“Não há regimes de arte, há arte contra seus próprios regimes”. Entrevista especial com Manuel Moyano Palacio

No contexto em que vivemos, frente à iminente catástrofe do Antropoceno, a arte não oferece alternativas para salvar o mundo em que vivemos, mas, talvez, oferecerá imaginários para criarmos um mundo outro

Reprodução da imagem da obra Uma e Três Cadeiras, 1965, de Joseph Kosuth. | Foto: The Museum of Modern Art (MoMA), New York

Por: Baleia Comunicação | 21 Março 2025

A vida diante da iminência do fim do mundo (ao menos para nossa espécie) nos leva à tentativa de trilhar caminhos que, embora incapazes de nos redimir, possam trazer novas camadas de compreensão da realidade. Nisso está o encontro com a diferença, com o realmente novo (o avesso da inovação), com a vida, enfim.

“Na arte se abre um portal para o Outro. Rumo a algo que seja autônomo de tudo. E essa autonomia, não se trata de l’art pour l’art, mas de arte para a vida. A arte arrasta o mundo, desmonta-o, leva a nossa vida consigo e, com isso, inaugura o resto das coisas. Não somos os mesmos quando a arte nos toca e ainda assim não podemos dizer que tenhamos mudado. Essa é a vida da arte”, propõe Manuel Moyano Palacio, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Nisso conflui dois aspectos essenciais de nosso tempo, arte e política, a esta altura um tanto mal compreendidos. “É claro que o que entendemos por arte não é o mesmo que era entendido no Renascimento, nem na Idade Média cristã, nem na Antiguidade. Mas quando a arte acontece, convulsiona seu tempo, sua época e exige formas de leitura que não existem. E se a arte continuar existindo, ela será capaz de reorganizar até mesmo as novas formas de leitura”, explica o entrevistado.

Nesse contexto, arte e política se conectam e se complexificam em um ambiente de democracia de baixa intensidade, expressão que se refere ao “novo regime fascista que não existe mais por meio de ditaduras ou golpes de Estado. Agora o fascismo está sendo inoculado capilarmente através da manipulação high tech de cada parte de nossa sensibilidade, tanto física quanto intelectual”, assevera Palacio. “O problema é que o atual ‘sistema da arte’ responde principalmente com ‘artivismo’, com uma postura política por parte dos artistas que direcionam suas obras para uma crítica moral do mundo. Mas a indignação não é suficiente. É até o insumo mais necessário e provocado pelo tecnocapitalismo liderado por Elon Musk e seu exército de idiotas”, complementa.

“A arte só pode salvar a arte, não o mundo. Mas pode apontar para outro mundo. Mas para fazer isso, ela precisa dos elementos deste mundo, precisa arrastá-los, mesclá-los, fundi-los e deixar que a novidade aconteça fora dos cânones do novo – isto é, ela precisa redefinir o que é novo continuamente”, destaca.

Manuel Moyano Palacio (Foto cedida pelo entrevistado)

Manuel Moyano Palacio nasceu em Córdoba, na Argentina. É ensaísta e escritor. Publicou os livros de ensaio Disco Wilcock (Buenos Aires, Tren en movimiento, 2023), Giorgio Agamben. El uso de las imágenes (Ediciones La Cebra, 2019) e Bonino. La lengua de la inocencia (Borde Perdido, 2017), o livro de poemas Ética para nada (Lisboa Editorial, 2019) e o romance La ciega (Taller Perronautas, 2021). Foi contemplado com a bolsa da Academia Espanhola de Roma (2022) e bolsas de doutorado e pós-doutorado do CONICET (2014-2021).

Confira a entrevista.

IHU – No mundo de hoje, por que dizer sim à arte, à vida e à filosofia?

Manuel Moyano Palacio – Chega um momento em que se diz sim a algo que vai além do mundo, mesmo que se tenha nascido dele. Neste momento somos tomados por algo que pode ser a arte ou a filosofia, ou simplesmente outra vida. E isso nos salva do mundo. É uma condição solitária que vale a pena assumir.

IHU – Como podemos pensar contemporaneamente a autonomia da arte?

Manuel Moyano Palacio – Como hiperautonomia. Como uma ruptura na ordem mundial. Ou, mais precisamente, como uma ruptura que rompe com a narrativa do fim do mundo que nos é anunciada em todos os meios de comunicação existentes – sejam eles de direita ou de esquerda. A autonomia não é uma referência ao campo específico da arte, como algo distinto da política, da economia, da ética, etc. Mas sim um sinal aberto, de uma imaginação radical. Na arte – através da modernidade estética e subterrânea inaugurada pelo Romantismo, tendo as vanguardas como um momento de consolidação dessa ruptura, bem como em sua continuação na chamada arte contemporânea – abre-se um portal para o Outro. Rumo a algo que seja autônomo de tudo. E essa autonomia, não se trata de l’art pour l’art, mas de arte para a vida. A arte arrasta o mundo, desmonta-o, leva a nossa vida consigo e, com isso, inaugura o resto das coisas. Não somos os mesmos quando a arte nos toca e ainda assim não podemos dizer que tenhamos mudado. Essa é a vida da arte. Quando perguntam a Alberto Laiseca para que serve a arte, sua resposta é enfática: “A arte faz todo o resto funcionar”.

IHU – Existe na arte algo que seja irredutível ao seu próprio zeitgeist, que escape aos imperativos de seu próprio tempo ou dos regimes de leitura da atualidade?

Manuel Moyano Palacio – A natureza irredutível da arte é que ela está fora do tempo e, portanto, não pode ser interpretada apenas dentro das categorias ou regimes de uma época, embora, ao mesmo tempo, seja impossível evitar fazê-lo. É claro que o que entendemos por arte não é o mesmo que era entendido no Renascimento, nem na Idade Média cristã, nem na Antiguidade. Mas quando a arte acontece, convulsiona seu tempo, sua época e exige formas de leitura que não existem. E se a arte continuar existindo, ela será capaz de reorganizar até mesmo as novas formas de leitura. Quando Duchamp introduziu o mictório no museu, ele introduziu uma ruptura no próprio conceito de arte. Não se trata apenas de uma questão de “uma nova partilha do sensível”, como diria Jacques Rancière, de maneira excessivamente historicista. Trata-se do caos. A arte como o caótico dos tempos e das eras, como uma sensibilidade de um tempo desarticulado. Não há regimes de arte, há arte contra seus próprios regimes.

Reprodução da obra Fonte, de Duchamp, em fotografia de Alfred Stieglitz tirada após a exposição da Sociedade dos Artistas Independentes.
Ao fundo, no cenário, a pintura The Warriors, de Marsden Hartley. | Foto: Alfred Stieglitz – NPR arthistory.about.com, Domínio público, Wikimédia Commons.

IHU – Em que sentido é possível compreender o design como o avesso da arte?

Manuel Moyano Palacio – O design pode se basear em elementos da arte, mas sua função é, como Boris Groys destacou, utilitária. Tem um fim e um objetivo. Em vez disso, parafraseando o conhecido verso de Angelus Silesis, a arte não tem um porquê, ela floresce porque floresce. Não tem objetivo nem fim. É aí que reside sua violência abismal que precisamos enfrentar. Não há fundamento para a arte, nem escola à qual recorrer para justificá-la.

Entretanto, no design a violência está na sua aplicação técnica. Seduzir, manipular o olhar, controlar os corpos através de dispositivos sensíveis. É a mesma diferença que há entre literatura e programação. A literatura nunca sabe para onde vai, por isso pode ser sustentada pelo mais terrível ou pelo mais banal. A programação (pro-grama: escrito/previsto antecipadamente), por outro lado, busca predefinir canais de palavras com base na tentativa de absorver tudo. Busca direção, cria vetores de controle e antecipação.

IHU – O que é, propriamente, democracia de baixa intensidade e como isso afeta o que poderíamos chamar de “sistema da arte” atual?

Manuel Moyano Palacio –Democracia de baixa intensidade” é um eufemismo acadêmico para dizer que vivemos em um novo regime fascista que não existe mais por meio de ditaduras ou golpes de Estado. Agora o fascismo está sendo inoculado capilarmente através da manipulação high tech de cada parte de nossa sensibilidade, tanto física quanto intelectual. O problema é que o atual “sistema da arte” responde principalmente com “artivismo”, com uma postura política por parte dos artistas que direcionam suas obras para uma crítica moral do mundo. Mas a indignação não é suficiente. É até o insumo mais necessário e provocado pelo tecnocapitalismo liderado por Elon Musk e seu exército de idiotas.

IHU – Há arte fora do sistema capitalista contemporâneo? Como pensá-la em uma espécie de “fora” dos imperativos de captura, de algoritmização e de produção de ativos financeiros nos meios digitais?

Manuel Moyano Palacio – Se continuamos a fazer a pergunta pela arte, como Hernán Borisonik demonstra em seu mais recente livro, é porque, apesar de tudo, há algo na arte que não é apenas uma mercadoria. Algo que resiste à redução ou captura por qualquer lógica capitalistaalgorítmica, financeira, museológica, etc. Esse exterior carrega consigo o valor de troca, o valor de uso e o valor de exposição com os quais a arte sempre foi capturada. Isso só pode ser feito na própria obra. Em uma performance, uma instalação ou simplesmente em um gesto conceitual. A arte cria uma obra de “valor sem-valor”: essa aporia é característica da arte e da literatura. Nós a valorizamos sem nenhum esquema de valor universalizável.

IHU – Como a potência do não aparece como alternativa aos imperativos econômicos do campo da arte na contemporaneidade?

Manuel Moyano Palacio – A “potência do não” é um conceito filosófico de Giorgio Agamben que mostra um fundo de resistência em todo gesto criativo, de algo que resiste apesar do ato, ou que passa na arte como potência passiva e cria uma tensão interna nos atos ou obras. É a perfeição do inacabado. Em uma obra de arte, o mistério que ela nos lança é condensado.

As mãos pintadas no Cerro Colorado, em Córdoba (Argentina), ou a instalação de Joseph Kosuth, One and Three Chairs (1965) [imagem que ilustra esta matéria], para mostrar o rupestre ou o mais conceitual, apontam para algo essencial: toda obra é um hieróglifo. Na literatura, esse hieróglifo ocorre como uma zona muda. É o momento em que entre todas as palavras sentimos a falta de palavras. Isso é incalculável e pode ser encontrado na pintura mais cara da história ou no romance mais esquecido de uma época. É algo intangível que não pode ser capitalizado. É por isso que acredito que, apesar da lógica comercial que permeia tudo, a arte pode sobreviver ao mercado. E se o mundo já se foi, a arte é o resto que fica como um sinal dirigido a nada e a ninguém.

Arte rupestre no Cerro Colorado (Foto: Córdoba Turismo)

IHU – Qual o papel da crítica de arte no contexto em que vivemos?

Manuel Moyano Palacio – Acredito que a crítica de arte ou crítica literária só pode ser fiel à arte ou à literatura se tornando arte ou literatura. Elas devem encontrar estilo, um trabalho formal sobre os materiais, ter sensibilidade na escrita. Não vejo sobrevivência possível se permanecer limitada ao mundo frívolo dos artigos acadêmicos ou à mera divulgação jornalística.

IHU – Diante de todo esse cenário no qual nos debruçamos nesta entrevista, pergunto: qual a pertinência da arte hoje?

Manuel Moyano Palacio – A arte só pode salvar a arte, não o mundo. Mas pode apontar para outro mundo. Mas para fazer isso, ela precisa dos elementos deste mundo, precisa arrastá-los, mesclá-los, fundi-los e deixar que a novidade aconteça fora dos cânones do novo – isto é, ela precisa redefinir o que é novo continuamente. Não exijo muito da arte (risos), mas sim que ela me entusiasme e desarme (os filólogos sabem que há um theos na palavra entusiasmo). Por fim – derrubar o fascismo – temos que lidar com a vida que nos foi dada.

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