa pois chama o que se perde. Porque o que se perde é de Deus.
Notas:
[1] Agamben utiliza o termo “per”, que pode ser traduzido tanto por “para” como por “por”. Já em seus textos sobre o poeta espanhol José Bergamín – em específico, sobre “A decadência do analfabetismo” – o filósofo seu utiliza desse jogo: o falar para e o falar por (em lugar de). É claro que também é toda a argumentação que Agamben levanta a respeito do “testemunho” em, sobretudo, “O que resta de Auschwitz”.
[2] Versão original disponível aqui.
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O que resta? Notas de Giorgio Agamben - Instituto Humanitas Unisinos - IHU