Professor analisa como o Brasil desconhece a realidade do garimpeiro. Enquanto muitos colocam esse sujeito como vilão, o crime organizado se aproxima dele e da lógica estimulada pelo Estado nas décadas de 1960 e 1970, de derrubar a mata para fazer fortuna
“Enquanto parte da imprensa nacional e movimentos sociais retratam os garimpeiros como ‘homens maus’, muitos políticos da região aproveitam o clima inquisitório para ressaltar a ‘injustiça’ com que os garimpeiros e garimpeiras são tratados, o que lhes rendem muitos votos”. A constatação é do professor e sociólogo Rodrigo Chagas e resume onde residem as dificuldades de efetivamente pôr fim ao garimpo ilegal na região amazônica, especialmente em Roraima. Embora o atual governo federal venha promovendo ações de desocupação de áreas de garimpo ilegal, especialmente com foco nas Terras Indígenas, a impressão que se tem é que estamos secando gelo. “Ainda não está claro para mim qual é o projeto de médio e longo prazo para a região. Qual é o plano econômico para a área?”, questiona Chagas, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
A questão é complexa e, para compreender as dinâmicas do garimpo na região, é preciso romper com a ideia de maus e bons nessa história. E o primeiro passo é assumir que o garimpo, esse mesmo que hoje sabemos ser predatório para todas as formas de vida que o cercam, foi estimulado nas décadas de 1960 e 1970. “Existe um contexto social em torno da garimpagem que foi construído historicamente, com estímulo por parte do Estado brasileiro”, pontua o professor. Esse contexto envolve desde imigrantes que se aventuram pela mata em busca de tesouros e de vida nova, até mulheres que se prostituem e gente famélica que vê na garimpagem uma forma de sobreviver. Por trás de toda essa gente, há grandes empresários e políticos influentes. “A garimpagem ilegal, que se tornou algo comum na região, estabelece uma rede complexa de aeroportos e portos ilegais. Ela tem acordos com as elites econômicas e políticas, bem como esquemas de corrupção envolvendo agentes do Estado”, acrescenta.
Agora, observe que já existe toda uma estrutura de marginalização e práticas ilegais. Não é preciso ser genial para deduzir que essa estrutura chama atenção de outros tipos de organizações criminosas. É por isso que Chagas observa que “todos esses elementos são do interesse do narcotráfico, assim como o uso do ouro como meio para lavagem de dinheiro proveniente do tráfico de drogas e a possibilidade de investimento financeiro de recursos ilícitos do narcotráfico nas atividades de garimpo”. Pronto. Passamos do garimpo ilegal ao narcogarimpo.
E antes que o leitor mais apressado diga que basta as forças de segurança estatais agirem, é preciso dizer que, no caso das operações da Terra Indígena Yanomami, o próprio governo diz que está entrando na fase mais delicada. “Tenho participado de eventos com lideranças políticas e empresariais que atacam a demarcação das terras indígenas e reservas com base em argumentos preconceituosos sobre a forma de vida dos indígenas, exaltando práticas de acumulação espoliativas de capital”, aponta o pesquisador. E acrescenta: “quando observamos a questão do marco temporal, conforme vem sendo discutida em Brasília, fica evidente a rede de poder que perpetua essas práticas exploratórias”.
É por isso que o professor Chagas insiste que “é necessário um projeto político e econômico de fôlego. Não há solução de curto prazo; o problema da invasão da TI Yanomami e da expansão do narcotráfico não pode ser resolvido por meio de decretos”.
Rodrigo Pereira Chagas (Foto: Arquivo pessoal)
Rodrigo Pereira Chagas é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pelo Centro Universitário Fundação Santo André, mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Universidade de Campinas – Unicamp. Atua como professor e coordenador do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Roraima. É pesquisador pelo Programa em Pós-graduação em Sociedade e Fronteiras, na linha de pesquisa Territorialidades e Conflitos Socioambientais na Amazônia. Também é pesquisador sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atualmente, realiza pesquisa sobre garimpo e narcotráfico em Roraima, com ênfase no complexo do narcotráfico e a tríplice fronteira Brasil/Venezuela/Guiana.
A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em 31-05-2023.
IHU – A formação do chamado “narcogarimpo” é um fenômeno recente ou vem sendo gestado no Norte do país, especificamente em Roraima, há mais tempo? Como podemos compreender a relação entre o narcotráfico e o garimpo?
Rodrigo Pereira Chagas – O tráfico de drogas em regiões de garimpo não é um fenômeno novo. Por exemplo, na década de 1990, durante a desintrusão na demarcação da Terra Indígena Yanomami, o Serviço Nacional de Informações – SNI constatou que a atividade de garimpagem na região facilitava o narcotráfico internacional. Notícias da época revelaram que oito pistas clandestinas na Terra Indígena Yanomami estavam sendo utilizadas para logística do tráfico de drogas.
Além disso, a venda de drogas no varejo sempre esteve presente no cotidiano dos garimpeiros. No entanto, os tempos mudaram e o narcotráfico nacional passou a ser liderado por facções como o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital, além de diversas organizações locais e regionais.
Políticos e empresários ligados ao comércio e ao agronegócio veem no garimpo ilegal um investimento de alto risco, mas muito atrativo devido aos lucros muito superiores às oportunidades do mercado legal e a uma rede de relações sociais e políticas que minimiza os riscos da ilegalidade dessa prática. É possível que para os “empresários” e “empreendedores” do narcotráfico a atividade seja ainda mais atrativa.
Quando menciono o termo “narcogarimpo”, enfatizo as afinidades eletivas entre as atividades do narcotráfico e do garimpo. Ou seja, há elementos em ambas as atividades que tendem a se atrair e gerar novas dinâmicas econômicas e sociais.
A garimpagem ilegal, que se tornou algo comum na região, estabelece uma rede complexa de aeroportos e portos ilegais. Ela tem acordos com as elites econômicas e políticas, bem como esquemas de corrupção envolvendo agentes do Estado. Todos esses elementos são do interesse do narcotráfico, assim como o uso do ouro como meio para lavagem de dinheiro proveniente do tráfico de drogas e a possibilidade de investimento financeiro de recursos ilícitos do narcotráfico nas atividades de garimpo.
A própria “governança” e a oferta de serviços, como segurança e prostituição, são atraentes para o narcotráfico. À medida que essas organizações criminosas reconfiguram as relações sociais nas áreas de garimpo onde atuam, surge essa nova forma de atuação que denominamos de narcogarimpo.
IHU – O senhor defende que há uma trama de relações sociais e econômicas em torno do garimpo. Que relações são essas e como podemos compreendê-las? Qual é o perfil do garimpeiro que atua no Norte do país, na região da Terra Yanomami? Por que esse sujeito se aproxima do narcotráfico?
Rodrigo Pereira Chagas – O termo “garimpeiro”, entendido como um agente isolado, acaba distorcendo a realidade e estigmatizando as pessoas que estão na ponta de lança do problema, como migrantes nordestinos, caboclos, ribeirinhos e indígenas cooptados devido às suas circunstâncias de vida. Existe um contexto social em torno da garimpagem que foi construído historicamente, com estímulo por parte do Estado brasileiro.
Um exemplo emblemático é o caso de Roraima, onde a questão do garimpo foi institucionalizada desde a época em que ainda era um Território Federal. Podemos citar o Monumento ao Garimpeiro, localizado no centro cívico da cidade de Boa Vista, e o brasão do governo estadual como evidências desse estímulo governamental. Políticos, instituições públicas e empresários locais trabalham há gerações na construção de uma identidade diretamente ligada ao garimpo.
Enquanto parte da imprensa nacional e movimentos sociais retratam os “garimpeiros” como “homens maus”, muitos políticos da região aproveitam o clima inquisitório para ressaltar a “injustiça” com que os garimpeiros e garimpeiras são tratados, o que lhes rendem muitos votos.
Ao estudarmos o tema, percebemos que existe uma rede que envolve a indústria, o comércio e os serviços relacionados ao garimpo. Isso inclui a venda de máquinas e peças (bombas, mangueiras, armas e munições, barcos, tratores, quadriciclos, caminhonetes, aviões, entre outros), venda de insumos (diesel, combustível para aeronaves, lubrificantes, mercúrio, etc.) e prestação de serviços (assistência técnica, segurança, transporte, prostituição, intermediação financeira, etc.). Há uma divisão de trabalho que envolve grandes, médios e pequenos empresários, além de trabalhadores com diferentes habilidades, como pilotos de aeronaves, mecânicos de máquinas, marceneiros, operadores de máquinas, seguranças, comerciantes, motoristas, barqueiros, jateiros, raizeiros, gerentes, prostitutas e cozinheiras.
Nesse sentido, é necessário analisar a diversidade de perfis e pessoas envolvidas nessas atividades. Todas elas tendem a naturalizar o garimpo, o que geralmente ocorre em detrimento dos povos indígenas e da Constituição Federal. Portanto, há uma elite de empresários-garimpeiros, políticos-garimpeiros, pilotos de garimpo e outros, que muitas vezes só conhecemos por “ouvir falar”. Mas é possível identificar os garimpeiros e as garimpeiras que têm uma identidade profundamente enraizada na prática da garimpagem. Há casos de pessoas que nasceram e cresceram dentro de garimpos.
Trata-se de uma atividade que envolve vários riscos e possui um forte elemento de aposta, além de exigir muito fisicamente das pessoas. Geralmente, a atividade de garimpo ocorre em selvas ou áreas rurais de difícil acesso e é uma prática ilícita. As dificuldades ajudam a criar uma forte solidariedade dentro do campo social da garimpagem. Ao mesmo tempo, existe uma desconfiança constante entre os vários agentes, uma vez que a descoberta de ouro aumenta os riscos envolvidos, o que faz com que muitos deles possuam armas. Os garimpeiros mais experientes, conhecidos como “garimpeiros mansos”, costumam viajar bastante entre os diferentes garimpos da região, com base nas “fofocas” sobre possíveis áreas ricas em ouro, contatos familiares e amigos espalhados por outros garimpos, além das condições institucionais de cada região ou país. É comum que esses garimpeiros atuem em vários estados da Amazônia Legal, bem como em países como Venezuela, República da Guiana, Suriname e Guiana Francesa. A aventura das viagens faz parte do habitus do garimpeiro manso.
Já a questão do narcogarimpo se vincula organicamente às formas de sociabilidade do mundo atual. Por exemplo, durante os governos militares, muitos migrantes nordestinos foram incentivados a “ocupar o território para não entregá-lo”. Entre os atrativos para essa colonização em áreas remotas e de difícil acesso estava a possibilidade de negociar madeira, minerar ou trabalhar na agricultura. Em resumo, poluindo e desmatando.
Com a promulgação da Constituição de 1988 e a demarcação de terras indígenas, reservas ecológicas e outras transformações institucionais e políticas, essas pessoas passaram a ser consideradas fora da lei. A maioria delas e seus descendentes continuam desmatando, garimpando ou prestando serviços como capangas (guaxebas), entre outros. Elas vivem em vilas rurais, nas periferias de Boa Vista e em comunidades próximas, conhecendo bem o território e as tecnologias necessárias para operar nesses espaços.
Essas pessoas foram criadas em um ambiente de violência acentuada, onde o manejo de armas para caça e proteção é comum. Elas oscilam entre práticas legais e ilegais e, por vezes, acabam sendo presas. Quem cair hoje na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, ou qualquer penitenciária do país, irá se associar a uma organização criminosa por questão de sobrevivência.
Seus filhos nascem em um mundo que contrasta com o que veem na TV e nas redes sociais. O estímulo ao consumo e “empreendedorismo” se mistura com as histórias de aventuras dos grupos criminosos. Existe um mundo de status, poder e riqueza a ser conquistado nas periferias e nas selvas. É possível observar um fascínio por essas narrativas, com relatos extensos sobre as “aventuras” desses jovens em Boa Vista, nas vicinais e nos garimpos.
Já testemunhei “pichações” de supostos “membros” do Primeiro Comando da Capital – PCC e do Comando Vermelho – CV em banheiros de escolas em comunidades indígenas. Como em todas as regiões periféricas do país, esses grupos trazem perspectivas atrativas a uma juventude sem horizonte, com a particularidade desses jovens do Norte do país estarem vinculados organicamente às práticas típicas da região, como o desmatamento, a caça e pesca, garimpagem, canoagem entre outros.
IHU – Quais as facções ligadas ao narcotráfico que atuam na região amazônica? Quando e como chegaram aí?
Rodrigo Pereira Chagas – Não tenho como abordar em detalhes todas as “facções” que operam na região amazônica, pois são muitas. Geralmente, elas se aliam aos dois maiores grupos organizados, o CV e o PCC. Entre esses dois, o CV, em parceria com grupos locais, tende a predominar nas atividades da região. Atualmente, o PCC possui hegemonia apenas em Roraima, de acordo com agentes públicos de segurança e pesquisadores. No entanto, em Roraima, e possivelmente em outras áreas de fronteira, há a atuação de grupos venezuelanos e há indícios de que o PCC também atue na Venezuela e na República da Guiana.
Conforme demonstrado por vários estudos, o sistema penitenciário desempenha um papel fundamental no surgimento e na disseminação desse tipo de agrupamento em diversas áreas do país, incluindo a Amazônia. No entanto, existem marcos específicos, como o crescente tráfico de skunk (ou maconha colombiana), que se intensificou a partir de 2014. Essa maconha tem melhor qualidade em comparação com a maconha prensada do Paraguai, e há um mercado aquecido nas grandes cidades do país para essa droga, cuja rota principal passa pela Amazônia.
No fim de 2016 e início de 2017, ocorreram massacres e rebeliões na região Norte, que também evidenciaram a guerra entre facções. Esse é um marco importante, mas o narcotráfico já atua aqui há mais tempo.
IHU – O que toda essa violência na região da Terra Yanomami desde o início das operações para retirada do garimpo, em 6 de fevereiro, revela?
Rodrigo Pereira Chagas – Depende muito de como seremos capazes de lidar com essa situação. Ela pode revelar muitas coisas, mas também ocultar diversas outras. Ficou claro que o narcotráfico está presente em regiões de garimpo, e novas dinâmicas como o “narcogarimpo” e outras variações podem criar situações realmente preocupantes na região. Já vimos exemplos trágicos da chamada “guerra às drogas” promovida pelos EUA na Colômbia, por exemplo. É importante ressaltar que, no caso colombiano, existem outras questões em jogo, pois trata-se de um país produtor de cocaína, com aspectos geográficos e institucionais diferentes. Mesmo assim, é preocupante no Brasil tanto o crescimento das organizações criminosas quanto os grandes desafios do Estado em reverter essa situação.
É importante ressaltar também que há grupos políticos e empresariais que continuam a financiar e incentivar politicamente a garimpagem ilegal. Tenho participado de eventos com lideranças políticas e empresariais que atacam a demarcação das terras indígenas e reservas com base em argumentos preconceituosos sobre a forma de vida dos indígenas e exaltando práticas de acumulação espoliativas de capital. É extremamente preocupante o grau de inconsequência desses grupos de pressão, que muitas vezes estimulam, direta ou indiretamente, a grilagem de terras, o trabalho análogo à escravidão, a exploração sexual de menores, a garimpagem e o narcotráfico. Quando observamos a questão do marco temporal, conforme vem sendo discutida em Brasília, fica evidente a rede de poder que perpetua essas práticas exploratórias.
Por outro lado, é positivo constatar que a Terra Indígena Yanomami é uma das maiores conquistas da Nova República. Se o Estado brasileiro for capaz de manter essa terra segura, ela cumprirá uma função para a qual não havia sido pensada: ser um escudo natural contra o narcotráfico internacional na região. Sem pistas e portos clandestinos, com uma proteção aérea rigorosa e sem o fluxo intenso de pessoas e equipamentos nos rios e igarapés, será muito difícil que essa área se firme como uma rota para o tráfico de drogas, pessoas, minérios e armas.
IHU – A operação de retirada dos invasores da terra indígena Yanomami entrou agora em sua fase mais delicada, segundo fontes do governo. Como está a situação? Qual sua avaliação quanto à forma como o governo vem conduzindo a operação contra o garimpo na região?
Rodrigo Pereira Chagas – Inicialmente, a atuação do novo governo foi emergencial, buscando levar segurança e tratamento aos Yanomami, ao mesmo tempo que promovia a sensibilização da sociedade nacional e internacional sobre os graves problemas causados pela garimpagem. Essa abordagem pareceu ser o caminho mais adequado para começar a lidar com a situação.
Agora, o governo está agindo diretamente contra os interesses financeiros dos empresários ligados ao garimpo, destruindo máquinas e aeronaves, e imagino que em breve serão iniciados processos de responsabilização jurídica, entre outras medidas. Tudo isso me parece necessário. No entanto, ainda não está claro para mim qual é o projeto de médio e longo prazo para a região. Qual é o plano econômico para a área?
Existem três posições gerais entre os agentes do garimpo em relação aos acontecimentos atuais na Terra Indígena Yanomami:
1) alguns foram para outros garimpos dentro ou fora do país;
2) outros estão apenas esperando que as notícias sobre o assunto diminuam ou que haja uma mudança de governo para voltarem;
3) há aqueles que afirmam que vão resistir, e parte desses indivíduos está ligada ao narcotráfico.
Quando o governo menciona estar enfrentando a parte mais delicada da situação, imagino que esteja se referindo a esse terceiro grupo, que se esconde na mata, desafia as autoridades, ultrapassa barreiras nos rios e eventualmente entra em confronto. Essa tarefa não é fácil, considerando-se a extensão do território em uma região de fronteira.
O problema é complexo e está relacionado ao amplo projeto de desenvolvimento da região. Ainda estamos sob a influência de um projeto estabelecido nas décadas de 1960 e 1970. Quais são as alternativas para as pessoas que dependem dessa atividade como única perspectiva para melhorar de vida? São necessárias novas propostas econômicas e políticas, além de um trabalho sério na área educacional.
IHU – Como ocorre a atuação do Exército nessa região que, por ser de fronteira, está no raio de atuação das forças militares?
Rodrigo Pereira Chagas – As Forças Armadas possuem uma grande responsabilidade. O estado de Roraima, antes da Constituição de 1988, foi governado por líderes ligados à Aeronáutica. Por exemplo, o Monumento ao Garimpeiro foi instalado pelo coronel-aviador Hélio Campos, em 1969. O brigadeiro Ottomar Pinto foi, em 1985, um dos incentivadores da garimpagem na Terra Indígena Yanomami, e a biblioteca do Exército publicou, em 1995, um livro chamado “A farsa Ianomami”, com prefácio do general Carlos Meira Mattos, renomado analista da geopolítica da Pan-Amazônia, e escrito pelo tenente-coronel do exército Luiz Carlos Menna Barreto. Este livro virou uma das bases ideológicas para as campanhas pró-garimpo até hoje.
Portanto, existe uma simpatia das Forças Armadas em relação aos projetos de desenvolvimento da Amazônia promovidos pelos governos militares, assim como uma simpatia das populações locais em relação às Forças Armadas, que têm levado infraestrutura, como pontes e estradas, e contratado pessoas da região.
De fato, as Forças Armadas são instituições com presença constante, melhor estrutura logística e grande domínio sobre a Amazônia. Essa situação parece ser determinante para o sucesso de qualquer processo a médio e longo prazo, e preocupa-me a atuação tímida e contraditória das Forças Armadas nesse contexto. As associações indígenas denunciaram a “falta de vontade” por parte do Exército nesse processo de desintrusão, além da recente contratação que o Exército fez de uma empresa para perfurar poços na Terra Indígena Yanomami, cujo proprietário tem envolvimento com o movimento pró-garimpo e já foi acusado várias vezes de realizar garimpagem ilegal.
Para reverter essa situação, é fundamental que as Forças Armadas se posicionem claramente contra a garimpagem e defendam os direitos dos indígenas. Isso é um trabalho complexo dentro das instituições, mas extremamente necessário.
Além disso, é importante destacar que várias das “denúncias” presentes no livro publicado pela Biblioteca do Exército nunca ocorreram. Por exemplo, após 30 anos de existência da Terra Indígena Yanomami, o país não perdeu sua soberania sobre o território devido às ONGs internacionais. Pelo contrário, foi com o ressurgimento da garimpagem, projeto dos governos militares, que o narcotráfico internacional na região está adquirindo outra dimensão e ameaçando a soberania do Estado brasileiro.
IHU – É possível vislumbrar uma saída para essas tensões na região da terra Yanomami? Como podemos reestabelecer essas terras aos indígenas e, ao mesmo tempo, não relegar a trabalhadores do garimpo a miséria?
Rodrigo Pereira Chagas – Não há solução fácil para a Amazônia, considerando o recente esvaziamento de ministérios e a influência dos lobbies do agronegócio e das mineradoras. Em Roraima, onde está localizada a maior parte da Terra Indígena Yanomami no Brasil, o principal desafio é que os grupos econômicos e políticos têm seus capitais (econômicos e simbólicos) vinculados a essas atividades.
Boa Vista, capital de Roraima, é uma das cidades mais bem organizadas da região amazônica. Este é um estado recentemente criado e tem como uma de suas principais características o fato de que aproximadamente 60% do território é composto por áreas de preservação ou territórios indígenas. Daí surgem os conflitos, que se assemelham às guerras étnicas que ocorrem no país desde 1500.
Roraima poderia ser uma grande vitrine para empresas que desejam demonstrar seu compromisso com a preservação ambiental e com os povos indígenas. Há uma riqueza de etnias que poderia inspirar novas formas de design, estimular pesquisas sobre epistemologia e formas de interação humana com potencial para revolucionar as novas tecnologias do conhecimento. Além disso, existem propostas no campo da biofarmácia e biocosméticos, há vocação para o turismo de aventura, tem características para ser um grande laboratório para universidades do mundo todo, entre outras possibilidades.
No entanto, isso requer governos e empresários alinhados com novas propostas econômicas e políticas para a região.
IHU – Além da relação com o garimpo, que outras relações se estabelecem entre o crime organizado e crimes ambientais na Amazônia? Em que medida o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips escancara essa relação de crimes ambientais e organizações criminosas mais complexas?
Rodrigo Pereira Chagas – O caso do Bruno e do Dom evidencia como todas essas práticas ilícitas (como biopirataria, narcotráfico, pesca ilegal, tráfico de pessoas, etc.) tendem a se associar e adquirir novas dinâmicas. Também ilustra como essas práticas violentas se expandem na região. A Amazônia sempre foi marcada pela violência contra líderes sindicais rurais, funcionários públicos e líderes religiosos que foram (e são) perseguidos e assassinados, como Chico Mendes e irmã Dorothy, apenas para citar dois outros casos amplamente divulgados no passado.
O que tem mudado é que, além do aparato estatal, como demonstrado por pesquisas realizadas nas décadas de 1970 e 1980, e dos empresários com seus capangas promovendo violências, agora surgiram criminosos organizados a partir das prisões e periferias das grandes cidades. Trata-se da aceleração dos processos de utilização da violência física e simbólica para exploração exaustiva da natureza e das comunidades locais.
IHU – O senhor vive em Roraima, inscrito dentro de todo esse contexto social. Como a chegada de um novo governo, com a promessa de levar a pauta ambiental como prioridade, inclusive criando um Ministério dos Povos Originários, foi recebida pela população local? Como a população reagiu a partir dos acontecimentos em que o Congresso ameaça sufocar as promessas desse novo governo na área ambiental?
Rodrigo Pereira Chagas – Bolsonaro obteve uma votação de 76% no estado, exceto no município indígena de Uiramutã, onde o presidente Lula conseguiu vencer com 68% dos votos.
A maioria das pessoas no estado se posiciona contra a pauta ambiental e a favor da garimpagem. Essa é a dificuldade enfrentada por qualquer político que queira organizar sua campanha com um discurso contrário à garimpagem, a favor dos territórios indígenas e da proteção ambiental.
A questão que deveríamos fazer talvez fosse: não seriam essas relações sociais, baseadas no estímulo à degradação socioambiental e aproveitadas por políticos e empresários locais, que sufocam as promessas do governo atual?
Essas dificuldades já eram sabidas, afinal não chegou ao poder um governo neófito. Por isso, insisto que é necessário um projeto político e econômico de fôlego. Não há solução de curto prazo; o problema da invasão da TI Yanomami e da expansão do narcotráfico não pode ser resolvido por meio de decretos.
Existem iniciativas importantes, como o aumento quantitativo e qualitativo de recursos humanos e técnicos em instituições como o Ibama, a Funai, a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Federal. A criação do Ministério dos Povos Originários e a presença de figuras como Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente são importantes, mas quando veremos um projeto abrangente e coerente com os discursos para a região? Repito, não é uma tarefa fácil, mas é necessária e urgente.