12 Janeiro 2023
A reportagem é de Victor Raison e Jean-Mathieu Albertini, publicada por Mongabay, 09-01-2023. A tradução é de Roberto Cataldo.
Vistas do alto, longas manchas amareladas rasgam o manto verde da Amazônia. Na parte norte da Terra Indígena Yanomami, perto da fronteira do Brasil com a Venezuela, garimpos ilegais de ouro estão por toda a margem do Rio Uraricoera.
O piloto voa baixo com seu Cessna, mas não se aproxima muito. Ele teme os garimpeiros armados no chão, além dos outros aviões pequenos, que voam em meio à copa das árvores para evitar os radares da polícia enquanto abastecem os garimpos.
Lá embaixo, avista-se a aldeia indígena Waikás. É aqui que vivem os Yek’wana, uma das oito etnias que habitam esta Terra Indígena do tamanho de Portugal, a maior do Brasil.
“O garimpo destruiu tudo. O nosso rio ficou barrento e contaminado. Nós não podemos mais pescar, e os animais fugiram para bem longe do barulho dos geradores e das máquinas”, diz Julio Ye’kwana, um dos líderes da comunidade, situada no estado de Roraima. Atualmente, existem cerca de 20 mil garimpeiros ilegais na TI Yanomami, segundo o Ministério Público Federal. No interior da mata, o trânsito de barcos que transportam homens e suprimentos para os garimpos é incessante.
Toda a estrutura da sociedade na qual Julio vive foi abalada até os alicerces, diz ele à Mongabay.
A mineração ilegal e as fortunas prometidas pelos garimpeiros estão seduzindo e conquistando os jovens indígenas da aldeia. É cada vez maior o número de membros da próxima geração que se afasta de suas funções na proteção das florestas ancestrais e recorre ao garimpo. Isso se deve principalmente à falta de outras oportunidades econômicas e à desintegração da sociedade tradicional, diz Mauricio Ye’kwana, um dos diretores da Hutukara Associação Yanomami, organização indígena sediada na capital de Roraima, Boa Vista.
“Antes, os garimpeiros focavam apenas nos líderes, mas nos últimos dez anos, eles começaram a visar os jovens, que são presas mais fáceis de atrair para o trabalho no garimpo”, diz Mauricio. A proximidade dos garimpeiros com a comunidade Ye’kwana o preocupa.
Robervaldo, de 26 anos, foi um desses recrutas. Ele trabalhou para os garimpeiros por dois anos. “Primeiro, eles abordam você com muita simpatia, oferecendo maços de dinheiro, celulares ou bebidas alcoólicas”, conta ele à Mongabay.
Alguns são mal pagos e têm que desembolsar muito dinheiro apenas para pagar a viagem até o garimpo, enquanto outros ganham bem, mas gastam o que ganharam no próprio local. Tudo está disponível nos garimpos: álcool, drogas, comida, até acesso à internet. Inicialmente, eles usavam a rede para se comunicar com outros garimpeiros e alertar sobre as próximas batidas policiais, mas logo descobriram que ela também era uma ótima ferramenta para atrair jovens indígenas para os acampamentos. Nas aldeias, por outro lado, a conexão com a internet é rara e instável.
Alberto também trabalha na mineração. Aos 28 anos e com várias passagens pelos garimpos, é considerado um ancião pelos adolescentes indígenas que trabalham nos acampamentos. Ele próprio se ofereceu para ir.
“O dinheiro é a motivação inicial e principal, mas o garimpo também é um lugar muito animado. Tem bordéis por toda parte e músicos vêm da cidade para tocar todas as noites. Às vezes, até pessoas famosas chegam de avião para tocar e entreter”, Alberto conta à Mongabay.
Ao longo do Rio Uraricoera, barracas, restaurantes flutuantes, bares e bordéis rompem a muralha verde formada pelas árvores que acompanham suas margens. A 40 minutos de barco de Waikás, um enorme acampamento aparece em ambas as margens. Peneiras gigantes construídas sobre estruturas semelhantes a andaimes separam o ouro da terra e depois o aglomeram com a ajuda de mercúrio, metal tóxico.
A seguir, esse mercúrio afunda no rio, contamina a água e é consumido por peixes como a piraíba (Brachyplatystoma filamentosum), o dourado (Salminus spp.) e o tucunaré (Cichla spp.). O metal percorre toda a cadeia alimentar e chega às comunidades indígenas que comem os peixes e usam a água do rio para beber e se banhar.
A Fundação Oswaldo Cruz, principal instituto de pesquisa em saúde pública do Brasil, realizou um estudo em 2016 que mostrou que 92% dos Yanomami examinados tinham mercúrio no sangue acima do nível considerado seguro pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A alta exposição ao mercúrio pode causar problemas neurológicos graves, partos prematuros e defeitos congênitos. Os moradores de Waikás agora se recusam a pescar.
Das 200 pessoas que moram na aldeia, cerca de dez são jovens que trabalham para os garimpeiros ilegais. Trabalho não falta no garimpo: cavar e lavar a terra com mangueiras de alta pressão, acionar as bombas e retirar grandes raízes de árvores são algumas das principais tarefas confiadas aos recém-recrutados.
Dois dos jovens da comunidade de Waikás são empregados nessas tarefas físicas, mas a maioria trabalha como piloto de barco. Em função das correntezas perigosas e das pedras e troncos flutuantes, que costumam ser traiçoeiros, os garimpeiros valorizam a experiência e o conhecimento que os indígenas têm do rio.
Segundo Robervaldo, uma viagem de um dos acampamentos situados fora do território Yanomami até um garimpo dentro dele, que costuma levar de seis a nove dias, custa 5 mil reais, ou quase mil dólares. É uma quantidade considerável de dinheiro para a região, mas os riscos são altos. Embora as batidas policiais nos garimpos tenham diminuído, a presença crescente de gangues fez com que essa parte do território Yanomami se tornasse a mais violenta.
O PCC, ou Primeiro Comando da Capital – poderosa organização criminosa envolvida em tráfico de drogas, fraude, extorsão e, mais recentemente, tráfico de ouro – domina esta parte do território desde 2018.
“É claro que se ganha mais do que na cidade, mas a coisa é muito tensa. Além dos perigos ligados ao trabalho no garimpo, eu vi três assassinatos em um mês”, conta Alberto.
Apesar dos riscos, há muitos candidatos a ingressar no garimpo, e ainda mais desde a covid-19. Com a pandemia, a disparada do preço do ouro e um ambiente político favorável, a influência dos garimpos cresceu como nunca. Entre 2020 e 2021, a destruição causada pela mineração ilegal aumentou 46%.
“Parou tudo, menos o garimpo. Eles conseguiram mais aviões, mais barcos, mais helicópteros, e ocuparam mais terras”, conta Mauricio Ye’kwana.
“[E] quando você chega no garimpo, você tem que esperar no mínimo um mês para ter vaga disponível”, diz Alberto.
Alberto voltou à sua aldeia para ver a família e descansar depois de várias semanas de trabalho no garimpo, mas diz que quer sair de novo em breve. Ele é um dos poucos que ainda voltam para a aldeia, e geralmente o fazem de forma temporária.
Robervaldo, por sua vez, parou definitivamente de trabalhar com os garimpeiros depois de voltar a estudar.
“Agora eu tento trazer os nossos jovens de volta. Mas é impossível ter esse tipo de conversa aqui [na aldeia]. Só se pode falar disso na cidade”, afirma. O peso da tradição, o respeito pelos mais velhos e um ambiente social onde a comunidade sabe de tudo impedem que os jovens da aldeia falem abertamente sobre seus desejos e curiosidades. “Mesmo que alguns saiam do garimpo, eles são imediatamente substituídos por outros.”
Muitas vezes, o vínculo entre a comunidade e os jovens é totalmente destruído.
“Aos poucos, eles param de apoiar seus familiares, são manipulados pelos garimpeiros, voltam bêbados para a aldeia e discutem com os líderes”, diz Robervaldo.
Em alguns garimpos, eles recebem armas das gangues que dominam o acampamento. Armas, álcool e ausência de autoridades podem criar o clima perfeito para finais trágicos, diz Herrero, indígena da região sul do território Yanomami.
“As consequências do mal-entendido são muito mais dramáticas quando os mecanismos tradicionais de resolução de conflitos dessas sociedades param de funcionar”, diz ele à Mongabay.
“A presença de um garimpo tão próximo a uma comunidade é garantia de conflitos internos e risco de desaparecimento [da comunidade]”, afirma Mauricio Ye’kwana. Ele também diz temer que sua comunidade acabe se dividindo e se mudando para outro lugar, ou sendo absorvida por outra. A desintegração das comunidades indígenas faz parte das preocupações de muitos anciãos e já é uma realidade em algumas regiões.
“O certo é que essa comunidade está desaparecendo”, diz Alisson Marugal, procurador do Ministério Público Federal em Roraima. Ele cita o caso de Aracaçá, uma aldeia próxima a Waikás. “Eram 40 pessoas antes da implantação do garimpo; agora só restam 25”, diz ele.
Entre os muitos crimes associados aos garimpos, Marugal investigou o estupro e o assassinato de uma jovem Yanomami por um garimpeiro em Aracaçá. Ele nunca conseguiu encontrar qualquer evidência. O trabalho e a exploração sexuais de meninas indígenas são uma questão premente nas comunidades próximas aos acampamentos. Uma investigação revelou que jovens e meninas de até 11 anos eram subornadas para ficar em barracas com garimpeiros, e recebiam ofertas de comida, roupas e material de trabalho em troca de sexo.
Apesar de seus medos, Utinea, uma mulher de Waikás, vende frutas e legumes aos garimpeiros próximos, para obter uma renda extra.
“Nós sempre ficamos em grupos. Tem muitos homens lá”, diz ela, sem dar detalhes.
Ehuana Yanomami, uma das raras lideranças femininas do território, é mais direta sobre a situação: “Muitas trocam sexo por comida; além das relações abusivas, elas também podem ser incitadas a beber e correm o risco de ser estupradas em grupo”.
Quatro jovens forçadas à prostituição se suicidaram no mês passado em Aracaçá, diz Marugal.
Em várias partes da Terra Indígena Yanomami, como Xitei e Homoxi, os garimpeiros ilegais tomaram conta dos postos de saúde locais para consolidar seu poder, em uma região onde o Estado é praticamente ausente. Os moradores da reserva ainda frequentam essas clínicas e dependem muito delas para enfrentar a disseminação de doenças importadas, causadas pela invasão dos garimpeiros.
Poças de água estagnada nos garimpos são locais privilegiados para a reprodução de mosquitos, causando surtos de malária. Em Waikás, não há médicos nem enfermeiros, apenas dois técnicos de saúde que atendem até dez casos de malária por semana. Todos os Ye’kwana dizem ter adoecido nesse território, que atualmente tem o maior número de casos de malária registrados no Brasil. Quando estão doentes, as pessoas ficam impossibilitadas de participar das tarefas e atividades da comunidade, como agricultura ou caça. Consequentemente, os índices de fome e desnutrição começam a aumentar.
O ciclo vicioso se autoperpetua: a comunidade perde força, os jovens partem para os acampamentos, chegam mais garimpeiros, e aumenta a incidência da malária.
“Nesse novo sistema, os jovens que trabalham nos garimpos e têm acesso aos bens se sentem mais poderosos do que os mais velhos. Isso inspira outros jovens a ir trabalhar no garimpo”, diz Mauricio.
Junior Hekurari, presidente do conselho de saúde dos Yanomami e Ye’kwana (Condisi-YY), diz que tenta ajudar o máximo de moradores que pode, mas está em uma situação desesperadora. Devido à falta de acesso a serviços de saúde, as crianças morrem de doenças facilmente tratáveis, como diarreia e verminoses. Desde 2021, mais de 9 mil pessoas ficaram sem acesso ao tratamento contra parasitas intestinais. E como algumas crianças vomitam vermes enormes, os casos de desnutrição continuam aumentando.
Há 30 anos, a morte de cerca de 20% da população Yanomami por doenças trazidas pelos garimpeiros gerou uma mobilização internacional pelo reconhecimento de sua Terra Indígena, hoje a maior do Brasil. No entanto, a mineração ilegal de ouro continua se expandindo sem controle.
Em 2021, das 400 áreas de garimpo monitoradas, apenas nove foram alvo de batidas policiais, diz o procurador Marugal.
Na tentativa de se contrapor à atração exercida pelo garimpo sobre os jovens indígenas, em 2019 os Ye’kwana desenvolveram um programa chamado Chocolate Yanomami-Ye’kwana, voltado à produção de cacau orgânico para a fabricação de chocolate.
“Não precisa ir ao garimpo ou à cidade para conseguir dinheiro. Este é o nosso futuro”, diz Julio Ye’kwana, enquanto caminha por uma plantação de cacaueiros jovens. “Ele nos permite preservar a mata e unir a aldeia em torno de um projeto para toda a comunidade.”
Depois de uma primeira tentativa sem muito sucesso, os Ye’kwana aprenderam com seus erros agrícolas. Eles agora produzem cerca de 400 quilos de cacau por colheita, uma vez por ano, e tudo já foi vendido aos compradores.
Cotado a cerca de 37 reais o quilo, o cacau não consegue competir com o ouro, mas tem a vantagem de oferecer uma alternativa econômica aos jovens indígenas, que evita conflitos.
A comunidade Palimiú, que fica a duas horas de barco de Waikás, rio acima, decidiu reproduzir o projeto do cacau ali para também se proteger contra a influência dramática dos garimpos. Em 2021, a comunidade sofreu vários ataques dos garimpeiros, que culminaram com o assassinato de seu líder em outubro daquele ano.
“É difícil se opor diretamente aos garimpeiros; se os incomodarmos, eles nos ameaçam [porque] não há autoridade legal [brasileira] aqui”, diz Sebastião, um ancião da comunidade de Waikás.
Grande parte da elite e dos políticos locais apoia a indústria da mineração. Nas eleições presidenciais de outubro, em que derrotado, Jair Bolsonaro obteve o maior número de votos proporcionais em Roraima – 76% da população votou nele no segundo turno. Antonio Denarium, governador eleito do estado, seu aliado político e pró-mineração, com uma ideologia semelhante à de Bolsonaro, se reelegeu em primeiro turno.
As lideranças da Terra Indígena Yanomami se dizem realistas e não acreditam em milagres após a eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que prometeu combater o garimpo ilegal.
No entanto, elas têm esperanças de receber apoio e os meios para limitar a invasão dos garimpeiros em seu território e proteger seus jovens. Isso, dizem os líderes, pode vir na forma da interrupção das cadeias de suprimentos das quais os mineradores dependem para suas atividades ilegais. Embora seja chamada por muitos de artesanal, a mineração feita aqui é de escala mais industrial, com aviões e barcos levando e trazendo equipamentos e suprimentos.
As “bases de apoio” localizadas fora do território Yanomami são essenciais para o garimpo, servindo como entrepostos de onde suprimentos para a mineração e novos grupos de garimpeiros partem para as minas diariamente. Elas também são pontos de partida para muitos jovens indígenas recém-recrutados. Localizada abaixo de uma ponte a algumas dezenas de quilômetros de Boa Vista, às margens do Rio Uraricoera, uma dessas bases ocupa o que antes era um posto do Ibama com foco no combate às invasões ilegais de garimpeiros no território. A missão dos agentes foi encerrada em 2017. A Justiça ordenou que o posto fosse reativado em 2020, mas isso ainda não aconteceu.
Em um final de tarde na base, caminhonetes chegam e são descarregadas. Homens e suprimentos entram em barcos de até 16 metros de comprimento com motores potentes pilotados por jovens Yanomami. Alguns barcos queimados e abandonados depois de uma batida policial anterior estão alinhados na margem oposta. Eles não parecem intimidar os jovens pilotos de barco em seu trabalho.
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Nas terras Yanomami, jovens indígenas estão deixando suas aldeias para trabalhar no garimpo ilegal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU