Por: Jonas Jorge da Silva | 08 Mai 2018
Pensar as periferias na contemporaneidade não é tarefa muito fácil. Os mais apressados costumam criar rótulos simplificadores e preconceituosos, sem considerar as periferias em sua complexidade, com contradições e potencialidades. O fato é que nelas vivem milhares de pessoas em todo o Brasil. E também é verdade que, através das mais diversas formas de expressão, muitos moradores dessas regiões têm conseguido construir uma narrativa que coloca em xeque o discurso monotemático a respeito do que são elas. Com a proliferação de diversas outras possibilidades de veiculação de vídeos, mensagens, músicas, poesias, artigos e outros, mulheres e homens das periferias vão assentando uma narrativa contestatória aos clichês daqueles que sabem muito pouco a seu respeito.
No esforço de compreender com maior agudez o que são as periferias, no último sábado, 05 de maio, o CEPAT promoveu o debate As periferias como espaço de produção e resistência, pelo ciclo Cenários para o Brasil contemporâneo. A atividade conta com a parceria do Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR, Cáritas - Regional Paraná, Comunidades de Vida Cristã (CVX) - Regional Sul e Instituto Humanitas Unisinos - IHU. A convidada especial para conduzir este debate foi Juliana Borges, feminista negra, antiproibicionista e pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
De expressão calma, mas não sem contundência e de corte radical, Juliana Borges é daquelas que fogem da fragmentação da análise. Não começa falando das periferias como uma entidade estranha, um objeto a ser abordado. Ao contrário, fala com a propriedade de quem está entranhada nessa realidade. Aos poucos, vai se descortinando diante dos ouvintes a trajetória de uma mulher negra forte, que, diante da tradição matriarcal da família, deseja fazer jus a uma rica história de luta, resistência e empoderamento.
É daí que brotam as palavras de Juliana Borges sobre as periferias. Prefere trilhar o caminho discursivo das diversidades e possibilidades da periferia. “A periferia deixou de ser apenas a borda da cidade”, aponta. Afinal, dentro da dinâmica espacial e cultural das nossas grandes metrópoles, o que é ser de fato periférico? Para Borges, mais que uma descrição geográfica, é necessário entender que a periferia passou a ser um jeito de ser, um modo de entender o mundo
Momento de debate (Foto: Ana Paula Abranoski)
Diante da histórica ausência do Estado, a força política daqueles que vivem nas periferias é construída na luta pela subversão dessa realidade. Assim, nascem as redes de solidariedade do meio popular, de parcelas excluídas do trabalho formal, daqueles que já não suportam mais a violência em suas diferentes facetas. Sem querer idealizar a solidariedade, Borges enfatiza que as pessoas se reúnem porque as condições impõem tal iniciativa. Sem poder esperar do Estado, precisam criar estratégias de sobrevivência em um espaço geográfico onde o poder público ignora o que são os seus direitos civis, sociais e políticos.
Nessa luta, Juliana Borges é enfática: “As mulheres são a linha de frente”. A resistência feminina nasce justamente de sua condição de maior vulnerabilidade social também e, principalmente, nesse contexto. Elas são mães, em sua grande maioria negras, que possuem renda muito inferior até mesmo à do homem negro e que mais sofrem com a exposição familiar às situações de violência. Tornou-se comum assistir as cenas de desespero de mães que perdem os seus filhos em chacinas e assassinatos abjetos, naquilo que as defensoras e defensores de direitos humanos vem apropriadamente chamando de extermínio da juventude negra. Para Borges, “quem problematiza a violência nas periferias são as mulheres”.
Para Borges, uma visão moralista sobre as periferias não ajuda a entender a dinâmica de suas relações sociais e nem a encontrar medidas efetivas para garantir um exercício de convivência pacífica entre seus moradores. Não será com o voluntarismo de que é necessário levar “consciência” aos moradores que as coisas vão mudar. É preciso problematizar o modo como comunidades inteiras vem sendo estigmatizadas, dominadas e perseguidas, por exemplo, com o pretexto do combate ao tráfico de drogas.
Juliana Borges é muito crítica aos discursos prontos de combate à criminalidade nas regiões periféricas, quando na verdade o que se vê é um verdadeiro encarceramento em massa, ao invés da preocupação com a vida das pessoas. Aliás, em início de março desse ano, lançou justamente um livro que aborda esta temática, com o título O que é Encarceramento em Massa?, pela coleção Feminismos Plurais, organizada por Djamila Ribeiro e publicado pelo Grupo Editorial Letramento. Na obra, a autora problematiza o exponencial aumento do encarceramento da população feminina, inseridas nas contradições de um país que insiste em manter suas desigualdades tendo como base hierarquias raciais.
Está claro que diante da instabilidade e precariedade, as pessoas que vivem nas periferias dão a este espaço a marca da resistência e da subversão das narrativas e ações políticas depreciativas e desmobilizadoras apresentadas pela sociedade em suas relações de poder. Nesse sentido, retomando diversos aspectos da dinâmica do que foram e são os quilombos no Brasil, Borges retoma a grande contribuição de Beatriz Nascimento, que enfatiza a dimensão da luta e resistência do povo negro nessa experiência. É nessa chave de leitura que é necessário compreender as periferias, hoje, mais como um quilombo que uma senzala.
Por meio das mais diversas expressões culturais, organizativas e por meio das muitas redes e lutas que vão se estabelecendo nas periferias, o que os moradores disputam politicamente é a própria narrativa do que são e podem ser, no enfrentamento de uma estrutura patriarcal, racista e classista, que insiste em penetrar e desmobilizar a organização popular das grandes maiorias.
É hora de contrariar o discurso monotemático sobre as periferias, pois se trata de uma realidade multitemática. Ser periférico também já não se trata de uma questão apenas geográfica, pode ser também uma opção política. Tal compreensão é o que mais assusta aqueles que se acostumaram com a “ordem” do dia.
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Periferias. As mulheres na linha de frente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU