A esperança da superação das desigualdades engendradas pela Era Digital “reside na construção de uma outra ordem interna, necessária para o desenvolvimento de um futuro comum”, afirma o economista
O arcabouço fiscal do novo governo Lula, enviado ao Congresso Nacional na semana passada, tem como finalidade “fortalecer o poder executivo no tema fiscal com a flexibilização e bandas das regras de gasto” e, se aprovado, estabelecerá a gestão macroeconômica “em novas bases, sem que a questão da retomada do desenvolvimento nacional e, especialmente a reindustrialização, esteja resolvida”, afirma Márcio Pochmann ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Na avaliação dele, a restauração do “tripé do desenvolvimento” é fundamental para assegurar a reindustrialização do país. “A reversão desta situação nacional requer pôr em curso um conjunto de políticas voltadas ao desenvolvimento autocentrado, capaz de reconstituir o sistema produtivo nacional competitivo, reposicionando o país na divisão internacional do trabalho da Era Digital, posto que o país, enquanto o quarto maior mercado mundial de consumo de bens e serviços digitais, segue fundamentalmente importador”, adverte.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o economista reflete sobre os desafios econômicos e sociais do país, em particular, no tocante à superação do desemprego e da informalidade. “O Brasil precisa se preparar para ingressar de fato no século XXI. Para isso, deve contar com a implantação de um novo padrão de acumulação para o desenvolvimento autocentrado na reindustrialização em plena Era Digital. É a partir disso que se pode reconstituir o mundo do trabalho em bases decentes do pleno emprego, o que dificilmente ocorrerá sem o rompimento com a dependência periférica neoliberal gerida pela financeirização e superexploração do trabalho, resultante da atual presença na divisão internacional do trabalho enquanto país primário-exportador”, afirma.
Márcio Pochmann (Foto: Divulgação)
Márcio Pochmann é graduado em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Leciona no Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e na Universidade Federal do ABC – UFABC. É o atual presidente do Instituto Lula. Foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea e da Fundação Perseu Abramo – FPA, além de secretário municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade de São Paulo. É autor de, entre outros, Neocolonialismo à Espreita: mudanças estruturais na sociedade brasileira (Sesc, 2022), A grande desistência histórica e o fim da sociedade industrial (Ideias & Letras, 2022), Políticas do trabalho e de garantia de renda: o capitalismo em mudança (ITR, 1995), E-trabalho (Publisher Brasil, 2002) e Desenvolvimento, trabalho e solidariedade (Cortez, 2002).
IHU – O senhor tem afirmado em suas redes sociais que o “Brasil passa por uma estagnação secular”. Como chegamos a esse ponto? O que caracteriza essa estagnação e como romper com ela?
Márcio Pochmann – A presente afirmação resulta da análise histórica de época sob dominância de longo prazo do modo de produção capitalista no Brasil. As últimas 13 décadas, por exemplo, podem ser divididas em, pelo menos, três períodos distintos, sendo o primeiro referente à República Velha (1889-1930), quando o capitalismo ainda nascente na sociedade agrária era acompanhado por renda nacional per capita variando ao ritmo médio de 0,7% ao ano. O segundo período se refere à modernização capitalista ocorrida entre 1930 e 1980, cuja passagem para a sociedade urbana e industrial permitiu que o PIB por habitante crescesse 4,2% como média anual. Por fim, o terceiro período, que entendo ser o da desmodernização capitalista, decorre da ruína da sociedade industrial com a renda nacional por brasileiro variando apenas 0,6% com média anual nas últimas quatro décadas (M. Pochmann, Desenvolvimento e perspectivas novas para o Brasil, 2010). A reversão desse terceiro período é possível.
O estabelecimento de um outro amanhã para o povo brasileiro requer a formação de uma convergência interna em torno de uma nova maioria política com capacidade de disputar, com projeto de nação, o futuro que se abre diante do deslocamento do centro dinâmico do mundo do Ocidente para o Oriente. A reversão da atual situação nacional requer pôr em curso um conjunto de políticas voltadas ao desenvolvimento autocentrado, capaz de reconstituir o sistema produtivo nacional competitivo, o que implica reposicionar o país na divisão internacional do trabalho da Era Digital, posto que o Brasil, enquanto o quarto maior mercado mundial de consumo de bens e serviços digitais, segue importador.
Para tanto, é necessária uma recomposição do investimento assentada no estabelecimento do antigo tripé dos capitais (estatal e privado interno e externo), porém em novas bases, considerando que o Estado dispõe de recursos financeiros em reservas externas e depósitos internos que, se reorientados para a atividade produtiva, poderia alterar o sentido do entesouramento do capital privado nacional em fundos de aplicações financeiros especulativos e de curto prazo. Ao mesmo tempo, é preciso haver a agregação do capital privado do exterior, conforme o presidente Lula vem se esforçando em sua agenda internacional, responsável por atrair mais de US$ 100 bilhões neste primeiro quarto do ano. Neste sentido, o caminho equivalente, já realizado a seu tempo com êxito anterior inegável por Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, pode significar uma preparação para o ingresso no século XXI.
IHU – Olhando para a economia global, também se constata essa estagnação? Ou ela ocorre em níveis distintos entre Oriente e Ocidente?
Márcio Pochmann – Os últimos 500 anos de constituição dos Estados nacionais estiveram atrelados ao cumprimento do projeto de modernidade Ocidental. Ocorre que, diante dos contínuos sinais de colapso da modernidade neste primeiro quarto do século XXI, constata-se o quanto o binômio da arte da guerra e do uso ilimitado da natureza passou a ser incapaz de sustentar o ciclo sistêmico de acumulação capitalista liderado pelos Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Percebe-se o quanto diversos países do Ocidente avançaram na via da guerra, mesmo após a Guerra Fria (1947-1991), quando se imaginava que, diante do desmoronamento da União Soviética, não haveria mais “inimigo externo”. Até mesmo a Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN, criada no âmbito da Guerra Fria, que se esperava ser dissolvida, serviu de sustentação para a ampliação do complexo industrial militar em vários países, inclusive com atuação contínua aos anos do segundo pós-guerra. Isso porque a globalização neoliberal, conduzida por grandes corporações transnacionais, transcorreu em meio ao enfraquecimento das Nações Unidas e de suas instituições multilaterais. O quadro que se abriu nas últimas quatro décadas foi o do aprofundamento da competição entre nações e do individualismo entre os povos e, ainda, o fortalecimento da guerra (S. Amin, La desconexion: hacia un sistema mundial policéntrico, 1988).
Na pandemia de covid-19, por exemplo, a atuação pífia da Organização das Nações Unidas – ONU ocorreu concomitante com o acirramento das disputas entre nações por vacinas e insumos de saúde, com pouca colaboração, salvo exceções como Cuba, Índia e China, por exemplo. No Oriente, por outro lado, não houve espaço para a guerra, mas a canalização de investimentos para o desenvolvimento e fortalecimento da Era Digital. Fruto disso tem sido o soerguimento chinês, associado ao expansionismo indiano, malásio, indonésio, vietnamita e outros que a partir da Ásia apontam para a retomada do protagonismo registrado até a consolidação do capitalismo no mundo no século XIX. Se isso ocorrerá, somente o tempo dirá. Mas o fato é que neste primeiro quarto do século XXI se assiste ao deslocamento do centro dinâmico do mundo do Ocidente para o Oriente (A. Gunder Frank, Reorient: Global Economy in the Asian Age, 1998).
IHU – O senhor também tem dito que cerca de 40% da população ocupada está em atividades da economia de subsistência e popular. O que isso revela? Quais as consequências desses números para a economia de modo geral?
Márcio Pochmann – A decadência nacional tem múltiplas dimensões. Uma delas tende a estar associada à contração das atividades tipicamente capitalistas no total da ocupação no Brasil, algo que não ocorreu entre as décadas de 1890 e 1980. Mas desde o ingresso passivo e subordinado na globalização neoliberal, em 1990, o assalariamento estagnou, tendo a desestruturação do mercado de trabalho sido marcada pela contenção dos empregos protegidos por direitos sociais e trabalhistas em relação à população ativa.
A inédita desestruturação da sociedade salarial com cidadania regulada havia sido posta em prática pelo projeto tenentista do Clube 3 de Outubro, liderado por Oswaldo Aranha e Lindolfo Collor de Melo desde a Revolução de 1930. Com as políticas de crescente liberdade ao capital na década de 1990, o padrão de uso e remuneração da força de trabalho foi a tal ponto flexibilizado que terminou consolidando a combinação da generalizada precarização ocupacional com o crescente excedente de mão de obra aos requisitos de contratação nas atividades tipicamente capitalistas.
Verdadeiras multidões de excluídos emergiram da estagnação produtiva do regime do capital, cada vez mais perambulantes e sem destino nas regiões litorâneas do país. Especialmente as grandes regiões metropolitanas passaram a expressar sinais do novo sistema jagunço urbano que se integra à economia popular e de subsistência dos pequenos negócios dominados, em parte, pelo fanatismo religioso e pelo crime organizado (M. Pochmann, O neocolonialismo à espreita: mudanças estruturais na sociedade brasileira, 2022).
Basta enfatizar que entre 1985 e 2020, por exemplo, a outrora locomotiva do Brasil, o estado de São Paulo, registrou um decréscimo médio de 0,2% ao ano no comportamento do PIB por habitante, enquanto os estados primário-exportadores do Centro-Oeste, como Mato Grosso, apresentaram um aumento de 3,5% como média anual no mesmo período de tempo no PIB per capita. Em função disso, a realidade da sociedade brasileira atual tende a inverter a original visão de Euclides da Cunha que há 121 anos distinguiu o atraso da modernidade entre as regiões interioranas e litorâneas. Pela já longa trajetória da decadência nacional, o atraso do presente se concentra cada vez mais nas regiões litorâneas.
IHU – Crítico das políticas públicas adotadas recentemente no Brasil, o senhor aponta que elas são apenas da esfera capitalista. Gostaria que detalhasse esse seu apontamento e indicasse o que seriam, para o caso do Brasil de hoje, políticas públicas que rompam com as lógicas capitalistas.
Márcio Pochmann – Entre 2001 e 2004, quando servi como secretário da pasta do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade no município de São Paulo, havia o diagnóstico de que a industrialização havia ficado para trás e, por consequência, a marcha do deslocamento da tradicional relação capital/trabalho para a nova relação débito/crédito. Por conta disso, a estratégia paulistana de inclusão social adotada na época partia da ênfase no desenvolvimento local, com ações de infraestrutura física e de internet exemplificadas pela criação dos CEUs com uma importante politização emancipadora em torno da construção de uma nova cidadania (L. Dowbor e M. Pochmann, Políticas de desenvolvimento local, 2010).
Da mesma forma ocorria com o desencadeamento de um amplo programa municipal de formação em economia social e do trabalho, potencializada pela construção da rede de crédito comunitária e solidária, compatível com a moeda social integrada à abertura de mercados desaguadores da produção constituída à margem da lógica capitalista (M. Pochmann, Políticas de inclusão social, 2004).
A derrota eleitoral em 2004 enterrou a contracultura estratégica que nascia no modo petista de governar, liderada por Marta Suplicy no município de São Paulo. O que a administração petista no plano federal aproveitou parcialmente foi a tecnologia social na montagem do Bolsa Família diante dos obstáculos encontrados para implementar o programa Fome Zero. Guardada a devida proporção, a experiência paulista de inclusão social no início do século XXI assemelhou-se à estratégia chinesa atual de combate à pobreza e desigualdade, com ênfase na estrutura produtiva e laboral, não na transferência de renda que isoladamente permite – no máximo do plano conjuntural – a modernização do padrão de consumo, descolada da centralidade do trabalho e da soberania cidadã.
IHU – Enquanto patinamos numa estagnação econômica, ouvimos cada vez mais alto discursos, e até políticas públicas, que insuflam o empreendedorismo e a criação de startups. O que isso revela sobre o neoliberalismo de nosso tempo? Como o senhor vê esse tipo de trabalho tendo em vista as transformações sociais, tecnológicas e no próprio mundo do trabalho? E sobre o atual pensamento acerca do desenvolvimento econômico no Brasil?
Márcio Pochmann – Do meu ponto de vista, destaco que não vejo o curso de uma revolução industrial, mas de uma profunda revolução tecnológica informacional: a superindustrialização dos serviços. Os analistas que tratam da 3.ª ou 4.ª revolução industrial (indústria 4.0) se encontram, em geral, prisioneiros da perspectiva teórica norte-centrista da sociedade pós-industrial aberta desde o fim da década de 1960 pelo francês Alain Touraine (A sociedade post-industrial, 1969) e o estadunidense Daniel Bell (O advento da sociedade pós-industrial, 1973). A visão evolutiva originalmente constituída pela premissa de formação de uma fase superior no seio da sociedade capitalista industrial, assim como havia sido, em geral, a passagem da antiga sociedade agrária para a urbana e industrial, terminou por conceder bases políticas pelas quais o neoliberalismo interpenetrou e dominou o horizonte de expectativas das classes dirigentes, especialmente no Ocidente.
Decorrido mais de meio século do predomínio das experiências neoliberais, os países do Ocidente constatam o desparecimento das classes dirigentes, absorvidas que foram pelas classes dominantes ao sequestrar o futuro, deixando aos governos de plantão a responsabilidade pela gestão das catástrofes de uma sociedade “pós-industrial” inferior, na maior parte das vezes, à industrial ou como prefere o alemão Wolfgang Streeck (Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático, 2018), que destacou o declínio da sociedade produtora de mercadorias com o avanço da desordem política e econômica que se estende das periferias ao antigo centro dinâmico do sistema capitalista ocidental.
Distantes de qualquer perspectiva de longo prazo que os governos possam oferecer, pois atuam sem planejamento, operando como se fossem prontos socorros a tratar quase exclusivamente das emergências, prevalecem os fundos abutres do improdutivismo financista-rentista a valorizar o estoque de riqueza velha (L. Dowbor, A era do capital improdutivo, 2017) e os produtores da acumulação por espoliação (D. Harvey, O novo imperialismo, 2003), a acelerar o colapso ambiental.
IHU – Quais são as ciladas presentes no discurso do desenvolvimento econômico e social estritamente atrelado ao investimento em desenvolvimento de tecnologia? Ou não há ciladas e o caminho é esse mesmo?
Márcio Pochmann – Importa compreender o impasse político em torno de duas visões principais a ocupar lugar privilegiado nas cabeças dos que realmente decidem no mundo Ocidental. De um lado, está a concepção do grande “reset” a ser realizado perante a desmontagem do que foi a experiência do capitalismo organizado durante os trinta anos gloriosos no segundo pós-Guerra Mundial, o que se constitui, na base da extrema-direita e do neoliberalismo conservador, a defender governos que desmontem consensos institucionais instalados como nos casos de [Donald] Trump e [Viktor] Orbán. De outro, está a concepção da grande “conciliação” em torno da ordem capitalista existente, necessária para reorganizar a maioria política voltada à recuperação pelo neoliberalismo progressista nas experiências exitosas do passado, conforme reivindicam os governos de [John] Biden e [Emmanuel] Macron.
Neste contexto, avançou desde o fim da Guerra Fria (1947-1991) o neoliberalismo à esquerda e à direita, conforme definiu Nancy Fraser (The End of Progressive Neoliberalism, 2017), o que significou o desaparecimento do desenvolvimento, trocado pela gestão das emergências que se mostram incapazes de reverter a escalada da estagnação secular no Ocidente, comprometendo profundamente as estruturas de poder global. Mesmo com todo o ciclo de taxas de juros negativas, especialmente desde a crise financeira 2008, as economias do norte-centrista não mais voltaram ao “normal” do crescimento econômico, bem como o salto tecnológico não tem resultado em ganhos de produtividade que permitissem apontar para o desenvolvimento como concebido nos anos dourados do capitalismo. A defesa do desenvolvimento sustentável se mostrou uma enorme pasmaceira retórica à espera de milagre, pois, nos últimos trinta anos, o que se viu foi a elevação da temperatura média anual, confirmada pelos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC. Para os capitalistas, em geral, a explicação racional de que o planeta não mais permitiria a universalização do “American way of life” soou como um alerta de que a exploração deveria ser acentuada ainda mais para garantir que os ganhos fossem capturados mais rapidamente em meio à caminhada pela insensatez humana.
IHU – Como o protagonismo chinês tem impactado o neoliberalismo ocidental? Que relações podemos estabelecer com a queda de grandes bancos estadunidenses e o Credit Suisse?
Márcio Pochmann – Com o término da Guerra Fria em 1991, houve a expectativa de que o capitalismo Ocidental viesse a apresentar uma trajetória equivalente aos “trinta anos gloriosos” do segundo pós-guerra, quando as forças do nazifascismo foram finalmente derrotadas pelas armas de fogo. A desmontagem soviética encerrava a divisão geográfica própria da Guerra Fria entre os primeiro, segundo e terceiro mundos, indicando que a globalização capitalista seria vista como o fim da história (F. Fukuyama, O fim da história e o último homem, 1992). Mas, ao contrário disso, ganhou evidência a expressão do declínio da modernidade ocidental (R. Kurz, O colapso da modernidade, 1993). Ao mesmo tempo, a imprensa Ocidental, fundamentada em organismos multilaterais como o Fundo Monetário Internacional – FMI e Banco Mundial, manteve posição agressiva à emergência asiática, difundindo diagnósticos sucessivos de crise financeiras e bancárias iminentes na China. Em vez disso, o que ocorreu foram sucessivas crises financeiras e bancárias nos países norte-centristas, como em 2001 (empresas ponto com), em 2008 (subprime) e atualmente (bancos estadunidenses e suíços).
O que se percebe é que desde 2019, dos 10 maiores bancos do mundo, os quatro primeiros são chineses, inclusive bancos criados em alternativa ao FMI e ao Banco Mundial, como o Banco dos BRICS, o Banco da Rota da Seda. O novo padrão de financiamento do desenvolvimento se encontra em curso na reorganização da Ordem Internacional, cujo programa chinês da Nova Rota da Seda tem sentido comparável ao Plano Marshall adotado pelos Estados Unidos ao fim da Segunda Guerra Mundial para eleger os seus parceiros (Europa Ocidental e Japão). Atualmente, a China também define os seus parceiros, especialmente no âmbito das relações Sul/Sul, onde o Brasil detém um protagonismo, conforme afirmado pela recente viagem de Lula à China.
IHU – Em artigo publicado recentemente, o senhor diz que desde a década de 1980 o arcabouço fiscal, no Brasil, serve ao neoliberalismo. Por que isso acontece e em medida o senhor acredita que o novo marco fiscal do atual governo romperá com essa lógica?
Márcio Pochmann – Os governos do presidente Lula têm sido de entrega, especialmente ao povo que mais precisa. O que se percebe neste início do terceiro mandato é que isso segue ocorrendo diante da intensidade de ações postas em práticas, conforme registrado pelo documento dos cem dias de governo.
Se considerar o conjunto dos documentos apresentados no período eleitoral de 2022 (Programa de reconstrução e transformação do Brasil, Diretrizes da coligação Brasil da esperança e Relatório final da transição governamental), estava presente a revogação da Emenda Constitucional n. 95, que definia o teto de gastos desde dezembro de 2016. Em parte, a emenda da transição (PEC n. 32/2022), que permitiu recolocar os pobres no orçamento em 2023, continha a desconstitucionalização do teto de gastos, fortalecendo o poder executivo diante do superpoder do legislativo no tema fiscal.
A proposta do novo regramento fiscal enviado ao Congresso segue o mesmo sentido. Fortalecer o poder executivo no tema fiscal com a flexibilização e bandas das regras de gastos. Uma vez aprovada, a gestão macroeconômica se estabelece em novas bases, sem que a questão da retomada do desenvolvimento nacional e, especialmente a reindustrialização, esteja resolvida. Mas isso deve estar situado no orçamento próprio das articulações governamentais no plano externo, restaurando o tripé do desenvolvimento desmontado há mais de três décadas, entre os capitais privados externos e internos e o Estado. A rearticulação governamental do tripé do capital (estatal e privado interno e externo) constitui peça-chave do novo padrão de financiamento voltado ao salto desenvolvimentista, sendo as regras fiscais mais importantes na gestão macroeconômica conjuntural que estrutural, assim como maior validade na esfera da economia política do que no processo de acumulação de capital.
IHU – Que desafios a digitalização da economia impõe ao mundo do trabalho hoje?
Márcio Pochmann – O Brasil precisa se preparar para ingressar de fato no século XXI. Para isso, deve contar com a implantação de um novo padrão de acumulação para o desenvolvimento autocentrado na reindustrialização em plena Era Digital. É a partir disso que se pode reconstituir o mundo do trabalho em bases decentes do pleno emprego, o que dificilmente ocorrerá sem o rompimento com a dependência periférica neoliberal gerida pela financeirização e superexploração do trabalho, resultante da atual presença na divisão internacional do trabalho enquanto país primário-exportador.
É importante destacar que o Brasil demorou três décadas para ingressar efetivamente no século XX, o que somente começou a ocorrer a partir da Revolução de 1930, quando o país se libertou do domínio liberal e passou a transitar do agrarismo prisioneiro do século XIX para a moderna sociedade industrial. Em menos de meio século, o Brasil integrou as dez principais economias industriais do mundo. Quando o país se preparava para ingressar na Era Digital, já em constituição ao final do século XX, com a montagem interna da microeletrônica e o salto tecnológico e informacional em curso, com a lei de informática e parcerias dos capitais japoneses e alemães, houve a grande desistência histórica nacional (M. Pochmann, A grande desistência histórica e o fim da sociedade industrial, 2022) que levou ao declínio de sua participação relativa no PIB mundial de 3,2%, em 1980, para 1,6% em 2021.
As últimas quatro décadas apontaram o retrocesso da especialização produtiva e da reprimarização exportadora, fruto da receita neoliberal que se mostrou mortífera à industrialização, consolidando o reino da financeirização sustentado por elevadíssimas taxas de juros e valorização cambial. Diante do modelo econômico extrovertido implementado, a dependência com o exterior passou a determinar o dinamismo nacional alimentado por mercado interno contido e asfixiante da produção e do consumo de bens industriais, cada vez mais provenientes do exterior.
A internalização da produção de bens e serviços digitais constitui a via pela qual a reindustrialização nacional deveria avançar, recompondo investimentos pelo tripé de capitais a partir da reorganização interna do Estado, que dispõe de recursos financeiros em reservas externas e depósitos internalizados. Da mesma forma, o capital privado nacional se encontra entesourado em fundos de aplicações financeiro-especulativos e de curto prazo, enquanto o esvaziamento do capital externo derivado dos países ocidentais, inclusive pela saída de grandes corporações transnacionais, pelo capital próprio dos países orientais, especialmente da China, tem sido crescente (M. Pochmann, Novos horizontes do Brasil na quarta transformação estrutural, 2022). Mas isso somente tenderá a ocorrer em definitivo com a superação do neoliberalismo.
IHU – Atualmente, o governo discute com os trabalhadores de plataformas a regularização desta atividade. Como a discussão está sendo feita? Que tipo de novas leis trabalhistas o país precisa para lidar com a uberização? Como avançar e não retroceder na conquista de direitos trabalhistas?
Márcio Pochmann – Sob a Era Digital, a divisão internacional do trabalho agrega dois tipos de países: os produtores e exportadores de bens e serviços digitais e os consumidores-importadores. O Brasil faz parte do segundo agrupamento de países, dependente do modelo primário-exportador para gerar divisas externas necessárias ao financiamento das importações dos bens e serviços digitais. Nesta condição, em que prevalecem internamente cada vez mais as atividades econômicas de baixa produtividade, cuja competitividade se assenta no uso ilimitado dos recursos naturais e no menor custo do trabalho possível, as possibilidades de geração de ocupações decentes e de pleno emprego são decrescentes. Mesmo as positivas propostas de defesa da proteção social e trabalhista, ainda que necessárias na reposição de direitos perdidos, elas tendem a consolidar um segmento apartado e privilegiado das multidões sem destino e sobrantes das atividades tipicamente capitalistas (M. Pochmann, O sindicato tem futuro?, 2020).
Até mesmo as importantes ações governamentais em defesa do salário-mínimo, por exemplo, encontram limites na margem de lucro dos setores econômicos de contida produtividade, conforme demonstrou a reação patronal no fim do primeiro mandato da presidenta Dilma. Como o emprego não se constituiu variável independente, pois condicionada pelo desempenho econômico, a solução geral para a classe trabalhadora passa pelo reposicionamento do Brasil na divisão internacional do trabalho da Era Digital, um requisito fundamental na preparação para o ingresso pleno no século XXI.
IHU – Como avalia as reações e estratégias de enfrentamento à fome e ao desemprego no Brasil, presentes em nossa realidade desde antes da pandemia?
Márcio Pochmann – A profunda revolução tecnológica informacional em curso, cuja superindustrialização dos serviços tem sido uma de suas principais características, altera significativamente a natureza do trabalho, colocando em questão as formas presentes, experimentadas pelo Brasil, de gestão da pobreza e da população sobrante no país. No contexto da proliferação de ocupações gerais desconectadas do sentido de identidade profissional e pertencimento coletivo, a relação salarial decorrente da tradicional polarização capital e trabalho, próprio da sociedade industrial, se metamorfoseia em nova relação débito/crédito associada à Era Digital.
Diante do custo (débito) de vida, a participação salarial tem declinado relativamente ao avanço das oportunidades de crédito associadas do endividamento, doações filantrópicas, programas governamentais de transferência de renda, monetização das redes sociais, aplicativos, entre outros. Ao mesmo tempo, conforma-se outra cultura de convivência, constituída pelas possibilidades de participação política que a Era Digital possibilita. Mesmo que não reconhecida plenamente, a digitalização das sociedades contempla uma nova dimensão de cidadania que ultrapassa a velha concepção de participação política exercida exclusivamente pela presença física e pelo protagonismo humano. Novos sujeitos, para além da ação humana, tornaram-se decisivos, como a biosfera, a mudança climática, a natureza, os vírus. Da mesma forma, as crescentes possibilidades tecnológicas convertidas em partes da indumentária humana (luvas, óculos e outros) fazem, da conectividade com o mundo virtual, o campo estendido e complexo da nova vida política democrática.
A esperança reside na construção de uma outra ordem interna, necessária para o desenvolvimento de um futuro comum. Pelo modelo de negócios da datificação, com espaços digitais subordinando multidões de indivíduos e instituições dependentes da produção e circulação de informações, o risco dos controladores de big data e comandantes de multidões a operar o trabalho imaterial fica desregulado das plataformas digitais. Ao longo das sociedades industriais, o domínio de uma classe social sobre outras não se apresentou inédito. Por isso, o necessário reconhecimento de que na Era Digital ocorre a reprodução de novas esferas de desigualdades, comprometedoras de movimentos e ações em defesa da igualdade.