Por: Vitor Necchi | 08 Julho 2017
As estatísticas sobre violências cometidas contra mulheres revelam que as negras são mais vulneráveis. É por isso que a feminista negra Juliana Borges afirma que “não se pode, jamais, em nosso país pensar em políticas públicas sem o devido recorte racial”. Ela salienta que “a violência é fruto do sexismo, e não se pode indissociá-la do racismo quando a maioria das mulheres que relatam variadas experiências de violência são negras em nosso país”. Analisando o contexto, resume: “Racismo, machismo e classismo são estruturais e indissociados de nossa sociedade”.
Ela reconhece que houve “avanços importantíssimos para evidenciar e combater a violência contra as mulheres nos últimos anos, mas é preciso pensar aonde estas políticas chegam e a quem alcançam”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, diz que precisamos “de um olhar integral, interseccional e complexo diante de um país com a interseção de opressões tão complexas e articuladas entre si”.
Ao falar sobre o feminismo negro, destaca que ele “tem sua própria epistemologia, modo de ver e defender um projeto de emancipação”. Tal vertente “não se trata de uma reivindicação identitária, mas de uma disputa de projeto e visão de mundo e, portanto, trata de relações de poder”. Borges é categórica ao dizer “que não haverá conquista possível de liberdade e justiça enquanto mulheres negras seguirem sem liberdade e justiça”.
Ao refletir sobre o combate às violências a que são submetidas mulheres negras, manifesta que não acredita em uma “visão punitivista para entender e olhar o mundo”, pois “o Brasil já é um país extremamente violento, repressor e punitivo” onde “a Justiça pune com o olhar racializado e classista, ou seja: negros e pobres”.
A ativista defende a importância de se focar na prevenção e em direitos à cidadania plena, ao exercício democrático e à participação com decisão real. “Questões estruturais demandam respostas estruturais e integradas”, defende.
Juliana Borges | Foto: Revista Fórum
Juliana Borges é feminista negra e pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Foi Secretária Adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo (2013).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – No ambiente familiar, é comum que o patriarcado e a violência de gênero se reproduzam de geração a geração, e muitas mulheres acabam introjetando o papel submisso que lhes é atribuído. Nesse sentido, qual a importância das políticas públicas para se combater a violência de gênero?
Juliana Borges – O patriarcado como sistema de poder é uma estrutura que articula e organiza toda a sociedade. Neste sentido, está presente e perpassa todas as relações e instituições sociais. A família é uma destas instituições sociais constituída sob esta lógica do controle. Seja do controle da prole e, portanto, da herança, seja do controle de quem “gera” a prole, as mulheres. O que quero dizer é que a família, que hoje chamamos de “família tradicional”, é uma instituição com uma função central no patriarcado. Hoje, já há certos avanços, em determinadas áreas, sobre o entendimento do que constitui uma família. No direito da família, por exemplo, o conceito ampliou-se, compreendendo a família pelos laços de afetividade, mais do que uma estrutura fixa e rígida de pai/mãe-filhos.
Por ser estrutural e estruturante e perpassar todas as relações sociais, marcas do machismo também perpassam a constituição sócio-psicológica dos sujeitos que sujeita. Simone de Beauvoir [1] já disse, certa vez, que “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”. Claro que ela não estava falando da dimensão puramente individual, mas de como as opressões são uma forte teia estrutural e que, portanto, várias são as dimensões necessárias para desconstruí-la: no campo político, social, psicológico etc.
Por isso que políticas públicas são importantes. No entanto, não qualquer tipo de política pública. As políticas públicas precisam ser mais embasadas no acúmulo político e epistêmico sobre estas temáticas e garantir uma perspectiva interseccional e intersetorial. O patriarcado, pela dimensão sistêmica e complexa, demanda políticas públicas à mesma altura.
IHU On-Line – O ciclo da violência contra a mulher é tão perverso a ponto de ela ser agredida, não se insurgir e ainda tentar se reconciliar com o homem agressor porque não tem condições emocionais e financeiras de buscar uma vida longe dele. Como lidar com essa situação?
Juliana Borges – Eu não sei, exatamente, como interpretar esta questão. Porque parto de outras premissas. Há variados tipos de violência. As violências simbólicas e psicológicas são mais complexas de se combater, justamente, pela sutileza em que são colocadas e vividas. Talvez não seja o caso de insurgir-se, ou de demandarmos da mulher uma postura única frente a estas situações. Vejo muitas mulheres que criam modos outros de viver. Não estou, absolutamente, defendendo uma vida de violência, mas pontuando quão complexas são as teias da violência em que vivem estas mulheres. E, talvez, pensarmos menos em vítimas e mais em mulheres em situação de violência. O estigma da vítima também é muito intenso. E o que estas mulheres vivem é uma situação que lutamos para que seja transitória e para que elas sejam sujeitas de si. Uma das dimensões da violência de gênero, e psicológica sobretudo, é fazer a pessoa agredida desacreditar de suas potencialidades, de suas capacidades. Penso que trabalhar este lado psico-emocional é um ponto de partida muito importante. O machismo faz com que nos vejamos incapazes. Uma estudiosa afro-americana chamada bell hooks [2], com minúscula mesmo, ao falar de racismo, escreveu um belíssimo texto chamado “Vivendo de amor” sobre a importância da reconstrução da autoestima para que seja possível resistir e reconstruir-se. Acho que vale muito para este caso a pergunta também.
IHU On-Line - O debate em torno das questões de gênero vem contemplando as questões próprias das mulheres negras com o grau de importância que essa especificidade requer?
Juliana Borges – Outra questão intrigante. Na verdade, como feminista negra interseccional, não consigo enxergar de modo apartado as questões de gênero das questões das mulheres negras. E entendo menos como uma especificidade e mais como uma parte, dentre várias, que constitui o que chamamos, hoje, “feminismos”. A socióloga Patricia Hill Collins [3], ao teorizar sobre o que seria o feminismo negro, vai falar de modo taxativo que não somos um complemento ao “feminismo”. O “feminismo negro” tem sua própria epistemologia, modo de ver e defender um projeto de emancipação. O feminismo negro não se trata de uma reivindicação identitária, mas de uma disputa de projeto e visão de mundo e, portanto, trata de relações de poder. O que dizemos é que não haverá conquista possível de liberdade e justiça enquanto mulheres negras seguirem sem liberdade e justiça. Isto é muito maior e global do que específico.
IHU On-Line - É possível tratar de violência contra mulheres sem discutir racismo e sexismo no Brasil?
Juliana Borges – Não. A violência é fruto do sexismo, e não se pode indissociá-la do racismo quando a maioria das mulheres que relatam variadas experiências de violência são negras em nosso país. Racismo, machismo e classismo são estruturais e indissociados de nossa sociedade. Segundo o Mapa da Violência de 2015, temos cerca de 13 homicídios femininos diários no país, e 50,3% destes assassinatos foram cometidos por familiares e pouco mais de 33% praticados pelo parceiro ou ex-parceiro dessas mulheres. Além disso, nos últimos 10 anos houve aumento de 54% de assassinatos de mulheres negras, enquanto que, no mesmo período, registrou-se a diminuição do assassinato de mulheres brancas. Vemos aí explicitamente uma disparidade e que comprova que estes debates, de raça, gênero e classe devem ser feitos de modo interseccionado.
IHU On-Line - No que se refere às mulheres negras, a violência de gênero adquire contornos distintos? De que maneira?
Juliana Borges – Os contornos diferenciados podem ser apontados com a intersecção necessária ao analisarmos os dados sobre estas violências. Pela falta de acesso à cidadania para uma grande parcela da população negra, e quando digo isso, estou afirmando que o fato de a população negra estar mais presente, pelo histórico escravocrata do país, em territórios sem quaisquer serviços públicos de qualidade – seja saneamento, educação de qualidade, acesso à justiça, saúde etc. –, as vulnerabilidades, portanto, são maiores. O Estado só se faz presente, na maioria das periferias brasileiras, pelo seu braço repressor, que é a polícia. Não estou dizendo que são vulnerabilidades que criam a violência, porque isso seria romantizar as classes mais abastadas, mas estou afirmando, pelos dados, que a situação de vulnerabilidade social se torna um obstáculo para que essas mulheres, que vivem nas periferias, possam superar o ciclo de violência. A socióloga Heleieth Saffioti [4], no livro Gênero, patriarcado e violência, faz muito bem este recorte focado em classe. Se somarmos aos dados do Mapa da Violência, garantindo o recorte racial, estas distinções e maiores vulnerabilidades das mulheres negras ficam explícitos. Principalmente se pensarmos que violência contra mulheres tem formato variado, passando desde abusos psicológicos, sociais, físicos e médicos também, ao analisarmos os dados de violência obstétrica no país.
IHU On-Line - Conforme o Mapa da Violência 2015, no Brasil, a população negra é a mais atingida pelos homicídios; as taxas de homicídio de brancos tendem, historicamente, a cair, enquanto aumentam entre os negros. No que se refere especificamente à população feminina, o número de homicídios de brancas caiu de 1.747 vítimas, em 2003, para 1.576, em 2013 (queda de 9,8%); no mesmo período, os homicídios de negras cresceram de 1.864 para 2.875 vítimas (aumento de 54,2%). O que esses dados revelam?
Juliana Borges – Estes dados revelam que não se pode, jamais, em nosso país pensar em políticas públicas sem o devido recorte racial. Tivemos avanços importantíssimos para evidenciar e combater a violência contra as mulheres nos últimos anos, mas é preciso pensar aonde estas políticas chegam e a quem alcançam. Penso que este é um ponto central. Não estamos falando da criação de vários programas específicos, mas de um olhar integral, interseccional e complexo diante de um país com a interseção de opressões tão complexas e articuladas entre si.
IHU On-Line - A vulnerabilidade da mulher negra se processa até mesmo nas gestações, o que também caracteriza violência de gênero. Conforme dados de 2012 do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM/MS), negras são 62,8% das vítimas de morte materna, situação que, conforme especialistas, poderia ser evitada se houvesse acesso a informações e acompanhamento adequado no pré-natal. Isso é reflexo da combinação de racismo institucional e desigualdade de gênero?
Juliana Borges – Sem dúvida. As opressões são estruturais e estruturantes e perpassam todas as relações sociais e institucionais de nossas vidas. Há variados mitos em torno da mulher negra como reflexo e consequência dos mais de 300 anos de escravização no nosso país. Angela Davis [5], em seu livro recentemente traduzido para o Brasil, Mulheres, raça e classe, ao falar de como as mulheres negras eram tratadas no período escravocrata, aponta que nunca houve para elas o estereótipo da docilidade, da sensibilidade e da fraqueza. Pelo contrário, as mulheres negras tinham que trabalhar tanto quanto os homens negros escravizados. A questão de gênero se evidenciava porque, além de ter que trabalhar do mesmo modo, as mulheres negras também eram vítimas da lascívia dos donos de escravizados e do ódio e ciúme das esposas daqueles homens. Em Dicionário da escravidão no Brasil, de Clóvis Moura [6], o verbete sobre “mucama” explicita bem como era a situação da mulher negra escravizada no Brasil. Com isso, vários foram os estereótipos e estigmas de que mulheres negras são mais fortes e resistentes a dor, de que são lascivas e fáceis e, portanto, hipersexualizadas etc. Estes estereótipos, carregados no imaginário social, trazem consequências indeléveis na vida das mulheres negras, e os dados em torno da violência obstétrica evidenciam isso.
IHU On-Line - Como combater as diversas formas de violência a que são submetidas mulheres negras? Educação, políticas públicas, cotas, punição aos agressores?
Juliana Borges – Não acredito em uma visão punitivista para entender e olhar o mundo. O Brasil já é um país extremamente violento, repressor e punitivo. A questão é que a Justiça pune com o olhar racializado e classista, ou seja: negros e pobres. Penso que há uma série de questões que devem ser pensadas antes. Geralmente, nós pensamos no que fazer depois que estas mulheres já estão em uma situação de violência, e é importante focarmos na prevenção e em direitos. Educação de qualidade, acesso à Saúde Integral da População Negra, moradia, saneamento básico, trabalho digno, acesso à Justiça e ao entendimento das leis e de seus direitos são questões chaves tanto para mulheres quanto para homens para quebrarmos estereótipos e a reprodução da violência. Direito à cidadania plena, ao exercício democrático, à participação com decisão real. Estas são, para mim, as maneiras mais efetivas para combatermos a violência, a desigualdade política e social de gênero, bem como quaisquer outras desigualdades. Questões estruturais demandam respostas estruturais e integradas.
Notas:
[1] Simone de Beauvoir (1908-1986): escritora, filósofa existencialista e feminista francesa. Ligou-se pessoal e intelectualmente ao filósofo francês Jean-Paul Sartre. Entre seus ensaios críticos, destaca-se O segundo sexo (1949), uma profunda análise sobre o papel das mulheres na sociedade; A velhice (1970), sobre o processo de envelhecimento, no qual teceu críticas apaixonadas sobre a atitude da sociedade para com os anciãos; e A cerimônia do adeus (1981), uma evocação da figura de seu companheiro de tantos anos, Sartre. (Nota da IHU On-Line)
[2] Gloria Jean Watkins (1952): mais conhecida pelo pseudônimo bell hooks (escrito em minúsculas), é uma autora feminista e ativista social nascida nos Estados Unidos. O nome bell hooks foi inspirado em sua bisavó materna, Bell Blair Hooks. Sua produção trata da interconectividade de raça, capitalismo e sexo, que ela descreve por sua capacidade de produzir e perpetuar os sistemas de opressão e dominação de classe. Publicou mais de 30 livros e muitos artigos. Aborda raça, classe e gênero na educação, arte, história, sexualidade, mídia de massa e feminismo. (Nota da IHU On-Line)
[3] Patricia Hill Collins (1948): professora universitária de Sociologia da Universidade de Maryland, College Park. Também é a ex-chefe do Departamento de Estudos afro-Americanos na Universidade de Cincinnati, e ex-presidenta do Conselho da Associação Americana de Sociologia. Collins foi a 100º presidenta da ASA, e a primeira mulher afro-americana a ocupar o cargo. Collins trabalha, principalmente, sobre feminismo e gênero dentro da comunidade afro-americana. Ela ganhou notoriedade por seu livro para a atenção nacional para o seu livro "Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics of Empowerment", publicado originalmente em 1990. (Nota da IHU On-Line)
[4] Heleieth Iara Bongiovani Saffioti (1934 - 2010): foi uma socióloga marxista, professora, estudiosa da violência de gênero e militante feminista brasileira. (Nota da IHU On-Line)
[5] Angela Davis (1944): é uma professora e filósofa socialista estado-unidense que alcançou notoriedade mundial na década de 1970 como integrante do Partido Comunista dos Estados Unidos, dos Panteras Negras, por sua militância pelos direitos das mulheres e contra a discriminação social e racial nos Estados Unidos e por ser personagem de um dos mais polêmicos e famosos julgamentos criminais da recente história dos Estados Unidos. Na década de 1960, Angela tornou-se militante do partido e participante ativa dos movimentos negros e feministas que sacudiam a sociedade norte-americana da época, primeiro como filiada da SNCC de Stokely Carmichael e depois de movimentos e organizações políticas como o Black Power e os Panteras Negras. (Nota da IHU On-Line)
[6] Clóvis Moura [Clóvis Steiger de Assis Moura] (1925-2003): Sociólogo, jornalista e historiador brasileiro. Foi militante do Partido Comunista Brasileiro e um dos pioneiros da defesa do movimento negro brasileiro. (Nota da IHU On-Line)
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Não se pode pensar em políticas públicas sem o devido recorte racial. Entrevista especial com Juliana Borges - Instituto Humanitas Unisinos - IHU