Para o pensador e pesquisador, desvendar os enigmas e atravessar as encruzilhadas de nosso tempo passa por considerarmos as experiências exitosas de povos de nativos do continente latino-americano
Embora a democracia pareça a única forma coletiva de deliberação, isso não é verdadeiro. No ocidente, na forma do Estado como conhecemos, as contradições da democracia representativa são gritantes e nos desafiam. É possível, porém, pensar outras formas de organização e representação social.
“Eu penso que o caminho seria formar um Estado que reforçasse os processos de autonomia das comunidades, essa é a ideia central do conceito e da filosofia dos Pontos de Cultura e do Cultura Viva, uma outra forma de Estado que potencializa aquilo que as comunidades fazem. É um Estado que também vai se moldando à semelhança e à cara do seu povo, que pressupõe mudar a forma de Estado”, propõe Célio Turino, secretário da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura entre 2004 e 2010, em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“É a partir dessa combinação entre o que se faz com o Estado, apesar do Estado e contra o Estado, que funciona como estratégia de sobrevivência, de convívio social e dentro da composição de outra forma de democracia. É uma democracia que às vezes reduzimos à ideia de deliberação de algumas decisões e, no máximo, que as pessoas dizem o que necessitam, o que anseiam, mas não se consegue traduzir em como fazer”, complementa.
Na contramão da autonomia dos povos e dos coletivos, sobretudo os populares, está o paradigma neoliberal. “Esse é o desafio que vivemos no tempo atual e explica muito do atual estágio do domínio neoliberal, agora numa outra fase. Essa fase de difusão com horror, esse protofascismo e até um pós-fascismo – não seria apropriado dizer que vivemos exatamente um fascismo; é um pós-fascismo, que talvez seja até com um horror ainda maior”, analisa.
Célio Turino (Foto: Reprodução | Facebook)
Célio Roberto Turino de Miranda possui graduação e mestrado em História pela Unicamp, pós-graduação em Administração Cultural pela PUC-SP e doutorado em Humanidades pelo programa Diversitas (FFLCH-USP). Foi secretário de Cultura e Turismo em Campinas (1990-1992); diretor de Promoções Esportivas, Lazer e Recreação na cidade de São Paulo (2001-2004); secretário da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura (2004-2010). É escritor e, desde 2011, viaja pelos rincões do mundo, sobretudo aldeias, vilas e favelas latino-americanas, escutando histórias e escrevendo sobre elas. "Caminha por aí, semeando as ideias da cultura viva e do bem-viver".
IHU – A ideia hegemonizada de democracia é uma ideia grega, radicalmente ocidental. A política, mesmo com todas as transformações a partir do iluminismo, é igualmente uma noção helênica. Como os povos da América do Sul, especialmente do altiplano andino, veem esses temas e o que essas populações nos ensinam a respeito?
Célio Turino – Muito boa questão. É necessário compreender que há diversas formas de participação e construção de consensos nas comunidades. Várias sociedades, inclusive, negaram o Estado. Não é o caso dos povos andinos, que havia o Estado de Tawantinsuyu, que foi governado pelos Incas (note, Inca não se refere a um povo e sim a um título equivalente a imperador). Esse modelo envolvia um estado plurinacional com diversos povos – Quéchua, Aimarás e outros – do Chile até a Colômbia. Houve e há outras nações indígenas que prescindiram do Estado, como no caso dos povos Guarani, que mantiveram intensa relação com os povos andinos. A fronteira fica em Samaipata, que é uma fortificação no limite entre os Andes e as terras baixas, no atual estado de Santa Cruz, na Bolívia.
Mapa do Estado de Tawantinsuyu (Foto: www.culturacusco.gob.pe)
Com os povos Guarani, por exemplo, que construíram uma sociedade até mesmo contra o Estado, a despeito de terem uma relação muito próxima com Tawantinsuyu, a forma de organização naquele período acontecia de uma outra maneira, a partir de processo de consenso e de equilíbrio. Mesmo o cacique, que vemos como um chefe, entre diversos povos indígenas não funciona assim. Aliás, essa é uma visão europeia do cacique. O cacique é um mediador. Inclusive, em Tupi, um termo que é mais usado é no Norte do Brasil, na Amazônia, é Tuxaua, não como uma chefe, mas como representantes, equivalente.
Eu estudei os processos de deliberação com o povo Ashaninka. Eles vêm dos Andes e foram adentrando a floresta amazônica. A maior parte dessa população vive do lado peruano, sendo que aproximadamente entre 1 mil e 1,5 mil vivem do lado brasileiro na região do rio Juruá e seu afluente, o rio Amônia, no Acre. Eu analisei um pouco o processo de construção decisória deles, mesmo em tempos atuais. A decisão nunca é deliberativa, ela é sempre construída a partir de consensos e relações de confiança. E, também, com uma prática muito profunda de alteridade.
Relato isso numa análise sobre os Ashaninka, em 2016: no mesmo momento em que eles faziam uma assembleia na Terra Apiwtxa, às margens do rio Amônia, que fica em Marechal Taumaturgo, no Acre, tomando uma série de deliberações a respeito do seu território, outros estavam vigiando as terras, tomando outras decisões de vigilância na região – foi uma área que foi toda recuperada pelos Ashaninka. Havia também outros que estavam em negociações com os Ashaninka no território do Peru. São processos de confiança, em que a alteridade é exercitada até prescindir de consulta, porque todos sabem que as decisões tomadas são baseadas na ética da responsabilidade e no compromisso comunitário.
Um outro exemplo. Parque Tipnis, na Bolívia, é um parque equivalente ao Parque Nacional do Xingu. A despeito de ser um presidente indígena, Evo Morales teve algumas propostas, digamos, de caráter mais neodesenvolvimentista extrativista. E uma delas foi a proposta de cortar o Parque Tipnis com uma estrada, inclusive seria com financiamento do BNDES, construída por uma empreiteira brasileira, a OAS.
Os povos indígenas daquele território se revoltaram contra a medida – imagine se houvesse aqui no Brasil uma proposta de fazer uma estrada no Parque Nacional de Xingu. Isso foi em 2013. Houve um grande movimento na Bolívia e eles foram para La Paz. Eu estava na cidade à época e acompanhei o processo de assembleia deles. O tempo de duração da assembleia: 60 dias. Aparentemente nós poderíamos dizer: "Mas que coisa, que ação demorada. Como que leva 60 dias para tomar uma deliberação?" E nesse período todos os dias havia assembleia com escuta profunda. Eles ficaram 60 dias acampados negociando. No fim, chegaram a um consenso, e o consenso prescinde inclusive da votação.
É uma forma de compreender que todos estavam de acordo: um fala por todos, todos falam por um. No olhar ocidental europeizante, dir-se-ia: “Mas que processo demorado, como isso pode atrasar uma deliberação?” Muito pelo contrário, porque, quando a deliberação é tomada, é feita com tanta consistência que ela se espraia por toda a comunidade. No caso do Tipnis, não houve a construção da estrada, eles foram vitoriosos. Fizeram prevalecer a opinião dos indígenas das terras baixas, que são esses que negam a dimensão do Estado.
Voltando à dimensão do Estado no período incaico. Essas deliberações ocorriam já numa outra dimensão, mas que era transferidora de responsabilidade. Tanto que havia a palavra final do Inca. Quando os espanhóis chegam ao território, foi com facilidade que dominaram esse império, com 3 milhões de quilômetros quadrados na América do Sul. Isso ocorreu também porque havia um conflito grande entre dois irmãos, Atahualpa e Huascar, com o respectivo poder centralizado em Cusco e Quito. A partir dessa disputa entre os irmãos, os espanhóis tomaram partido e conseguiram vencer o Império dos Incas, que é Tawantinsuyu. Às vezes, as pessoas confundem, pensam que Inca é um povo, quando o Inca, na verdade, é um título de imperador, mais ou menos traduzindo.
São essas dimensões que precisamos aprender com esses povos. Sobre o fato de que, entre os povos originários aqui da América Latina, há diferenças de interpretação, como creio que demonstrei apresentando a diferença desses povos que negam o Estado quanto os que estavam em construção do Estado.
IHU – O famoso artigo de Pierre Clastres, intitulado “A sociedade contra o Estado”, é um clássico incontornável na literatura antropológica e política. A partir desta provocação e considerando os modos de organização social dos povos nativos americanos, é possível pensar o Estado a partir das resistências indígenas, quilombolas, ribeirinhas, etc.?
Célio Turino – Eu penso que sim. Tanto que tratei disso na primeira pergunta acima, falando exatamente dessa diferença. Pierre Clastres foi o primeiro antropólogo a perceber a dimensão de negação da necessidade do Estado para povos com civilizações complexas e sofisticadas, como os Guarani.
Antes de trabalhar no Ministério da Cultura, antes de propor os Pontos de Cultura e o Programa Cultura Viva em 2004, eu estive no sul do México, em Chiapas, e pude acompanhar um pouco a experiência das filas zapatistas a partir de um processo de autonomia. A princípio, as autonomias comunitárias praticadas nos Pueblos Zapatistas são muito poderosas. No entanto, quando voltei a Chiapas em 2019, um pouco antes da pandemia, percebi – com uma diferença de quase 17 anos entre uma estada minha e outra, observando esses processos – que a ideia de se prescindir totalmente da dimensão do Estado traz muitas limitações. Porque, de todas as organizações sociais, pelo menos nesse estágio da civilização em que vivemos, o Estado ainda é a solução mais abarcativa existente, no sentido de compreender uma organização da sociedade de forma mais ampla.
No atual momento histórico não há como prescindir totalmente do Estado. A vida em comunidade é afetada por dois sistemas muito poderosos, que são o sistema de Estado e o sistema Mercado. Ambos com dois reguladores muito fortes: o “Poder” na regulação do Estado e o “Dinheiro” na regulação do Mercado. A construção de processos plenamente autônomos se torna insuficiente diante de reguladores tão poderosos. Mas isso não significa a manutenção do Estado tal qual ele está; é necessário pensar a construção de um Estado de novo tipo, porque a simples reprodução do Estado tal qual como foi construído, sobretudo aqui na América Latina, reforça uma dimensão colonial e sem vinculação direta com nossas raízes ancestrais. Refiro-me não somente aos povos originários, mas às construções comunitárias feitas na América Latina, seja a partir dos quilombos, seja a partir da cultura caipira ou da cultura das periferias, que são culturas de colaboração e que só aconteceram porque o Estado as abandona. São estratégias de resistência e sobrevivência.
Em muitos momentos isso tem formado uma sociedade popular a partir de baixo. Eu penso que o caminho seria fomentar um Estado que reforçasse os processos de autonomia das comunidades. Essa é a ideia central do conceito e da filosofia dos Pontos de Cultura e do Cultura Viva, uma outra forma de Estado que potencializa aquilo que as comunidades fazem. É um Estado que também vai se moldando à semelhança e à cara do seu povo, que pressupõe mudar a forma de Estado.
O Estado, há 5 mil anos, constitui-se a partir do conceito da regra do controle. Nós precisaríamos passar por uma outra etapa de Estado, um Estado que colabora e compartilha, no lugar de impor, dispõe. Essa não é essa lógica que predomina, seja no Brasil, seja nos demais países da América Latina e mesmo mundo afora. O aprendizado com os povos originários e as experiências comunitárias populares latino-americanas têm muito a nos ensinar.
IHU – É possível, mesmo em grandes centros urbanos, tomar como paradigma de vida e relações alguns modos de organização de povos ancestrais de nosso continente?
Célio Turino – Sim, porque, sobretudo na América Latina, vivemos sob o estado de exclusão. Umas das razões de nossas sociedades não terem se esgarçado totalmente é resultante de nossa solidariedade profunda, que está presente no mutirão em colaboração: mães que não trabalham fora e que cuidam dos filhos das mães que arrumam algum trabalho porque não têm uma creche, uma família que colabora com a outra. No Rio Grande do Sul com a catástrofe das inundações, o grosso da solidariedade aconteceu entre os que menos tinham. É assim aqui e em vários outros lugares e em vários outros campos.
O caminho seria fortalecer e cultivar essa solidariedade. Tem um psicanalista jesuíta de quem eu gosto muito, cujo pensamento está presente nas concepções do Cultura Viva e do Ponto de Cultura. Chama-se Ignacio Martín-Baró. Ele era da Universidade de San Salvador e foi morto em 1989 [no que ficou conhecido como massacre dos jesuítas de El Salvador]. Ele falava da necessidade de “potenciar as virtudes do povo”. Isso significa que nem tudo que é do povo é bom, há muitas feiuras e malvadezas em todas as pessoas, da elite ou não. Nem tudo que o povo faz é puro, porque ele é atravessado por uma série de preconceitos, uma série de determinações. É muita miséria humana.
Mas há muita virtude também. O papel de uma ação cultural transformadora – não falo da ação cultural stricto sensu, mas do processo educativo para construir um Estado de novo tipo, que seria ampliado a partir do cultivo dessas virtudes, dessas belezas que estão presentes naqueles momentos mais desesperadores da vida. Porque há essa beleza muito profunda que precisa ser mostrada, muitas vezes para nós mesmos, porque às vezes a gente não tem a capacidade de ver. Também para o próprio povo que pratica essas belezas e essas virtudes, e que também não as percebe, porque está absorvido por uma vida extremamente pesada e dura.
É a partir dessa combinação entre o que se faz com o Estado, apesar do Estado e contra o Estado, que funciona como estratégia de sobrevivência, de convívio social e dentro da composição de outra forma de democracia. É uma democracia que às vezes reduzimos à ideia de deliberação de algumas decisões e, no máximo, que as pessoas apresentam suas necessidades, dizem o que necessitam, o que anseiam, mas não se consegue traduzir em como fazer. Para uma democracia de novo tipo, mais importante que identificar “o que fazer” é o “como fazer”.
Uma democracia, para que ela tenha projetividade e dê um passo adiante no padrão de democracia que conhecemos hoje, só será alcançada quando as comunidades e as sociedades conseguirem prescindir até mesmo de processos deliberativos maiores. Porque esse será o ideal de confiança pleno que se estabeleceu naquela comunidade, como no exemplo dos Ashaninka. É algo que alcançaremos de imediato? Não. Mas deve ser pensado em perspectiva.
IHU – São tempos sombrios, como o que vivemos, que parecem que sua fala nos coloca diante de uma utopia distante...
Célio Turino – São tempos muitos desesperadores, mas se olharmos com um olhar mais sensível, há todos os elementos para sairmos desse atoleiro. Eles estão todos na nossa mão e não conseguimos enxergá-los, vamos apagando por nós mesmos.
Martin-Baró falava em potenciar as virtudes do povo durante o período da guerra civil. O conflito em El Salvador foi terrível, teve o uso de Napalm [arma química conhecida como agente laranja]. Eu circulei por vários lugares em que não nascem mais árvores, está tudo seco – e era proibido o uso Napalm depois da guerra do Vietnã, como decisão internacional e em El Salvador nos anos 1980 utilizou. Foi um período de vários massacres; eles jogavam as crianças para o ar e “fincavam” a baioneta em seus corpos, invadiam aldeias e vilas e faziam isso.
Quando Martin-Baró escreve sua tese, descreve exatamente esse momento, que é o mais terrível da guerra, a fase mais horrível, em que o povo pratica atrocidades contra os seus próprios membros. Não era a elite de um lado e o povo pobre do outro, havia um atravessamento. E ele conseguiu enxergar isso: mesmo nesses momentos de horror, há essas virtudes. O desafio é conseguir potenciar essas virtudes para que o próprio povo as perceba.
Observando atualmente, parece que é uma utopia, algo romântico, mas não é. É algo prático. Se observarmos, em alguns lugares com alguns povos, é praticável. Eu não conheço muito bem a experiência do Curdistão, porque pesquiso América Latina, mas acompanho por leituras. Trata-se de uma experiência muito interessante com um outro tipo de feminismo, tem uma vanguarda das mulheres. Foram elas que expulsaram o Estado Islâmico (ISIS) do território. E elas têm uma vantagem: se alguém é morto por uma bala disparada por uma mulher, ele jamais vai ao Paraíso. Com isso, eles ficavam apavorados em enfrentar as guerrilheiras curdas.
IHU – A promessa capitalista e neoliberal tem como eixo organizador o futuro. De um jeito particular está fundada em uma promessa futura (algo bastante judaico-cristão). Como, ao contrário, o tempo da política, sob a perspectiva de muitos povos nativos, não está em olhar para o futuro, mas precisamente no passado, no ancestral?
Célio Turino – Isso é o q’ipur kama [até o dia de atrás] do povo Aimará. Seria como se nos cumprimentássemos com um “até ontem”. Ele não é entendido como um movimento contínuo. Para diversos povos indígenas, não existe o tempo passado nem o tempo futuro, existe só o tempo presente, mas, o tempo presente é percebido enquanto um movimento.
Às vezes, pensa-se que eles têm uma forma circular de vida, que é uma vida que está sempre conectada com o ambiente, com as estações, com as mudanças das estações no planeta, mas não é assim. Não é um pensamento puramente circular, é um pensamento que ocorre em espiral, ele predispõe uma circularidade, mas ele dá passos, saltos. Tem um vai e volta. Os saltos evoluem, mas eles são menos perceptíveis para o olhar apressado ocidental. O incrível é que estamos falando dos povos originários e da forma de pensar, desse jeito espiralar e vamos para a Europa. Pegamos a sequência conhecida como Sequência de Fibonacci, matemático da península itálica que viveu entre os séculos XII e XIII. A sequência é atribuída a ele a sequência, mas tem uma origem na antiguidade mais profunda. Ele a sistematizou. É a mesma sequência.
É a observação dos movimentos da natureza e como essas formas ocorrem. No caso de Fibonacci, ele começou observando a procriação de coelhos e percebeu que havia uma sequência numérica e a sequência numérica também é aplicada, por exemplo, no movimento dos girassóis e em diversas outras formas da natureza. É mais ou menos assim: parte do zero, acrescenta um numeral 0+1=1, faz uma segunda volta, acrescenta o numeral anterior e o numeral futuro, 1+1=2. Se faz um terceiro movimento, 2+1=3, e aí tem um salto que vai começar a acontecer. O três volta e soma com dois, 3+2=5. Na outra volta, o cinco vai somar ao resultado anterior, 5+3=8; 8+5=13; 13+8=21 e por aí vai. Dessa forma, constrói-se o movimento espiralar.
Em todos os continentes há povos de raiz, inclusive na Europa. Lá houve mais uma disciplinarização, uma educação e um pensamento racional que separou esse pensamento. Antes de olhar, mesmo na Idade Média, na Antiguidade Europeia e Ocidental, havia essa percepção de processos de mudança que incorporam a circularidade e o movimento. Penso eu que esse também é um aprendizado importante precisamos ter. A vantagem aqui, no caso da América Latina, é que temos uma quantidade muito presente de povos de raiz, que pensam dessa forma, inclusive um verbo é criado: corazonar.
Corazonar é a fusão entre coração e razão, o sentir/pensar, aproxima o sentimento da razão, da emoção, da racionalidade. Atualmente, o Papa Francisco usa uma metáfora que incorpora mais um processo, propondo a harmonização da linguagem do coração, da cabeça e das mãos. Ou seja, é a linguagem da emoção, a linguagem da razão e a linguagem prática, da ação. O grande problema do mundo contemporâneo é que nós não conectamos essas linguagens. Estamos em uma total desarmonia: sentimos de uma forma, pensamos de outra e agimos de outra mais diferente ainda. E é isso que está dando esse caos enorme no mundo. Vai levar o mundo a um colapso civilizatório e ambiental.
IHU – Como a noção de tempo dos Aimarás, mas também de outros povos nativos do continente, impacta nas formas de organização e luta política?
Célio Turino – Nos tempos atuais, mesmo movimentos sociais, o ativismo, esse ativismo de internet e essa chamada polarização que o mundo vive, que não é um fenômeno brasileiro; ele resulta de uma profunda desconfiança e competição, mesmo no campo popular de luta social. Tudo é muito competitivo. Às vezes, os grupos se fragmentam demais, por um excesso de protagonismo que deixa de ser comunitário para ser protagonismo individual. Sempre “eu” quero ser porta-voz de uma causa e a minha causa é mais importante que a “sua”, isso vai subtraindo e fragmentando.
O que podemos aprender nessas relações comunitárias é, primeiro, desenvolver o fazer político a partir da lógica da confiança. A confiança só se estabelece se há de fato vínculos e convivência, sem vínculo e convivência não há confiança. Note que hoje, nessas militâncias por internet, a convivência é muito fluida e não há muita confiança no outro. Para confiar, precisa conviver, para conviver precisa cooperar. Essa talvez seja a grande vitória do neoliberalismo: ele quebrou, até dentro dos setores populares, a crença, a possibilidade desses setores perceberem que, convivendo, cooperando e confiando, conseguem melhores resultados.
No ensino primário, pelo menos quando eu estava no primário, aprendíamos, em Matemática, o máximo e mínimo denominador comum (MMDC). Trata-se de conseguir pegar o sumo de uma casca e conseguir compreender os pontos de convergência, com o mínimo denominador comum. O sucesso do neoliberalismo está em ter feito o campo popular, dos explorados, dos oprimidos, valorizar muito mais as diferenças e, com isso, produzir uma hiperfragmentação, destruindo a capacidade de conseguir construir as convergências, apagando denominadores comuns.
Eis o desafio que vivemos no tempo atual e explica muito do presente estágio do domínio neoliberal, agora numa outra fase. Essa fase de difusão com horror, esse protofascismo e até um pós-fascismo – não seria apropriado dizer que vivemos exatamente um fascismo; é um pós-fascismo, que talvez seja até com um horror ainda maior. Mas isso ocorre porque se estilhaçaram essas possibilidades de convergência e de encontro da unidade.
Fique atento à publicação da segunda parte desta entrevista aqui no site do IHU, em que Célio Turino aprofunda a questão do Bem-viver e traz mais elementos para pensarmos outras formas de sociabilidade e sobrevivência no Antropoceno.