Economista diz que “o Brasil precisa de um arcabouço fiscal que permita ao governo realizar uma política fiscal anticíclica no curto prazo, ao mesmo tempo que garante uma trajetória não explosiva para a relação dívida pública/PIB”
Bastou o presidente eleito Lula erguer a voz para falar que o combate à fome e a busca por um bem-estar social não devem ser preteridos a um ajuste fiscal para que começasse uma cantilena acerca do descontrole das contas. Com o dólar em alta e a bolsa de valores lá embaixo, o discurso hegemônico se arvora para defender, por vezes até de forma velada, o famigerado teto de gastos. Para o economista e professor José Luis Oreiro, “o problema é que o debate econômico feito no Brasil, na contramão do que ocorre atualmente nos países desenvolvidos, é baseado numa visão pré-keynesiana a respeito do funcionamento do sistema econômico”. “Essa visão é repetida ad nausean pelos economistas ligados direta ou indiretamente ao mercado financeiro e propagada pela grande mídia, onde há pouco ou nenhum espaço para vozes discordantes do ‘consenso macroeconômico’”, completa.
Oreiro observa que tal postura interdita um debate efetivo sobre o teto de gastos. “Este assumiu um status de ‘dogma de fé’. Como sabemos, aqueles que divergem de um dogma são considerados heréticos e ridicularizados pelos defensores da fé verdadeira”, critica. Por isso, na entrevista a seguir concedia por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele detalha a perspectiva de que o Estado tem condições de expandir seus gastos ainda sem perder o controle. “O Brasil precisa de um arcabouço fiscal que permita ao governo realizar uma política fiscal anticíclica no curto prazo, ao mesmo tempo que garante uma trajetória não explosiva para a relação dívida pública/PIB. O teto de gastos não atende a nenhuma das duas condições, razão pela qual precisa ser substituído o quanto antes por outro arcabouço fiscal”, pontua.
O professor, que com outros economistas endereçou uma carta ao governo eleito defendendo o fim do tacanho e truculento controle de gastos, detalha os principais pontos dessa correspondência e indica um caminho saudável, pela via da economia, para a conciliação nacional. “Na economia, a conciliação passa necessariamente pela retomada do desenvolvimento econômico. Esse tem que ser o foco. Não adianta insistir na agenda do ajuste fiscal sem recuperar o crescimento da economia brasileira, porque se trata de enxugar gelo. Não existe ajuste fiscal que pare em pé sem que a economia cresça”, explica.
Por fim, ainda escarna as contradições do teto que nem sequer cumpre o que busca. “Veja como o ‘teto de gastos’ é uma sandice: para que o governo federal pudesse fazer frente à pandemia de covid-19, foi necessário fazer uma nova emenda constitucional para gerir o momento, porque a regra fiscal, aprovada pelo governo de Michel Temer, simplesmente não tinha instrumentos para lidar com esse tipo de situação. Em 2020, os gastos realizados fora do teto somaram R$ 507,9 bilhões”, exemplifica.
José Luis Oreiro
Foto: Arquivo pessoal
José Luis Oreiro é professor associado do Departamento de Economia da Universidade de Brasília – UnB e do Programa de Doutorado em Integração Econômica da Universidade do País Basco, na Espanha, pesquisador Nível I do CNPq, membro sênior da Post-Keynesian Economics Society e da European Association for Evolutionary Political Economy. É líder do grupo de pesquisa Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento, do CNPq e assessor do Conselho Regional de Economia do Distrito Federal – CORECON-DF. Entre suas publicações, mais de 130 artigos em revistas científicas no Brasil e no exterior, destacamos os livros: Macroeconomia do desenvolvimento: uma perspectiva keynesiana (LTC, 2016) e Macrodinâmica pós-keynesiana: crescimento e distribuição de renda (Alta Books, 2018).
A entrevista foi originalmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU no dia 27-11-2022.
IHU – Como podemos compreender as resistências à revogação do teto de gastos?
José Luis Oreiro – Começo respondendo com uma citação de John Maynard Keynes tirada do prefácio do seu magnum opus “A teoria geral do emprego, do juro e da moeda” publicada em 1936: “A dificuldade não reside em desenvolver novas ideias, mas em escapar das velhas, que se ramificam, para aqueles que foram educados como a maioria de nós, em cada canto da nossa mente”.
Para Oreiro, A teoria geral do emprego, do juro e da moeda (Atlas, 1982), de Keynes, permite compreender as resistências à revogação do teto de gastos
Foto: Divulgação
O teto de gastos é o equivalente moderno do padrão-ouro, sistema monetário que vigorou até o colapso do sistema de Bretton Woods que estabelecia que a base monetária deveria estar “lastreada” em ouro para assegurar a confiança do mercado no valor da moeda.
No Brasil, a partir de 2016, criou-se uma convenção (definida por Keynes como uma crença compartilhada) de que o crescimento econômico só seria restaurado por intermédio de uma regra fiscal que impedisse o governo de aumentar seus gastos primários (o gasto com juros nunca é mencionado, pois se trata de uma “despesa ausente” no debate público sobre o ajuste fiscal no Brasil), pois o aumento dos gastos do governo levaria a um deslocamento (efeito crowding-out) dos investimentos do setor privado.
Trata-se de uma versão tupiniquim da velha “visão do tesouro” apresentada no início da década de 1930 pelo staff do Tesouro Britânico contra o programa de obras públicas defendido por Lloyd George, nas eleições gerais de 1929 no Reino Unido, para reduzir as elevadas taxas de desemprego observadas no país desde 1924. A revolução keynesiana demonstrou que a “visão do tesouro” pressupõe uma economia que está operando permanentemente em estado de pleno emprego, o qual é apenas um caso fortuito na dinâmica das economias capitalistas, as quais tendem a operar em uma situação persistente de subutilização da capacidade produtiva (homens e máquinas).
O problema é que o debate econômico feito no Brasil, na contramão do que ocorre atualmente nos países desenvolvidos, é baseado numa visão pré-keynesiana a respeito do funcionamento do sistema econômico, sendo que essa visão é repetida ad nausean pelos economistas ligados direta ou indiretamente ao mercado financeiro e propagada pela grande mídia, onde há pouco ou nenhum espaço para vozes discordantes do “consenso macroeconômico”.
Dessa forma, o debate público sobre o teto de gastos fica interditado, pois este assumiu um status de dogma de fé. Como sabemos, aqueles que divergem de um dogma são considerados heréticos e ridicularizados pelos defensores da fé verdadeira.
IHU – Que leitura faz das críticas que o presidente Lula vem recebendo ao falar que os gastos sociais não devem ser preteridos em nome do controle fiscal?
José Luis Oreiro – Acredito que a forma como o presidente Lula se expressou não foi muito feliz, porque é totalmente possível compatibilizar a disciplina fiscal com os gastos sociais. A questão fundamental, no debate político, é definir qual o tamanho do Estado que a sociedade deseja.
A história brasileira mostrou repetidas vezes, por intermédio da eleição de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff por dois mandatos consecutivos cada um, que a sociedade Brasileira quer um Estado do bem-estar social. Parafraseando Santo Agostinho: “Populus locutus, contenda finita” (“o povo falou, o debate está encerrado”, numa tradução livre). A frase original de Santo Agostinho é: “Roma locuta, contenda finita” (Roma se pronunciou, acabou o debate). Sendo assim, a disciplina fiscal consiste tão somente em arrecadar o volume de impostos necessários para financiar aquilo que o povo deseja. Se o déficit fiscal (estrutural, ou seja, ajustado pelo ciclo econômico) para financiar o Estado do bem-estar social se mostrar insustentável, então a solução econômica e política é aumentar a carga tributária para garantir a solvência intertemporal das contas do governo. É exatamente isso o que se espera de um governo de centro-esquerda, como é o caso do presidente eleito.
IHU – Precisamos de um controle fiscal?
José Luis Oreiro – Temos que definir precisamente o que se entende por controle fiscal. Defino controle fiscal como uma situação na qual a relação dívida pública/PIB apresenta uma tendência de estabilidade ou queda no médio e longo prazo. No curto prazo, não há nenhum problema em aumentar a dívida pública como proporção do PIB, pois uma das funções da política fiscal é precisamente estabilizar as flutuações econômicas e garantir que a economia funcione o mais próximo possível do pleno emprego dos fatores de produção.
Esse princípio elementar de finanças públicas tem sido omitido do debate público no Brasil, onde frequentemente se faz uma comparação grosseira entre as finanças públicas e as finanças de uma dona de casa. Essa comparação parece ser baseada no bom senso, mas veja: se fôssemos nos basear no bom senso, então a Terra deveria ser plana, dado que ninguém é capaz de ficar em pé, ao menos por muito tempo, sobre uma bola de futebol. Em suma, comparar as finanças públicas com as finanças de uma dona de casa é “terraplanismo econômico”.
Por outro lado, uma situação na qual a relação dívida pública/PIB aumenta de forma persistente, no médio e no longo prazo, não é sustentável, mesmo que a dívida pública esteja denominada na moeda legal do país. O real não é uma moeda de reserva internacional, razão pela qual se encontra num nível inferior na chamada hierarquia de moedas. Um aumento persistente da dívida pública pode levar o mercado – atuando com base nas suas convenções – a retirar dinheiro do país, produzindo uma desvalorização acentuada e súbita da taxa de câmbio, ou seja, uma crise cambial.
Está claro que o Banco Central tem instrumentos para amenizar os impactos dessa crise se assim o desejar. Mas a instabilidade nos mercados financeiros acabará por aumentar a percepção de incerteza de parte dos empresários, resultando em uma redução do investimento privado e, consequentemente, em recessão.
Em suma, o Brasil precisa de um arcabouço fiscal que permita ao governo realizar uma política fiscal anticíclica no curto prazo, ao mesmo tempo que garante uma trajetória não explosiva para a relação dívida pública/PIB. O teto de gastos não atende a nenhuma das duas condições, razão pela qual precisa ser substituído o quanto antes por outro arcabouço fiscal.
IHU – O senhor, junto de outros economistas, encaminhou uma carta a Lula em apoio à revogação do teto de gastos. Entre outras ponderações, vocês consideram esse teto como uma falácia, dada a sua ineficácia para o controle fiscal. Gostaria que o senhor recuperasse esse argumento e o detalhasse.
José Luis Oreiro – Na carta aberta ao presidente Lula, está escrito:
“A ideia de que o teto de gastos é fundamental para garantir a disciplina fiscal é uma falácia. Em primeiro lugar, o teto de gastos se mostrou incapaz de impedir que o governo Bolsonaro não apenas realizasse um volume de gastos de R$ 795 bilhões extrateto em quatro anos, como não impediu a criação de novos gastos públicos a menos de seis meses das eleições, algo que é explicitamente vedado pela legislação eleitoral. Deste modo, o teto de gastos não impediu o maior populismo eleitoral da história da República sob o governo de Jair Bolsonaro, com enorme complacência do mercado financeiro.”
(A carta pode ser acessada aqui.)
A ideia que levou à criação do teto de gastos era congelar o gasto primário da União por um período de dez anos, de forma que o crescimento do PIB durante esse período se encarregasse de reduzir o gasto primário como proporção do PIB entre 3 e 4 pontos porcentuais. Dessa forma, continua o argumento, o governo federal voltaria a gerar superávits primários expressivos, capazes de gerar uma queda da dívida pública como proporção do PIB, sem ter que realizar um aumento da carga tributária.
Em 2016, no debate público sobre a PEC do teto de gastos, afirmei que o teto era insustentável porque implicava numa redução do gasto público per capita, uma vez que a população brasileira crescia a um ritmo de 0,8% a.a. Dessa forma, o congelamento do gasto público implicava numa redução da oferta de bens e serviços públicos para a população num contexto em que existem claras deficiências na área de saúde, educação e assistência social. Além disso, existiam componentes do gasto da União que apresentavam taxas de crescimento real significativas e que não poderiam ser significativamente reduzidas, a não ser que direitos garantidos pela Constituição fossem negados.
É o caso, por exemplo, dos gastos com a Previdência Social. Mesmo após a reforma da Previdência em 2019, os gastos previdenciários continuaram aumentando em termos reais devido ao simples crescimento vegetativo dos aposentados e pensionistas. Sendo assim, a manutenção do teto de gastos num contexto de crescimento real das despesas previdenciárias exigiria a redução do chamado gasto não obrigatório, ou seja, aquele que o governo precisa executar por estarem amparados na Constituição.
Quais gastos foram cortados? O gasto com investimento público em infraestrutura, os gastos de consumo e custeio das universidades federais, o orçamento do Ministério de Ciência e Tecnologia e alguns programas de assistência social, como o Abono Salarial. Durante o governo Bolsonaro, os salários reais dos servidores públicos também apresentaram uma queda significativa devido à não reposição das perdas inflacionárias.
Durante a pandemia de covid-19, o Congresso aprovou a emenda constitucional do “orçamento de guerra” que suspendia o teto de gastos até 31-12-2020. Veja como o “teto de gastos” é uma sandice: para que o governo federal pudesse fazer frente à pandemia de covid-19, foi necessário fazer uma nova emenda para gerir o momento, porque a regra fiscal, aprovada pelo governo de Michel Temer, simplesmente não tinha instrumentos para lidar com esse tipo de situação. Em 2020, os gastos realizados fora do teto somaram R$ 507,9 bilhões.
No fim de 2021, com a aproximação das eleições e a baixa popularidade de Bolsonaro, o governo conseguiu que o Congresso aprovasse a chamada PEC dos Precatórios, visando abrir espaço no orçamento para manter o Auxílio Brasil em R$ 400,00 neste ano.
A PEC trouxe duas medidas. Uma delas foi alterar a regra de cálculo do teto de gastos. A regra originalmente estabelecida na EC nº 95 estabelecia que o valor autorizado para as despesas do governo seria atualizado pela inflação acumulada em 12 meses até junho do ano anterior. Isso porque o orçamento é formulado ao longo do segundo semestre do ano anterior. Dessa forma, o orçamento poderia ser formulado com a informação exata do valor do reajuste do teto.
Com a mudança proposta pelo governo Bolsonaro em 2021, o reajuste do teto passou a ser fixado com a inflação acumulada até dezembro. Ou seja, o orçamento é inicialmente formulado com base na inflação esperada para o ano e, ao fim dele, poderia ser ajustado, caso a inflação, no período final do ano, fosse diferente da inflação acumulada em 12 meses até junho.
O governo fez isso porque já projetava que a inflação fecharia 2021 mais alta do que o acumulado em 12 meses até junho daquele ano. Essa manobra permitiu ao governo gastar, em 2022, R$ 26 bilhões a mais do que seria autorizado pela regra original do teto, segundo os cálculos do economista Bráulio Borges do IBRE/FGV.
Além disso, a PEC autorizou o atraso no pagamento de precatórios (dívidas da União com pessoas e empresas já reconhecidas pela Justiça). O adiamento desses gastos abriu uma folga de mais R$ 49 bilhões no teto.
Em julho de 2022, o Congresso aprovou a chamada PEC kamikaze, autorizando uma série de benefícios acima do limite constitucional, como o aumento do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600 até 31 de dezembro e novos auxílios para caminhoneiros e taxistas. Foi necessário modificar a Constituição não só devido ao limite do teto, mas também para contornar a legislação eleitoral, que veda a criação de benefícios às vésperas da eleição.
Bráulio Borges calcula que serão gastos R$ 41,2 bilhões acima do teto até o final deste ano, devido à PEC kamikaze. Somando isso ao atraso dos precatórios e à mudança do cálculo do teto, o governo terá usado R$ 116,2 bilhões acima do que a regra original permitiria para este ano.
Um velho adágio popular diz que “contra fatos não há argumentos”. E os fatos mostram que o teto de gastos não só se mostrou incapaz de congelar os gastos primários da União como também não impediu o uso do orçamento público para fins eleitoreiros na maior escala vista em toda a história da República brasileira.
IHU – Ainda na carta, é dito que é equivocado considerar que o país tem taxas de juros altíssimas pelo fato de o Brasil ser considerado mau pagador. Por que há esse equívoco e o que explica as atuais taxas de juros?
José Luis Oreiro – O risco de um calote soberano é algo que é precificado no mercado. O índice EMBI+, criado pelo banco J.P.Morgan, mede a diferença (spread) entre as taxas de juros pagas sobre títulos da dívida pública de diversos países que são negociados nos Estados Unidos e a taxa de juros dos títulos da dívida pública norte-americana com idêntico prazo de maturidade. Dessa forma, a percepção de mercado sobre a “qualidade do devedor” pode ser visualizada dia a dia nos preços de mercado dos títulos da dívida pública.
Uma simples inspeção nos dados para o EMBI + Brasil mostra que o mercado não considera o Brasil um mau pagador, pois o spread tem se mantido estável, flutuando numa banda entre 250 a 350 pontos ao longo dos últimos anos. No fim do governo Lula, o spread soberano se encontrava num patamar mais baixo, em torno de 190 pontos. Se a taxa de juros no Brasil fosse determinada apenas com base na percepção de mercado sobre a “qualidade do devedor”, então a Selic nominal deveria estar hoje entre 6 e 7% a.a., ao invés de 13,75%.
A taxa de juros está em 13,75% porque o Banco Central acredita que esse é o valor adequado para trazer a inflação para a meta de 3,5%, com intervalo de tolerância de 1,5 p.p; ou seja, um valor máximo de 5% para o ano de 2022. Isso não tem nenhuma relação com a percepção de mercado sobre o risco de emprestar dinheiro para o governo brasileiro, mas com o modus operandi da política monetária no Brasil. Dado que no Brasil é dever do Banco Central manter a inflação na meta, que a inflação é medida pelo IPCA cheio, sem expurgos para itens mais voláteis como alimentos e energia, e que o prazo de convergência da inflação para a meta é o ano calendário, fica muito difícil para o Banco Central não impor doses cavalares de aumento da taxa de juros, mesmo num contexto de atividade econômica fraca, para cumprir aquilo que a sociedade brasileira manda que ele faça. Daqui, segue-se que só será possível ter taxas de juros mais baixas no Brasil por intermédio de uma mudança no arcabouço institucional da política monetária.
IHU – Que caminho deve ser adotado pelo novo governo quanto à política de juros?
José Luis Oreiro – O primeiro passo será uma flexibilização do regime de metas de inflação no Brasil. Uma ideia é aproveitar a lei que garantiu a autonomia operacional do Banco Central do Brasil para regulamentar o mandato duplo para a autoridade monetária. Embora essa lei preveja que o Banco Central deve se preocupar também com os efeitos da política de juros sobre o nível de atividade econômica, não há nenhuma orientação específica a respeito de como essa “preocupação” deve se manifestar em termos da condução da política monetária.
Eu proponho que o Congresso Nacional aprove uma lei que estabeleça uma taxa mínima de crescimento do PIB como objetivo complementar da política monetária. Assim, em períodos de baixo crescimento – por exemplo, abaixo de 1% –, o Banco Central deverá calibrar a taxa Selic de maneira a estimular a atividade econômica, de forma a que o crescimento anual se situe acima desse patamar mínimo.
Um segundo elemento fundamental será reduzir o grau de inércia inflacionária existente na economia brasileira. No trabalho intitulado “The Unfinished Stabilization of the Real Plan: An Analysis of the Indexation of the Brazilian Economy”, escrito em coautoria com o professor Júlio Fernando Costa Santos, da Universidade Federal de Uberlândia, e que será publicado em 2023 no livro Central Banks and Monetary Regimes in Emerging Economies – organizado pelos professores Luiz Fernando de Paula (IE/UFRJ) e Fernando Ferrari Filho (UFRGS) e editado pela Edward Elgar (Reino Unido) –, mostramos que a permanência da indexação de preços, salários e contratos com prazo de maturidade superior a um ano faz com que o coeficiente de autocorrelação das séries de inflação (o termo técnico para designar o grau de inércia inflacionária) no Brasil seja significativamente maior do que o observado nos Estados Unidos.
Dessa forma, o Banco Central do Brasil precisa usar uma dosagem de juros maior do que o Federal Reserve para conseguir reduzir a inflação. A indexação de quase 50% da dívida pública federal à taxa Selic, por sua vez, faz com que o custo de rolagem da dívida pública aumente instantaneamente com a elevação da taxa de juros por parte do Banco Central, ou seja, temos um efeito de contágio da política monetária sobre a dívida pública, justamente o inverso do que os economistas ortodoxos afirmam. Sendo assim, para eliminar o problema dos juros no Brasil será necessária uma reforma monetária com a extinção de todos os mecanismos de indexação ainda existentes no Brasil, o que inclui a substituição de todo o estoque de Letras Financeiras do Tesouro por papéis pré-fixados.
IHU – Qual sua avaliação quanto à PEC da transição? É o melhor caminho do ponto de vista econômico e social? E do ponto de vista da conciliação de forças, mercado e investimento social?
José Luis Oreiro – A PEC de transição é o melhor que pode ser feito por um governo que ainda não foi empossado e que tem pouco tempo disponível para garantir espaço no orçamento de 2023 para cumprir algumas das mais importantes promessas de campanha como, por exemplo, um valor de R$ 600,00 para o Bolsa Família com acréscimo de R$ 150,00 por filho.
IHU – Qual seu diagnóstico caso essa PEC da transição não seja aprovada?
José Luis Oreiro – Esse cenário é impossível.
IHU – São muitos os analistas que dizem que o grande desafio do governo Lula III será a promoção de uma conciliação no Brasil. Na área econômica, como essa conciliação se apresenta? Que forças estão em jogo?
José Luis Oreiro – Na economia, a conciliação passa necessariamente pela retomada do desenvolvimento econômico. Esse tem que ser o foco. Não adianta insistir na agenda do ajuste fiscal sem recuperar o crescimento da economia brasileira, porque se trata de enxugar gelo. Não existe ajuste fiscal que pare em pé sem que a economia cresça. Vimos isso após a implantação do teto de gastos.
Os defensores do teto de gastos afirmavam, em 2016, que ele seria a solução definitiva para o desequilíbrio fiscal no Brasil. Não foi. No fim de 2022, continuamos discutindo o problema do desequilíbrio fiscal no Brasil. Por quê? Certamente que não foi devido à adoção de medidas de controle fiscal. A reforma da Previdência foi aprovada em 2019. O teto de gastos e a reforma da Previdência deveriam ter equacionado a questão fiscal, mas isso não ocorreu. O que ficou faltando? Faltou o principal: a economia brasileira não retomou a tendência de crescimento do período 1980-2014 de 2,88% a.a, isso mesmo antes da pandemia da covid-19.
Entre 2017 e 2019, a economia brasileira cresceu em torno de 1,5% a.a. A agenda de reformas definida no documento “Ponte para o Futuro”, que serviu de base para a política econômica do governo Michel Temer, foi um fracasso retumbante.
IHU – Diante do atual cenário nacional e internacional, quais são os três pontos de que a equipe econômica do governo Lula III não pode abrir mão?
José Luis Oreiro – A futura equipe econômica precisa apresentar três coisas para a sociedade brasileira.
1. Uma nova regra que permita a realização de uma política fiscal anticíclica no curto prazo e garanta a sustentabilidade da dívida pública no médio e longo prazo.
2. Um projeto de reforma monetária que reformate o arcabouço institucional do regime de metas de inflação e elimine a indexação de preços, salários, contratos e dívida pública.
3. Um projeto para a reindustrialização do país que seja compatível com a transição para uma economia de baixo carbono.
IHU – Deseja acrescentar algo?
José Luis Oreiro – Apenas que estou à disposição para colaborar com o governo eleito no que ele precisar. Este governo tem que dar certo, porque a opção será o retorno da barbárie que vivemos durante o governo Bolsonaro.