Por: Jonas | 27 Junho 2013
Pesquisadora da Universidade de Puebla e da Universidade Nacional Autônoma do México, Raquel Gutiérrez Aguilar (foto) estudou e registrou os processos de assembleias constituintes do continente, comparando os casos do Equador e Bolívia. Aqui, propõe repensar a mudança social nos países da região em busca de “uma política do comum”.
Raquel Gutiérrez Aguilar nasceu no México. Estudou filosofia e matemática e se comprometeu com a luta dos salvadorenhos da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, no exílio. Em seguida, nos anos 1980, foi para a Bolívia. Ali, esteve entre os membros fundadores do Exército Guerrilheiro Tupak Katari, junto com o seu então companheiro e hoje vice-presidente Alvaro García Linera. Após acompanhar as insurgências das comunidades aimarás e quéchuas, passou vários anos na prisão, nos anos 1990. Após isto, integrou o grupo Comuna.
Fonte: http://goo.gl/p3CLv |
Retornou ao México já neste século e se dedicou a escrever sua tese de doutorado sobre a experiência da guerra da água na Bolívia, que também vivenciou como ativista. Aqui, um diálogo sobre sua preocupação principal: como construir um sentido comum dissidente.
A entrevista é de Veronica Gago, publicada no jornal Página/12, 25-06-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Como pensar a situação atual na América Latina? Há setores que concebem um fim do ciclo dos chamados governos progressistas.
Não estou segura de que a expressão “fim do ciclo” possa ser aplicada aos governos progressistas da América Latina... Existem algumas lacunas nos processos que seguem, por exemplo, da Bolívia e Equador em relação à Venezuela, principalmente, após a morte de Chávez. No entanto, mais do que um “fim do ciclo”, acredito que estamos presenciando a consolidação política de um ciclo que começou após os processos constituintes, tanto na Bolívia, como no Equador. Acredito que isto que presenciamos é, sim, a consolidação crescente do monopólio das prerrogativas sobre as decisões políticas mais importantes, nas mãos de pequenos conjuntos de agentes políticos. Esta obstrução – para dizer de alguma maneira – das outras visões e caminhos políticos, que há anos foram abertos, é o que, na minha perspectiva, chegou a um ponto de saturação extraordinário.
No que essa saturação se expressa?
Na Bolívia e no Equador, acredito que há um forte momento de consolidação estatal e de crescente tutoria das iniciativas populares e indígenas, que precisam abraçar cada vez mais aquilo que é decidido por outro. É isso o que vejo: reiteração de formas liberais do político, afiançadas na expropriação da capacidade social de intervir nos assuntos públicos que lhes competem.
Existem reconfigurações do Estado que podem ser chamadas de pós-neoliberais?
Penso que o momento atual não é igual ao momento liberal da política e do político que, durante os anos 1990, assolou a América Latina. Isso é facilmente aferível vivendo, como faço agora, no México, onde ainda está presente e vigente, na discussão política oficial, o ideário (neo)liberal de reforma estrutural, que limita a intervenção estatal, agride o que se costuma chamar de “conquistas sociais” e impulsiona o predomínio dos interesses empresariais monopolistas, mediante a defesa do predomínio do mercado. Isso, acredito, já não ocorre, já não se ouve, em países onde ocorreram mobilizações vigorosas e enérgicas, durante a década passada, que atravessaram processos constituintes e que possuem governos progressistas.
Após essas mobilizações e mudanças, em nível de Estado, arma-se um novo tipo de conflito?
O que é espantoso é que nos países onde a mobilização social foi forte, continua vigente o predomínio pleno dos interesses do capital transnacional mais poderoso, que agora parece, também, ter “capturado” as formas estatais reconstruídas após a sacudida da década passada. Isto é o que se encontra quando se procura entender o que acontece a partir da semelhança dos conflitos que ocorrem em países cada vez mais liberalizados e formalmente “democráticos”, como o México; ou no Equador e Bolívia, onde os povos indígenas, de vez em quando, precisam defender seus territórios e suas atividades, ameaçados por novos afãs de pilhagem, lutando contra a imposição totalmente sem consulta de políticas que, no Sul, supostamente são incentivadas “pelo bem” desses mesmos povos que se defendem. Novamente, está em causa o que despontou nos tempos agitados e rebeldes como um horizonte do comum, que deslocou fortemente os termos do discurso político liberal moderno.
O que significa o horizonte do comum como política?
No meu ponto de vista, o que é feito há alguns anos foi visto como possibilidade política, numa espécie de disposição coletiva sintonizada, não isenta de tensões internas, para se reapropriar tanto da riqueza material, como de capacidades políticas anteriormente expropriadas. Esta chave de leitura permite entender as recorrentes lutas que buscaram estabelecer limites à ação expropriadora e privatizadora do capital mais poderoso, como também reuniram esforços para estabelecer novos termos de controle social da riqueza recuperada (águas, matas ou hidrocarbonetos). A partir deste conjunto de ações de luta, as sociedades paulatinamente recuperaram e reconstruíram capacidades políticas em sentido mais amplo, como as possibilidades de gerir coletivamente o que a todos diz respeito, porque atinge todos. Tendencialmente, isto erodiu e ameaçou dissolver certos termos modernos de compreensão do político, como a distinção privado/público. Os momentos de luta também foram tempos enérgicos de produção e reprodução do comum. O comum não é uma categoria classificatória que se refira à propriedade, mas é uma ideia-força central da reorganização da convivência social.
[O comum] Supõe uma nova forma de cooperação e de autoridade? Qual é sua diferença em relação ao público?
O comum é aquilo que se produz coletivamente e cujo controle e decisão não se delegam para outras mediações políticas que não sejam os mesmos que o produzem. O comum é uma maneira de nomear o “público não estatal”. Antes de tudo, o horizonte do comum é uma perspectiva de luta lançada para se reapropriar e recuperar, direta e coletivamente, o que foi retirado das mãos das coletividades. Neste sentido, o comum não é algo meramente herdado, mas, antes de tudo, é produção reiterada de sentido e de vínculo, para se acumular coletivamente capacidades de intervenção em assuntos gerais.
Como pode ser lida a violência atual no México? Como se olha para a questão do narcotráfico em relação aos movimentos sociais?
Este é um assunto de grandes dimensões... Apresento-lhe algumas chaves de interpretação. No México, para além da chamada “transição democrática”, continua plenamente vigente uma forma do político que se alimenta de um patrimonialismo descarnado. O México é o país dos monopólios e de sua defesa através de todos os meios de comunicação. Nesse contexto, a guerra contra as drogas – impulsionada pelos Estados Unidos e que no México foi desencadeada, sobretudo, durante o segundo governo do conservador Partido Ação Nacional (PAN) de Calderón – obrigou a uma redefinição dos termos de um dos negócios mais rentáveis que existe no país: o da produção e tráfico de substâncias controladas. Isto desencadeou uma verdadeira guerra em várias frentes e com muitos atores, cuja possível identificação nem sempre é clara.
Desta forma, generalizou-se um confronto em que se distinguem dois níveis: por um lado, o violento duelo entre máfias que exercem o controle territorial como garantia da permanência de seus negócios e, por outro, uma guerra clandestina contra os povos e a população civil, que pretendem obrigar a obedecer a balaços, somando assassinatos. Tudo isto, não somente é muito confuso, mas altamente perigoso. E o pior de tudo é que esta autêntica dissolução da autoridade estatal – em muitos lugares da República – é encoberta com um véu de opacidade quase total, pois a informação dificilmente circula. O que é certo é a proliferação de uma infinidade de lutas locais autodefensivas de múltiplas comunidades, localidades, povos e regiões. Nestas lutas, existe a esperança de reconstrução das ruínas que habitamos.
Diante desta situação, quais são os desafios para os militantes?
Este é um tempo para as palavras e as conversações. Precisamos reconstruir o sentido comum dissidente e de luta, pois quase tudo o que conseguimos esclarecer na anterior onda de mobilizações e levantes foi “recodificado” em termos estatais. Primeiro ocorreu uma “captura” semântica de nossas palavras, que já não designavam com clareza aquilo que aludíamos nos tempos de maior crise política. A isto, segue uma “captura” política e, em seguida, “organizativa” dos conteúdos políticos mais afiados de nossas lutas. Por isso, convém voltar a centrar a discussão não tanto no que atualmente os Estados e os diferentes governos fazem, mas naquilo que foram nossos aprendizados.
Serve o conceito de dignidade que, em seu momento, os zapatistas lançaram para pensar as lutas atuais?
Para mim, a dignidade é sempre o ponto de partida da autonomia política e moral, assim como das aberturas que imprimem às jaulas do medo e da desconfiança. Poderia se dizer, sendo formais, que a dignidade sempre é necessária, embora possa não ser suficiente no desdobramento das lutas pela transformação social e política.
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“O comum é uma ideia-força central da reorganização da convivência social", afirma pesquisadora mexicana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU