Enquanto o Estado brasileiro reluta em reconhecer os direitos dos povos indígenas, comunidades se organizam de modo autônomo na Amazônia, diz o geógrafo
A luta dos povos indígenas por autonomia territorial na Amazônia brasileira não é um “projeto separatista” nem visa à “criação de um novo Estado”. Tampouco é uma “utopia” ou uma “ideia abstrata”. Antes, é uma “práxis concreta” de luta, resistência e autogoverno territorial. Em outras palavras, uma reação e, mais precisamente, uma “resposta à intensificação dos processos de espoliação territorial, do colonialismo interno e da própria descrença de que o Estado brasileiro irá resolver os problemas vivenciados pelos povos indígenas”, pontua o geógrafo Fábio Alkmin, que tem pesquisado processos de autonomias indígenas na América Latina na última década.
Segundo o pesquisador, os movimentos autonomistas estão em constante tensão com o Estado, particularmente porque são vistos como “entraves ao desenvolvimento” e têm questionado os impactos que os interesses econômicos do agronegócio e da mineração geram em seus territórios. Nesse contexto, destaca, eles reivindicam o direito à autodeterminação, ou seja, “o direito de se autogovernar em seus territórios”.
A luta autonomista expõe não só as tensões com o Estado, mas também com o campo político progressista, que “aposta na ampliação de direitos por meio da inclusão institucional e do fortalecimento do Estado como mediador dos conflitos sociais”, afirma. Nesse contexto, adverte, embora a instituição do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) seja fruto das lutas indígenas no país, a instituição corre o risco de ser capturada “por uma dinâmica de governo que reduz a autonomia a um tema técnico ou burocrático”. Para o entrevistado, o MPI “pode funcionar como instrumento estratégico para fortalecer a autodeterminação, desde que mantenha sua escuta ativa aos territórios e não se desconecte das bases”.
Fábio Alkmin é autor do livro recém-lançado pela editora Elefante, Geografia da autonomia: a experiência territorial zapatista em Chiapas, México (Elefante, 2025), que trata das potencialidades e dos limites dos territórios autônomos a partir da experiência do Exército Zapatista de Libertação Nacional – EZLN, em Chiapas, no México, desde a década de 1990.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele menciona exemplos autonomistas em toda a América Latina, como a experiência zapatista, que persiste como resistência há mais de três décadas. Para o pesquisador, "os movimentos indígenas que lutam por autonomia oferecem uma inspiração poderosa para repensar a política a partir do comum”.
Fábio Alkmin (Foto: Reprodução | Research Gate)
Fábio Alkmin é graduado em Geografia, mestre e doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP). Realizou estágios de pesquisa na Universidad Nacional de La Plata (UNLP), Argentina, na Universidad Nacional Autónoma de México (Unam) e na Queen Mary University of London (QMUL), no Reino Unido (2022). É membro dos grupos de trabalho Rede Dataluta (Brasil) e Povos Indígenas, Autonomias e Direitos Coletivos (Clacso), onde organiza o Boletim Autonomías Hoy: pueblos indígenas en América Latina. É pesquisador associado do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Consultor do Ministério dos Povos Indígenas e Formador de Professores na educação para as relações étnico-raciais da prefeitura de São Paulo.
IHU – O que são os movimentos autonomistas? Qual é o escopo teórico que ajuda a compreendê-los? Em que medida eles se aproximam ou se diferenciam de experiências de base, surgidas de baixo, como se costuma dizer numa linguagem de esquerda?
Fábio Alkmin – Há muitos tipos de “movimentos autonomistas”, com fundamentos, objetivos e alcances bem diferentes. No campo das esquerdas, o termo autonomia costuma designar lutas que rejeitam a mediação institucional do Estado e se organizam à margem da lógica partidária tradicional.
No entanto, quando nos referimos às autonomias indígenas, estamos olhando para experiências historicamente mais profundas, marcadas por séculos de colonialismo, tutela e tentativas de assimilação forçada por parte do Estado. Nesse contexto, a autonomia se afirma como expressão concreta do direito à autodeterminação – o direito de viver de acordo com suas próprias ontologias, formas de organização social e modos de se relacionar com o território. A autonomia, nesse caso, não se reduz a uma mera estratégia política. Sem necessariamente usar o termo autonomia, esses povos estão lutando por algo mais amplo, que é o direito de se autogovernar em seus territórios. Considero que a abordagem teórica mais potente para compreender esses processos é aquela que enfoca seu caráter histórico e socioterritorial, inserindo-os no marco de uma longa e contínua luta anticolonial.
IHU – Quando, como e por que surgem as lutas por autonomia na América Latina e no Brasil?
Fábio Alkmin – Vou focar aqui nos povos indígenas, que é a minha linha de pesquisa. O que se observa na América Latina, especialmente a partir do fim da década de 1970, é um grande fortalecimento político das organizações indígenas em defesa do direito ao território e à autodeterminação. Nesse período os povos estavam saindo de um processo muito violento na relação com os Estados nacionais, buscando afirmar sua condição de sujeitos coletivos de direito. Esse ciclo se intensificou por diversos fatores políticos, econômicos e sociais, que variam um pouco de país para país.
Apesar das diferenças entre os contextos nacionais, a luta desses povos convergia na reivindicação do direito de continuar existindo como povos indígenas. Em muitos casos, lograram inscrever esse reconhecimento nas novas constituições de seus países, assegurando direitos territoriais originários e reforçando a autodeterminação como princípio jurídico e político. No Brasil, essa práxis autonômica se fortaleceu diante do descompasso entre esses direitos garantidos pela Constituição de 1988 e a atuação efetiva do Estado. Cansados de esperar da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) e demais instituições, os povos passaram a criar suas próprias escolas indígenas, conselhos de governo, grupos de monitoramento e até mesmo a autodemarcar seus territórios. No plano latino-americano, um marco emblemático dessa luta autonômica é a insurgência zapatista no México, em 1994, que populariza internacionalmente a ideia de autonomia como prática política e cotidiana.
IHU – Você realizou trabalhos de campo no Chile, Argentina, Bolívia, Colômbia, Guatemala e México, pesquisando movimentos autonomistas entre os indígenas. Que semelhanças e diferenças percebe tanto entre as lutas e propostas autonomistas dos diferentes povos quanto em relação aos contextos sociopolíticos em que eles vivem? O que os povos relatam sobre suas próprias experiências e expectativas?
Fábio Alkmin – As lutas indígenas por autonomia na América Latina compartilham pautas centrais, como a defesa dos territórios, a autodeterminação e a resistência às formas de violência exercidas pelo Estado e pelo capital. As diferenças entre elas dizem respeito, sobretudo, às estratégias políticas adotadas, moldadas por contextos jurídico-institucionais específicos e por distintas matrizes culturais e organizacionais. No México, por exemplo, os povos zapatistas estruturaram um sistema próprio de autogoverno por meio das Juntas de Bom Governo, articulando centenas de comunidades indígenas — de quatro povos distintos — em uma rede territorial coesa e independente das instituições estatais.
No Brasil, por sua vez, a figura jurídico-constitucional das Terras Indígenas — bens da União com usufruto exclusivo dos povos indígenas — condicionou a luta autonômica a um campo de disputas legais e institucionais, ao mesmo tempo que impulsionou práticas como autodemarcações, retomadas e a criação de formas próprias de governança comunitária.
Já no Chile, a situação é bem restritiva: o Estado não reconhece constitucionalmente a existência dos povos indígenas, o que faz com que o povo Mapuche, por exemplo, lute por seus territórios em um contexto de criminalização, repressão e ausência de reconhecimento legal mínimo, muitas vezes sendo tratados como terroristas.
IHU – Como os Estados reagem aos movimentos autonomistas?
Fábio Alkmin – As reações estatais variam, mas costumam alternar entre oposição direta, cooptação e desarticulação, além de uma defesa irrestrita da propriedade privada e das relações de produção capitalista. Em alguns casos, o Estado atua por meio do apoio implícito a grupos paramilitares ou da implementação de políticas sociais que buscam enfraquecer a coesão comunitária e desmobilizar as práticas autonômicas. Ambas as estratégias foram amplamente utilizadas contra os zapatistas, no México.
Em outros contextos, como no Chile e no Paraguai, observa-se o incentivo a processos de individualização fundiária, que visam dissolver juridicamente a posse coletiva da terra e facilitar sua mercantilização.
Já países como Bolívia e Equador adotaram, nas últimas décadas, mecanismos de semidescentralização por meio do reconhecimento do Estado plurinacional. Embora representem avanços institucionais importantes, essas iniciativas tendem a absorver e normatizar as demandas por autonomia, mantendo, na prática, o controle indireto dos territórios e dos recursos neles existentes.
IHU – Como explica e compreende a experiência territorial zapatista em Chiapas? Quais são os pontos positivos, as contradições, os limites e desafios dessa experiência?
Fábio Alkmin – A experiência zapatista é uma das mais radicais e duradouras expressões de autonomia no contexto contemporâneo, com mais de três décadas de construção contínua. Nos territórios autônomos zapatistas, todas as instituições estatais foram substituídas por estruturas próprias de governo autônomo, como escolas, sistemas de saúde, justiça e segurança comunitária. Trata-se de um complexo processo de autogoverno territorial, enraizado em valores coletivos e ontologias próprias.
Entre os principais méritos dos zapatistas estão a capacidade de criar alternativas reais ao modelo estatal-capitalista e de sustentar uma resistência civil baseada na dignidade, na igualdade de gênero e na democracia comunitária. No entanto, o projeto enfrenta limites e tensões permanentes, como a ameaça de repressão estatal, a presença de grupos paramilitares e o avanço do narcotráfico na região. Apesar desses desafios, a experiência zapatista segue sendo uma referência global de organização autônoma, resistência coletiva e imaginação política.
IHU – Quais dificuldades o movimento zapatista atravessa hoje?
Fábio Alkmin – O zapatismo enfrenta uma série de desafios atualmente. A presença crescente dos cartéis do narcotráfico e de grupos paramilitares na região tem gerado conflitos armados e ameaçado diretamente as comunidades indígenas. Além disso, há uma ofensiva silenciosa por parte do Estado mexicano, que atua tanto pela omissão – ao permitir a escalada da violência – quanto por tentativas de cooptação e fragmentação do tecido comunitário chiapaneco. Outro desafio é a manutenção da autonomia econômica, especialmente diante do cerco territorial e das dificuldades para se manter as instituições autônomas zapatistas. Ainda assim, o movimento segue ativo, reinventando suas estratégias e fortalecendo sua base comunitária, sem abrir mão de seus princípios.
IHU – A experiência zapatista pode iluminar as lutas territoriais em curso na América Latina?
Fábio Alkmin – Sim, a experiência zapatista ilumina profundamente as lutas territoriais em curso no continente. Ela demonstra, de forma concreta, que é possível construir autonomias a partir de baixo, fora das estruturas estatais e capitalistas, afirmando outras formas de vida, de organização política e de relação com o território. Como discuto no livro “Geografia da Autonomia”, o zapatismo abre caminhos para novos modos de se fazer política, inspirando povos que enfrentam espoliação e violência. No livro, proponho um “diálogo-ponte” entre a experiência em Chiapas e outras experiências autonômicas na América Latina, como em Cherán (México), no Wallmapu (território Mapuche), na Amazônia brasileira e peruana, e entre os cabildos Nasa e Misak, na Colômbia. Embora cada processo seja particular, há elementos comuns que ressoam entre eles: a defesa radical do território, a recusa à tutela estatal e a construção coletiva de alternativas ao modelo capitalista e patriarcal. Assim, a persistência do zapatismo, sua capacidade de se renovar e sua coerência ética e política o tornam uma referência viva para os povos que lutam, hoje, por justiça, soberania e futuro.
IHU – Segundo sua pesquisa, o movimento autonomista está crescendo particularmente entre os indígenas na Amazônia brasileira. Pode nos dar um panorama de como esse movimento tem se expandido na região, mas também no país como um todo?
Fábio Alkmin – Minha pesquisa, especialmente a tese “Rios Vazantes”, defendida em 2024, aponta que a práxis autonômica tem se expandido de forma significativa entre os povos indígenas da Amazônia brasileira nas últimas décadas. Essa expansão ocorre como resposta à intensificação dos processos de espoliação territorial, do colonialismo interno e da própria descrença de que o Estado brasileiro irá resolver os problemas vivenciados pelos povos indígenas. Essa práxis se concretiza na Amazônia por meio de múltiplas estratégias de resistência e autogoverno. Identifiquei 13 delas, que organizei na tese como uma “árvore da autonomia”.
Entre as mais recorrentes estão a autodemarcação de territórios, retomadas, formação de grupos de vigilância e segurança comunitária, sistemas de justiça consuetudinária, protocolos autônomos de consulta, projetos político-pedagógicos próprios, comunicação indígenas, entre outros. Essa dinâmica não se restringe à Amazônia. Em escala nacional, formas de autonomia também têm emergido entre outros povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Embora as experiências indígenas sejam as mais expressivas, há uma demanda mais ampla por autodeterminação e autogestão frente à histórica negligência do Estado. A dificuldade crônica dos governos – inclusive os de esquerda – em demarcar e proteger territórios tem levado muitos desses grupos a construir formas autônomas de existir, resistir e governar seus espaços, independentemente da ação estatal.
IHU – Quais são os principais elementos que caracterizam a luta por autonomia na Terra Indígena Maró, no Pará, onde realizou parte da sua pesquisa?
Fábio Alkmin – Na Terra Indígena (TI) Maró, no oeste do Pará, encontrei comunidades profundamente organizadas e conscientes de seus direitos como povos indígenas. A partir de meados dos anos 2000, os povos Borari e Arapium iniciaram um processo coletivo de autodemarcação de seu território, incluindo retomadas de áreas invadidas. Com isso, afirmaram na prática o princípio da autodeterminação, enfrentando a inércia do Estado por meio de ação direta. Esse processo originou iniciativas autônomas de vigilância territorial e segurança comunitária, organizadas para conter ameaças externas e proteger o território. Também desenvolveram um projeto educacional próprio, enraizado nas realidades socioculturais e ecológicas da região, voltado à valorização dos saberes locais e ao fortalecimento das novas gerações.
Nesse sentido, a experiência da TI Maró é um exemplo potente do que ocorre na Amazônia – ações socioterritoriais, muitas vezes invisibilizadas, conduzidas por comunidades que não esperam reconhecimento institucional para desenvolver um autogoverno em seus próprios termos. Sou profundamente grato por tudo o que aprendi na TI Maró e busquei traduzir parte desse aprendizado no minidocumentário que fiz junto aos Borari em minha passagem por lá: “Autonomia Maró: relato de Dadá Borari, Amazônia paraense”. Disponível aqui.
IHU – Sua pesquisa sublinha que entre as pautas políticas dos movimentos autonomistas destaca-se a demanda pelo território e não propriamente pela terra. Como essas pautas estão sendo levadas adiante no Brasil e quais são as principais dificuldades enfrentadas?
Fábio Alkmin – Como geógrafo, um dos eixos centrais da minha pesquisa é justamente a distinção entre “terra” e “território” – fundamental para compreendermos as lutas indígenas contemporâneas. A demanda indígena não se restringe ao acesso à terra enquanto espaço genérico ou recurso produtivo, mas se volta à defesa de territórios, entendidos como espaços vitais, onde se realiza a reprodução cultural, espiritual, social e política dos povos.
Enquanto o conceito de “terra” está vinculado a uma lógica ocidental e capitalista – que a trata como propriedade, ativo econômico ou recurso explorável –, o território diz respeito à totalidade das relações que um povo estabelece com o espaço: é onde estão os ancestrais, onde se realizam os rituais, onde se transmitem saberes e se constroem as identidades coletivas dos povos. Uma forma simples de compreender essa lógica é observar a recusa dos povos indígenas em serem reassentados fora de seus territórios tradicionais, o que talvez faça sentido em uma lógica de reforma agrária camponesa.
Por exemplo, propor a solução de um conflito fundiário no Mato Grosso do Sul oferecendo uma “terra” no Acre é algo que simplesmente não faz sentido para essas comunidades. Permanecer no território de origem não é uma escolha entre outras, mas uma condição indispensável para continuar existindo como povo.
O Estado brasileiro, mesmo sob governos progressistas, historicamente reluta em reconhecer a autonomia como princípio político legítimo. Isso se deve, em grande medida, a uma concepção de Estado centralizado e homogêneo, que não reconhece o pluralismo jurídico nem a legitimidade de formas diversas de organização social e política.
Soma-se a isso a pressão constante de interesses econômicos, como o agronegócio e a mineração, que tratam os territórios indígenas como entraves ao desenvolvimento. Nesse contexto, os povos indígenas seguem lutando para afirmar seu direito de existir conforme suas próprias normas, resistindo à tentativa de redução de seus territórios à lógica mercantil da terra.
IHU – A criação do Ministério dos Povos Indígenas é consequência da luta autonomista dos povos indígenas no Brasil? Quais os efeitos políticos deste ministério nas lutas autonomistas dos movimentos indígenas brasileiros?
Fábio Alkmin – A criação do MPI é, sem dúvida, fruto direto da mobilização histórica dos povos indígenas no Brasil e representa uma conquista importante no campo institucional, sobretudo porque grande parte de seus quadros são indígenas. No entanto, não considero o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) como uma consequência direta das lutas por autonomia territorial, tal como abordo em minha pesquisa. A práxis autonômica indígena está enraizada no cotidiano dos territórios e se manifesta sobretudo fora das estruturas estatais, através de práticas de autogoverno, autodemarcação, educação própria, protocolos autônomos de consulta, entre outras. Já o MPI atua dentro do Estado, buscando garantir direitos constitucionais, mediar conflitos e enfrentar o racismo institucional que persiste nas políticas públicas.
É possível, sim, identificar uma articulação entre essas duas frentes – uma luta por autonomia “desde o Estado”, em que lideranças indígenas reivindicam espaço para definir, por exemplo, políticas de saúde ou educação de forma autônoma. Nesse sentido, o MPI pode funcionar como instrumento estratégico para fortalecer a autodeterminação, desde que mantenha sua escuta ativa aos territórios e não se desconecte das bases.
Ainda assim, é preciso reconhecer os limites dessa institucionalidade. O Estado brasileiro opera segundo uma lógica de controle e integração, e há sempre o risco de que estruturas como o MPI sejam capturadas por uma dinâmica de governo que reduz a autonomia a um tema técnico ou burocrático. Basta olhar para o nosso Congresso Nacional, predominantemente anti-indígena, tomado por interesses do agronegócio e da mineração. Portanto, em minha perspectiva, a potência do MPI dependerá de sua capacidade de sustentar um diálogo coerente com as lutas que seguem vivas nos territórios, e não apenas nas esferas formais do poder.
IHU – Segundo seu mapeamento, as experiências autonomistas no Brasil são majoritariamente de povos indígenas, seguidas pelos quilombolas, atingidos por barragens, o movimento negro e os movimentos de direitos humanos. Qual a situação dos demais movimentos? Por que eles são menos expressivos no país?
Fábio Alkmin – Essa diferença pode estar ligada, em grande medida, à relação histórica que os povos indígenas travaram com o Estado brasileiro – marcada por tutela, assimilação forçada e espoliação territorial. Ao contrário de outros grupos sociais que ainda depositam expectativas nas instituições estatais, muitos povos indígenas passaram por experiências reiteradas de negação de direitos e de invisibilização, o que gera uma descrença mais profunda no Estado. Além disso, a luta por autonomia entre os povos indígenas é também a continuidade de formas próprias de organização social, que antecedem em séculos ou milênios a própria formação do Estado brasileiro. Na Amazônia, por exemplo, falamos de ocupações humanas com mais de 12 mil anos – enquanto a presença efetiva do Estado brasileiro em muitos desses territórios é algo extremamente recente, datando, em alguns casos, de menos de cem anos.
Assim, para os indígenas, a autonomia não é algo novo, mas uma continuidade histórica. Já outros movimentos – como os urbanos, sindicais ou estudantis – tendem a disputar o Estado como arena legítima de transformação, o que pode explicar por que as práticas autonômicas são menos expressivas nesses campos. Isso não significa que não haja experiências relevantes, mas elas são mais pontuais e geralmente não envolvem a dimensão territorial e cultural profunda que caracteriza os processos de autonomia indígena e quilombola.
IHU – Você disse que “a construção da autonomia não possui uma conclusão, nunca podendo ser considerada uma experiência definitiva ou acabada, por mais duradoura que seja”. Dessa perspectiva, que futuro vislumbra para os movimentos autonomistas na América Latina?
Fábio Alkmin – Entre os povos indígenas, vislumbro um futuro de aprofundamento e fortalecimento das lutas por autonomia, especialmente diante da intensificação de ameaças como a crise climática, o avanço do extrativismo e a violência estatal. Essa perspectiva vai ao encontro de outros pesquisadores, como Raúl Zibechi (Uruguai) e Gaya Makarán (México), que também percebem essa expansão das experiências autonômicas.
Nesse aspecto, a autonomia não é um ponto de chegada, mas um processo contínuo de criação política, resistência cotidiana e reinvenção de formas de vida. Trata-se de uma práxis em constante movimento, que se atualiza diante dos novos contextos e desafios. Seu futuro dependerá da capacidade de articulação entre os povos, da valorização dos saberes próprios e da construção de alianças que respeitem seus modos de existência. Em um continente marcado por profundas desigualdades e conflitos territoriais, a autonomia segue como horizonte de dignidade, democracia e defesa da vida coletiva.
IHU – Que inspirações o movimento autonomista pode oferecer para repensar a política e para novos modos de fazer política num contexto de disputas territoriais, extração mineral e crise climática? De outro lado, quais são as potencialidades e os limites da estratégia autonômica?
Fábio Alkmin – Os movimentos indígenas que lutam por autonomia oferecem uma inspiração poderosa para repensar a política a partir do comum. Trata-se de uma política enraizada nos territórios, voltada à coletividade e à reprodução da vida – e não à acumulação de capital. Esses movimentos propõem outras formas de poder e decisão, baseadas em assembleias, conselhos, reciprocidade, mutirões e cuidado com a natureza. É uma política que descoloniza, despatriarcaliza e desmercantiliza, ao afirmar que outras formas de organização social e econômica não são uma utopia, mas uma realidade.
As potencialidades da estratégia autonômica estão justamente na criação de modos concretos de vida coletiva fora da lógica do capital, fortalecendo a autonomia territorial, cultural e política dos povos. Trata-se de experiências que, mesmo localizadas, oferecem pistas para transformações mais amplas.
Seus limites, por outro lado, decorrem tanto de pressões externas – como o Estado, o capital e o crime organizado – quanto de desafios internos, como disputas locais, desigualdades de gênero ou dificuldades para garantir sustentabilidade a longo prazo. Ainda assim, sua força reside na capacidade de manter viva a identidade e a criação política desde os territórios, como prática e horizonte de transformação.
IHU – Quais são as dificuldades do progressismo político em relação aos movimentos autonomistas na América Latina? O progressismo latino-americano tem favorecido ou dificultado as lutas dos movimentos autonomistas no continente?
Fábio Alkmin – O progressismo latino-americano, em geral, aposta na ampliação de direitos por meio da inclusão institucional e do fortalecimento do Estado como mediador dos conflitos sociais. Essa lógica, centrada na cidadania formal e na governabilidade, tende a entrar em tensão com os movimentos autonomistas, que reivindicam autodeterminação, ou seja, a construção de formas próprias de organização, autogoverno e relação com o território, muitas vezes em ruptura com os marcos estatais e jurídicos vigentes. Um dos principais entraves está no fato de que boa parte dos projetos progressistas na região continua baseada em um modelo econômico extrativista. Ainda que com maior regulação ou redistribuição social, trata-se de um modelo que depende da exploração intensiva de recursos naturais em territórios indígenas e tradicionais, perpetuando, sob novas roupagens, as mesmas lógicas de espoliação e colonialismo interno. Isso cria um limite estrutural para o reconhecimento pleno das autonomias, pois o exercício real do autogoverno indígena implica o controle efetivo sobre seus territórios – algo incompatível com as demandas do capital mineral, energético e agrário.
Em muitos casos, governos progressistas buscaram neutralizar ou domesticar os movimentos por meio de políticas compensatórias, reconhecimentos parciais ou tentativas de cooptação. Ainda assim, há situações em que se abriram brechas institucionais relevantes, como o reconhecimento constitucional da plurinacionalidade na Bolívia e no Equador, ou o fortalecimento de instâncias participativas e jurídicas voltadas aos povos indígenas. Quando essas aberturas são apropriadas estrategicamente pelas comunidades, podem fortalecer experiências autonômicas e ampliar seus espaços de ação. A relação, portanto, é ambígua e marcada por tensões. Reconhecer a autonomia como horizonte político legítimo exige uma crítica profunda não apenas ao neoliberalismo, mas também aos limites do próprio desenvolvimentismo progressista.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Fábio Alkmin – Gostaria de enfatizar que a autonomia não é uma ideia abstrata, mas uma práxis concreta, cotidiana e enraizada, construída pelos povos em seus territórios por meio da luta, da criação e da resistência. Isso não é uma utopia: já está acontecendo nos territórios indígenas. Além disso, é importante enfatizar que não se trata de um projeto separatista ou da criação de um novo Estado, mas, ao contrário, de uma luta anticolonial – uma forma de retomar o poder coletivo sobre a vida e o território. Compreender a autonomia nesses termos é também abrir espaço para imaginar outras formas de fazer política. Esse é o horizonte que busquei desenvolver nas obras “Rios Vazantes: autonomias indígenas e geografias anticoloniais na Amazônia brasileira“ e “Geografia da Autonomia: a experiência territorial zapatista em Chiapas, México”, pesquisas às quais venho me dedicando nos últimos 15 anos. A leitura dessas duas obras é um convite para quem deseja se aprofundar nos debates sobre lutas indígenas, autonomia e caminhos possíveis diante da crise política e civilizatória que atravessamos.