Mesologia: uma ontologia em cujo centro está a categoria “relação”. Entrevista especial com Rodrigo Petronio

Segundo o pesquisador, “não existe nenhuma substância, nenhum ser para os quais as propriedades e as qualidades são imanentes. Todos os seres têm relação e esta é o que os determina”

Foto: Pixabay

Por: Edição: Patricia Fachin | 27 Agosto 2022

Os desafios postos à humanidade pelo fenômeno do antropoceno, a nova etapa geológica da Terra, segundo alguns pesquisadores, e a própria definição conceitual de antropoceno, exigem, segundo Rodrigo Petronio, a necessidade de repensar as ciências e desenvolver a Ciência do Sistema Terra. Essa nova ciência propõe compreender a totalidade do que existe a partir de quatro esferas: geosfera, biosfera, antroposfera e tecnosfera. "A Ciência do Sistema Terra tentaria integrar essas quatro esferas e imaginar que um dado tecnosférico, ou seja, um dado que se dá na esfera técnica, não pode ser separado da esfera humana e, por conseguinte, ambas esferas não podem ser separadas da esfera biológica, ou seja, dos seres vivos e que, consequentemente, não pode ser separado de todos os processos físico-químicos propriamente geológicos do planeta enquanto planeta", explica. 

Em relação a essas quatro esferas, o pesquisador acrescenta a necessidade de uma quinta, que seria "mental" ou "cognitiva", que teria um "valor matricial dentro do arranjo de todas as esferas" à medida que poderia alterar "padrões mentais" de consumo, de valores, de coesão social, econômicos e, por fim, da própria ciência e do mundo. "Não tem mais como, a partir do começo do século XXI e no terceiro milênio, pensar a partir do isolamento de disciplinas não comunicantes. Precisamos pensar daqui para frente não no nível da especialização, mas no nível da especificidade. A ciência precisa se ater à especificidade, mas precisa transcender a especialização. Isso é um desiderato, um imperativo: se não houver uma transcendência da especialização, a civilização humana vai sucumbir", adverte.

Rodrigo Petronio refletiu sobre essas e outras questões relativas ao antropoceno na conferência virtual intitulada "Mesoceno: a Era dos Meios e o Antropoceno", promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que reproduzimos a seguir, no formato de entrevista. Para ele, além dos desafios políticos, econômicos e sociais relativos à mutação em curso, "o problema do antropoceno está gerando uma demanda por novas espiritualidades que consigam entender a Terra como uma grande entidade, não diria transcendental, no sentido de transcendência divina – não precisamos de Deus para pensar essas coisas e de nenhuma categoria transcendente –, mas uma grande categoria transcendental no sentido kantiano de imaginar que os processos nos escapam, que não temos mais o domínio sobre processo nenhum, que o ser humano é radicalmente frágil, contingente, precário e que, enquanto não estivermos diante dessa precariedade, enquanto não nos olharmos no espelho e não vermos o quão precários, vulneráveis e em perigo nós estamos, não vamos conseguir produzir essa transcendentalidade possível de poder integrar todos os seres em um novo paradigma". 

E acrescenta: "Esse é momento catastrófico não apenas no sentido negativo de destruição; é catastrófico porque também perdemos as bússolas, os astros, a estrela que guiou a humanidade ao longo de muitos séculos e milênios. Essa estrela está perdida, se pulverizou e é preciso, então, criar novas ciências, novos saberes, novas espiritualidades que forneçam novas diretrizes de guias diante de uma Terra tão complexa, de um sistema e de um modo de vida tão complexo como esse que temos hoje em dia, que já existe há bilhões de anos, que é essa integração da vida". 

Em 15-09-2022, Petronio ministrará a conferência virtual "Abismos da Leveza. Por uma filosofia pluralista", que integra o "Ciclo de Estudos Manifesto Terrano. Construindo uma geofilosofia de Gaia", promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos. Mais informações estão disponíveis aqui.

 

Rodrigo Petronio (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Rodrigo Petronio é escritor e filósofo e atualmente é professor titular da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado FAAP. Desenvolve pós-doutorado no Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital TIDD/PUC-SP sobre a obra de Alfred North Whitehead e as ontologias e cosmologias contemporâneas. Ainda é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro UERJ. Possui dois mestrados: em Ciência da Religião, pela PUC-SP, sobre o filósofo contemporâneo Peter Sloterdijk, e em Literatura Comparada, pela UERJ, sobre literatura e filosofia na Renascença. 

No ano passado, lançou o livro Por que o futuro será uma era dos meios? (Estação das Letras e Cores, 2021). Entre suas publicações de poemas, destacamos História natural (Gargântua, 2000), Assinatura do sol (Gêmeos R, 2005) e Pedra de luz (A Girafa, 2005). Atualmente divide com Rodrigo Maltez Novaes a coordenação editorial das Obras Completas do filósofo Vilém Flusser pela Editora É. 

Pelo IHU, Petronio publicou Mesoceno. A Era dos Meios e o Antropoceno, Cadernos IHU ideias número 339; Yuval Noah Harari: pensador das eras humanas, Cadernos IHU ideias número 329; e Desbravar o Futuro. A antropotecnologia e os horizontes da hominização a partir do pensamento de Peter Sloterdijk, Cadernos IHU ideias número 321. 

A entrevista foi originalmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no dia 27-08-2022. 

Rodrigo Petrônio estará amanhã, dia 15 de setembro, às 10h proferindo a conferência Abismos da leveza. Por uma filosofia pluralista aqui no Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

O evento faz parte do Ciclo Manifesto Terrrano. Construindo uma geofilosofia de Gaia, promovido pelo IHU.

A primeira conferência do Ciclo foi proferida por Hilan Bensusan sob o título Daqui deste planeta: a terra deíctica e a espectralidade de Gaia

Para mais informações do evento de amanhã confira aqui

Confira a entrevista.

IHU – Como você chegou à formulação do conceito de “mesoceno”, abordado no seu livro “Por que o futuro será uma Era dos Meios?”? 

Rodrigo Petronio – Vou falar da trajetória de como cheguei a esse conceito demesoceno” para revelar o meio, os processos de pesquisa, os problemas, as questões, os dilemas que enfrentamos até consolidarmos um conceito, uma pesquisa, uma proposição de qualquer ordem. 

Esse tema é tratado no meu livro “Por que o futuro será uma Era dos Meios?”, publicado pela coleção Interrogações, dirigida pela professora Lucia Santaella, que quer responder às perguntas “Por que o futuro será uma Era dos Meios?”, “O que é a era dos meios e os meios nessa acepção?” e “Qual é a relação disso com o antropoceno?”. 

Há algum tempo tenho estudado o antropoceno, que é esse fenômeno de uma mutação profunda da Terra. Sempre que falamos de antropoceno, temos que imaginar – embora haja o termo anthrōpos – que ele designa uma mutação profunda da Terra e não dos humanos; é uma mutação profunda da Terra produzida pelos humanos. Por isso, temos sempre que ressaltar esta questão: estamos diante de um fenômeno de dimensões gigantescas. Costuma-se dizer que o antropoceno seria uma nova época da Terra. Se usa “época” e não “era” – e já vou explicar o motivo da minha adoção de “era” e não de “época” – porque dentro da datação da geologia, que é muito rigorosa com esses períodos de tempos geológicos, nós estamos dentro do holocenoholo, em grego, é totalidade. Ou seja, dentro da época da Terra que seria o holoceno. O holo é a totalidade integradora da vida dos seres vivos no planeta Terra. 

Esse período teria começado 12 mil anos atrás e a hipótese dos cientistas e pensadores em todo o mundo é que estamos exatamente no momento saindo do holoceno e adentrando essa nova época humana que está sendo batizada como antropoceno, justamente porque o humano está sendo o agente disruptivo e desintegrador dessa totalidade, dessa organização da vida que durou 12 mil anos. 

 

Era e época 

Por que não usar o termo “era”? Em ciências humanas, somos um pouco mais permissivos e flexíveis com o conceito de “era” e falamos da era industrial, da era x e da era y; às vezes, até de um modo um pouco metafórico. Mas como a chamada Ciência do Sistema Terra é uma das principais novas ciências e uma das mais transdisciplinares do mundo contemporâneo, além de uma das principais ciências de estudo do antropoceno, ela se baseia muito em questões químicas, físicas, geofísicas, biológicas, e, então, é importante usar o termo “época”, porque dentro da geologia uma “era” diz respeito a milhões de anos e não a milhares de anos. Então, tomamos isso como uma preliminar. 

Tenho estudado o antropoceno e optei por usar o termo “era”, e não “época”, porque estou tomando uma certa liberdade, pensando em um sentido prospectivo, de imaginar que as alterações que estamos produzindo, sim, estão nos introduzindo em uma nova época que poderá durar milhares de anos, como toda época é convencionada. Mas estou abordando o impacto dos humanos na Terra, já imaginando que esses impactos não são nem sequer uma nova época, mas já são passíveis de ser pensados em um futuro como uma nova era, porque os impactos atuais vão ter uma propagação e uma duração de mais de milhares de anos. Ou seja, já há algo que pode ser caracterizado como uma era. 

Se o holoceno é entendido como época dentro dessa datação, o antropoceno está sendo legislado e debatido no campo científico para se fundar uma nova época. É importante usar o conceito de época para haver uma certa restrição da definição, inclusive para consolidá-la e oficializar esse conceito que ainda não é oficial. Mas, no modo especulativo, pensando-se na filosofia especulativa, que é um modo de pensamento e de filosofar que me agrada muito, podemos transpor e transcender essa limitação da época e projetar esse futuro em um futuro um pouco mais dilatado, que seria o futuro de uma era. 

O termo antropoceno foi lançado por um químico chamado Paul Crutzen, há uns 20 anos, mas essa ideia de que já está havendo uma certa alteração na Terra retroage a alguns geólogos do século XIX que, concomitante à Revolução Industrial, estavam pensando em uma alteração mais profunda ou algum tipo de intervenção mais profunda que o humano estaria gerando e produzindo nos ecossistemas e, talvez, até na Terra como um todo.

 

 

Paradoxo do conceito de antropoceno

Ao investigar o termo antropoceno, comecei a tentar desenvolver alguns conceitos que tentassem nos tirar de um certo paradoxo que subjaz o conceito. O paradoxo é que se definimos antropoceno como impacto negativo do humano sobre o sistema Terra, o termo é ambivalente porque ele continua reafirmando a centralidade do humano no planeta. Então, a lógica é basicamente a seguinte: boa parte deste impacto negativo do humano na Terra está gerando essa nova época, a qual decorre da centralidade do humano. Ou seja, o humano que se separou da natureza e dos outros processos, que cortou, como diria Bruno Latour, as redes que nos ligam aos demais processos vivos e não-vivos, físicos e bioquímicos que constituem a Terra. O ser humano se alijou desses processos e gerou o chamado antropocentrismo, que é a centralidade do humano. Nesse sentido, podemos pensar que o impacto negativo sobre a Terra que estamos vivendo não é nada mais do que decorrência de um antropocentrismo que alguns autores chegam a datar de cerca de cinco ou seis séculos, mas podemos pensar em um antropocentrismo que já existe há dois mil anos. Então, existe aí um paradoxo, porque se o antropoceno é um conceito crítico que procura debater, dirimir e desativar esse impacto negativo do humano, ele ainda retém a centralidade do humano dentro do processo mesmo que ele quer desativar. Pensando nesse paradoxo e em uma maneira de solucioná-lo, comecei a tatear alguns conceitos alternativos. Por causa do meu ponto de vista e do meu temperamento otimista de pensar nas soluções e não nos problemas, de forma muito pragmática, não gostaria de ficar o tempo todo refém de uma visão distópica devastadora, de um beco sem saída, no sentido de que no fundo não há nenhuma alternativa para esse impacto negativo. 

 

IHU – Quais são as alternativas? 

Rodrigo Petronio – Uma das alternativas é o conceito de bioceno, que seria uma época da bios. Ou seja, uma época da integração da vida no sentido mais expandido e profundo possível. Então, haveria um momento que poderíamos definir como teocêntrico, ou seja, uma centralidade de Deus. Haveria um momento antropocêntrico, em que haveria a centralidade do humano e, agora, nós teríamos, para superar esses dilemas e reverter a devastação da Terra, uma nova etapa, a do bioceno. É a etapa de um biocentrismo, de pensar todas as estruturas vivas e não vivas da Terra em função da vida e de uma vida totalmente acêntrica, decentralizada, policêntrica, que não colocaria o humano no centro, mas, sim, todos os seres vivos como uma grande rede de teia de conexões globais. 

Ao pesquisar esse termo bioceno, em inglês e em outras línguas, cheguei a raríssimas contribuições de textos acadêmicos sobre isso e, dentre eles, um pesquisador da National Aeronautics and Space Administration – NASA [Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço], chamado Vikram Shyam, que trabalha na área de design de produtos. Ele cunhou o termo bioceno. Comecei a trabalhar esse termo em paridade com o trabalho dele. Ele escreveu um livro chamado “Bioceno”, que demorou para ser publicado e é relativamente recente. 

2014 NASA Asian American and Pacific Islander Month Profile, Vikram Shyam, GRC

 

 

Shyam tem uma visão bastante curiosa, que se coaduna muito com a minha, porque bioceno para ele não é necessariamente uma relação de centralidade de uma vida pré-tecnológica, não é uma vida distinta dos meios de artificialização da vida. Bioceno, para ele, é simplesmente o modo pelo qual, inclusive os sistemas artificiais que o humano tem criado, vão começar a usar a vida e os modelos vivos como paradigma e parâmetro para serem formados. Para vocês terem uma ideia, ele trabalha com designs de turbinas de foguetes de aeronaves espaciais baseado em fenômenos da natureza, como golfinhos, seres vivos, a chamada biomimesis. Isso não é tão novo e já existe na área do design, com o biomimetismo, trabalho de biomimesis. Mas isso é novo no projeto de Shyam porque é um projeto muito grande de integração entre artificial e natural, ou de uma modelização, de uma biomodelagem da vida artificial tecnosfera humana assim como ela vai começar a ser biomodelada a partir de organismos vivos. Essa biomodelagem vai gerar produtos mais integrados à natureza e menos hostis a ela e a Terra como um todo. Esse modelo é muito interessante e comecei a tateá-lo. 

 

Biocentrismo 

O que me chamou a atenção é que a noção de bioceno também tem alguns problemas, e um deles seria um certo biocentrismo, ou seja, imaginar que existem processos muito complexos na natureza e que não são, necessariamente, processos dos seres vivos. É muito longo esse debate, mas poderíamos pensar que, de fato, os seres vivos e os organismos são fenômenos mais complexos dos quais temos notícia, mas isso talvez porque nós ainda tenhamos uma visão muito reducionista da estrutura da matéria, da estrutura dos processos físico-químicos. Os processos físico-químicos talvez também sejam de alta complexidade, e nós sejamos herdeiros de um tipo de ciência do século XIX que divide muito orgânicos e inorgânicos. 

Para evitar esse biocentrismo e, ao mesmo tempo, pensar uma integração possível desses diversos sistemas e subsistemas que constituem a Terra, cunhei e desenvolvi o termo “mesoceno”. 

Biomímesis: Biogeometría | Grandes Documentales

IHU – Em que consiste o “mesoceno” e em que sentido seria uma alternativa aos outros conceitos? 

Rodrigo Petronio – Ele está ligado a uma teoria que venho desenvolvendo há vários anos, que é a chamada “mesologia”, teoria dosmesons” que, em grego, quer dizer “meios”. Esse foi o tema do meu doutorado e tenho explanado sobre esse conceito em várias oportunidades e em artigos de revistas. Na próxima palestra que vou ministrar no IHU, “Abismos da Leveza. Por uma filosofia pluralista”, tentarei aplicar o conceito demesoceno” para poder produzir uma leitura em várias estruturas de circunstâncias observacionais, de comportamento, com questões científicas, culturais, humanas, e questões epistemológicas e propriamente filosóficas. 

 

Mesoceno e a superação de paradoxos 

O “mesoceno” surgiu, para mim, como uma possibilidade muito interessante de superar dois paradoxos. O primeiro paradoxo é o do antropoceno, uma nova época de devastação da Terra, perpetrada pelos humanos, mas que traz os humanos em seu centro. O segundo é o paradoxo do biocentrismo, do bioceno, que é um modo de pensar a biomimesis como um modo pelo qual construímos uma camada artificial da Terra, mas toda ela vinculada à biomodelagem, ou seja, partindo de modelos biológicos vivos, mas, ao mesmo tempo, centralizada na própria vida, o que também é um paradoxo. Teríamos que pensar em outros tipos de modelos que não se esgotem apenas nos modelos biológicos para haver uma demanda de complexidade maior de outros processos inorgânicos e uma tentativa, de fato, de superação dessa dualidade que atravessa toda a história da ciência moderna desde Descartes até Jacques Monod e a biologia do século XX, que é o dualismo entre orgânico e inorgânico. 

Então, o “mesoceno” seria essa nova época ou era em que haveria uma espécie de grande sistema integrado de mediação, e tudo que é passível de ser pensado dentro da Terra deveria ser pensado por meio de relações e não de propriedades de cada ser. A teoria dos mesons, da mesologia, é uma ontologia relacional em cujo centro está a categoria “relação”. Não existe nenhuma qualidade, nenhuma propriedade, nenhum atributo de nenhum ser que lhes seja imanente. Ou seja, tudo que os seres são significa que eles não têm qualidades e propriedades imanentes a eles mesmos; todas as qualidades, propriedades e atributos seriam definidos a partir das relações que esses seres estabelecem com outros. Essa seria uma teoria da relacionalidade radical porque não existe substância com determinação própria; toda substância seria determinada por um outro, uma outra, e assim sucessivamente ao infinito. 

A categoria de infinito é muito importante aqui e existem algumas especificidades e uma dificuldade de lidar com o conceito de infinito, haja visto que um dos problemas do antropoceno é que nós imaginamos que os recursos da Terra são infinitos. É o problema do capitalismo. Mas não é nessa acepção que eu trabalho o conceito de infinito. O desdobramento das relações se propaga ao infinito e não existe nenhuma substância, nenhum ser para os quais as propriedades e as qualidades são imanentes. Todos os seres têm relação e esta é o que os determina. O “mesoceno” seria essa nova era dos meios porque seria um modo de lermos o problema do antropoceno, avançar e chegar a algumas soluções para esses impasses. 

 

IHU – Como chegou-se à noção de antropoceno? 

Rodrigo Petronio Não vou fazer uma argumentação fechada, mas uma amostragem e um levantamento de diversos tópicos e problemas que dão ensejo à reflexão sobre o antropoceno

O antropoceno e a técnica 

Uma das perspectivas do antropoceno é a técnica: não a técnica em si mesma, mas a hegemonia de certos processos técnicos acarretou o impacto negativo sobre a Terra. Por isso, se relaciona muito o antropoceno à industrialização, com a Revolução Industrial no século XIX, e também, a partir dos anos 1945, com a chamada grande aceleração, que é o modelo do capitalismo desenvolvimentista que se expandiu para todo o mundo, com picos de emissão de dióxido de carbono e emissão de gases poluentes, deteriorando ecossistemas. Isso diz respeito a um tipo de padrão técnico, a um modo de consumo e a modelos de sociedades que começaram a se consolidar em 1945 e estão chegando a alguns limites hoje em dia. 

Nesse sentido, a questão colocada pela reflexão em torno do antropoceno e dos dilemas que vivemos não diz respeito a uma idealização de um mundo pré-tecnológico e muito menos de uma demonização das tecnologias – isso não faria nenhum sentido. Mas diz respeito, sim, àquilo que o filósofo chinês Yuk Hui chama de tecnodiversidade. Então, o problema das tecnologias talvez seja a hegemonia de um único padrão tecnológico e de um único modelo de negócios – que no nosso caso é o do Vale do Silício hoje em dia e outras tecnologias poluentes – em detrimento de outras técnicas que podem ser entendidas nas suas localidades e pluralidades cultural e antropológica. 

 

Uma das primeiras saídas do antropoceno é pensar como podemos e conseguiríamos atualizar e preservar cosmotécnicas que foram extintas ou estão em vias de extinção, para pluralizar mais os modos técnicos pelos quais o humano se relaciona com a natureza e consigo mesmo. Assim como existe uma geodiversidade, uma biodiversidade, uma antropodiversidade, diversidade das culturas, diversidade geológica, diversidade da vida, há também uma diversidade das técnicas, que deveria ser um requisito e poderia ser uma das maneiras pelas quais poderíamos pensar uma saída possível do antropoceno

No debate sobre antropoceno no Brasil, costumo brincar com meus alunos que quando nos reencontrarmos daqui cinco ou dez anos, nós não vamos falar de nada que não seja isso. Essa palavra vai deixar de ser um vocabulário quase esotérico e uma palavra meramente de especialistas e vai entrar no debate público e no noticiário; vamos ouvi-la nas padarias, nos bares, nos ônibus, nas conversas na esquina, porque ela vai determinar a cultura humana daqui para frente. Então, precisamos nos precaver e estar à frente desse debate para entender o que está acontecendo e quais são as alternativas que nós temos. 

O Tempo Geológico e o Antropoceno | Gerson Fauth | TEDxUnisinos

 

Dilemas do antropoceno 

Dentro disso, outro limite que surge com o antropoceno é o chamado dilema das esferas. Essa teoria das esferas está muito alocada na obra de Peter Sloterdijk, filósofo contemporâneo alemão. O professor José Eli da Veiga, da área de Energia da USP, tem um livro superimportante e central no debate brasileiro e internacional sobre antropoceno, chamado “O Antropoceno e a Ciência do Sistema Terra”, no qual trabalha com as quatro esferas: geosfera, biosfera, antroposfera e tecnosfera. A esfera da geo, da Terra, é tratada no sentido geológico, por isso a Terra é um planeta – o conceito de planeta é astronômico e geológico, ou seja, o planeta não pressupõe vida. A biosfera, a biota, corresponde à camada de vida na qual o holoceno está integrado. A antroposfera, que é a esfera antropológica que os humanos criaram, pressupõe toda a estrutura cultural do que chamamos de civilização humana, de constructo do cultural humano. A tecnosfera, por sua vez, é a esfera das técnicas, que não é propriamente humana – teríamos que relativizar isso e pensar que as técnicas não são apenas humanas porque existem tecnologias animais e vegetais. Portanto, haveria círculos concêntricos e o debate sobre o antropoceno é um debate que procura entender como é possível, dentro do círculo menor, que é a tecnosfera, acessarmos e revertermos a deterioração dos ecossistemas e dos sistemas das outras esferas, sejam elas a geosfera, a biosfera ou a antroposfera. Isso porque vivemos em uma sociedade técnica e, embora a técnica seja causadora de muitos males, é muito difícil pensarmos em soluções não-técnicas no momento em que vivemos. Então, esse é o dilema. 

Mesoceno: a Era dos Meios e o Antropoceno

 

Terra: um metassistema 

Diante desse dilema, existe a própria conceituação do que estamos falando exatamente quando falamos da Terra. É aí é que entra a nova Ciência do Sistema Terra. Quando estamos falando em Terra, estamos pensando em um arquissistema ou naquilo que Edgar Morin chama de um metassistema, ou seja, uma integração horizontal e dinâmica de todos os sistemas e subsistemas que constituem a Terra. Só que quando falamos disso, estamos falando desde um processo celular molecular que está no meu corpo, até a arquitetura de uma cidade, até o sistema informacional das redes que capitalizaram e reticulam todo o planeta hoje em dia com a internet, até os sistemas do capitalismo e a estrutura informacional do sistema econômico. Estamos falando em microssistemas de pequenos grupos de interação, de sistemas que são linguísticos, culturais, de gênero, de distinções, de marcadores conversacionais, de símbolos, sistemas geológicos, biológicos, vegetais, minerais, antropológicos, etnológicos. Ou seja, a integração. Pensar em uma ciência que dê conta de produzir esses sistemas e subsistemas talvez seja o desafio não só do século XXI, mas o desafio do terceiro milênio – e é esse desafio que está sendo construído. 

 

Ciência do Sistema Terra 

Temos dado os primeiros passos para a construção desse desafio, que é a construção dessa arquiciência, que é a Ciência do Sistema Terra. A Ciência do Sistema Terra tentaria integrar essas quatro esferas e imaginar que um dado tecnosférico, ou seja, um dado que se dá na esfera técnica, não pode ser separado da esfera humana e, por conseguinte, ambas esferas não podem ser separadas da esfera biológica, ou seja, dos seres vivos e que, consequentemente, não pode ser separado de todos os processos físico-químicos propriamente geológicos do planeta enquanto planeta. O adicional, além de toda essa complexidade, é que a Ciência do Sistema Terra precisa mobilizar todas as ciências conhecidas e ramos específicos dentro de cada ciência. Esse é um trabalho hercúleo, gigante, mas maravilhoso e incrível. 

Não tem mais como, a partir do começo do século XXI e no terceiro milênio, pensar a partir do isolamento de disciplinas não comunicantes. Precisamos pensar daqui para frente não no nível da especialização, mas no nível da especificidade. A ciência precisa se ater à especificidade, mas precisa transcender a especialização. Isso é um desiderato, um imperativo: se não houver uma transcendência da especialização, a civilização humana vai sucumbir

O problema do antropoceno não é um problema apenas concernente a cientistas e não pode e não deve ficar entre os muros da academia. Então, [o seu tratamento] exige mais do que uma multidisciplinariedade, mais do que uma interdisciplinaridade. A Ciência do Sistema Terra exige uma transdisciplinaridade. Ou seja, uma transversalidade em que um saber e uma ciência alteram, modificam, transformam e produzem sínteses em relação a todas as outras ciências e saberes. Não é possível de outra forma a constituição dessa nova ciência porque ela exige essa transversalidade radical das quatro esferas, que englobariam todos os quatro sistemas da Terra. 

Muitos podem pensar que isso é utópico e impossível. Mas poderíamos dizer que é utópico, porém, necessário. Mais do que utópico, eu diria, com Edgar Morin, que nós estamos na pré-história do espírito e é preciso construir um novo espírito, um novo paradigma, uma nova consciência, uma nova mentalidade, uma nova ciência. No caso de Morin, a ciência da complexidade é o que pode dar conta das exigências do mundo em que vivemos. Então, talvez não seja mais uma questão facultativa, talvez seja um imperativo. E diante dos imperativos temos que entender que o imperativo transdisciplinar transcende o escopo da ciência. Esta é uma questão que Bruno Latour, um dos principais pensadores e um dos maiores conhecedores da questão do antropoceno e da teoria Gaia, coloca: o problema do antropoceno é um problema civilizacional, ou seja, envolve o conjunto de todas as produções do homo sapiens e a própria existência do sapiens está em risco porque não são os outros seres vivos que vão se extinguir. Esse é outro paradoxo do antropoceno. Os seres vivos estão passando por processos de adaptação, seleção e sobrevivendo há bilhões de anos na Terra. O ser humano é muito recente e é ele quem corre o risco de não sobreviver às alterações que ele mesmo tem criado em um sistema que sobreviverá a ele. 

 

IHU – Quais são os desafios de articular as quatro esferas que você mencionou? 

Rodrigo Petronio – A articulação dessas quatro esferas nos traz dilemas e desafios, mas existe aí outras camadas que podemos chamar de “quinta esfera”, uma esfera mental ou uma esfera cognitiva. Aí entra em um longo debate filosófico de filosofia da mente, da concepção do que é a mente, da relação entre ela e matéria, entre ela e consciência, consciência e matéria, e o que é exatamente consciência. Mas, simplificando bastante esse debate, pensaria, com Gregory Bateson, que não existe uma distinção clara entre natureza e mente. Quando falo em natureza, estou me referindo a todos os processos naturais; não estou falando dos humanos. Estou falando que os processos que chamamos de natureza são apenas uma modalização da mente e vice-versa. Os processos naturais são processos mentais que são reversíveis uns aos outros. Só que existe uma especificidade da mente, que é uma especificidade de um certo núcleo desses processos mentais, que podemos chamar de cognitivos, que tem um alto índice de indeterminação. Nós não conseguimos definir as nuances de certas ideias, percepções, volições, e isso nos leva a algumas dificuldades: a dificuldade de entender, além dessas quatro esferas, como essa quinta cognitiva se articularia com a quarta, qual nome dar a essa esfera, e em que medida essa esfera cognitiva também é capaz de alterar todas as outras. 

 

Para exemplificar: em que medida a alteração de padrões mentais pode alterar padrões de consumo, que pode alterar valores e que pode ter uma reação em cascata de alterar padrões religiosos e, por conseguinte, alterar padrões de coesão social que, consequentemente, vai alterar padrões econômicos e, assim, sucessivamente, concepções de ciência, de mundo. Ora, então é sinal de que essa quinta esfera tem um valor matricial dentro desse arranjo de todas as esferas. 

A professora Lucia Santaella, uma das maiores pesquisadoras brasileiras, tem cunhado o termo de “semiosfera”, que é excelente para pensar uma esfera dos signos – entendido na matriz de [Charles Sanders] Peirce, o grande filósofo da semiótica –, se estes já têm algum índice ou componente mental. Mesmo os processos da natureza são signos: uma simbiose da natureza, uma simbiose natural, mas ao mesmo tempo ela já é simultaneamente mental. É muito interessante pensarmos essa nova esfera a partir disso. Outro conceito possível seria o de noosfera, que vem de [Pierre] Teilhard de Chardin, para se pensar a esfera da mente. O termo nous em grego, “espírito” é muito difícil de ser traduzido e uma boa tradução seria “mente”, no sentido de todo o processo cognitivo e todo o conjunto de sensações, percepções, apreensões que pressupõe alguma subjetividade – e uma subjetividade que não seja necessariamente humana. Nessa chave, semiosfera e noosfera podem se encaixar nessa quinta esfera. 

Dialéticas do neo-humano: enfrentamentos e possibilidades civilizacionais no mundo atual

 

IHU – Por que você prefere se referir ao fenômeno do antropoceno como uma mutação e não como uma crise? Como a tecnologia pode oferecer saídas para enfrentar os desafios dessa nova era? 

Rodrigo Petronio – Essa é uma questão trazida por Latour. Para ele, usar o termo crise supõe ou sugere algo que é passageiro. O antropoceno não é uma crise; é uma mutação. Uma mutação da própria noção da vida, que passa por mutações. A mutação é uma mudança de eixo, uma mudança vertical de grandes proporções, enquadramentos de espaço e tempo, de grandes narrativas e de estrutura. Temos que pensar a gravidade dessas mutações. 

O jornalista de ciência David Wallace-Wells, no livro “A terra inabitável”, que é um dos melhores diagnósticos sobre mutações climáticas já produzidos, diz que [a situação] é muito pior do que imaginamos. Ele elenca uma síntese de várias informações, porque as mutações climáticas envolvem o que ele chama de efeito cascata. Por exemplo, uma hipótese que se tem em relação à região do Equador é que daqui a um tempo ela não será mais habitável por conta das altas temperaturas. Para onde vai a população que hoje se aloca na região? Isso já produz migrações em massa. Migrações em massa geram problemas de recursos, de divisão, luta ou mesmo guerra por recursos, que gera um problema de escassez. Essas migrações em massa também vão gerar fenômenos políticos e subprodutos destes no sentido de serem novas políticas que digam respeito à integração ou desintegração dos humanos nesses movimentos populacionais de grande dimensão. Uma hipótese, por exemplo, é a existência de 200 milhões de refugiados do clima até 2050, ou seja, em menos de 30 anos, segundo dados do IPCC. Como podemos pensar essa questão? 

 

Há também o problema daquilo que Timothy Morton chama de hiperobjetos: hiperobjetos não são objetos grande, são objetos incomensuráveis. A Amazônia é um hiperobjeto, as mutações climáticas são um hiperobjeto. Mesmo havendo um grande desenvolvimento de matemáticas probabilísticas, de sistemas probabilísticos, a climatologia pode não estar à altura ou não conseguir medir e mensurar de modo preciso e necessário as mutações dos impactos das mudanças climáticas em determinadas regiões. Uma das questões centrais desse pensamento, que vem no bojo da discussão sobre antropoceno, é a chamada teoria da emergência, teoria emergentista. Pensar a partir do conceito de emergência é basicamente pensar o que mencionei na teoria dos mesons, ou seja, não pensar duas substâncias ou dois seres, nem que a soma de duas propriedades e duas substâncias daria uma terceira substância ou uma terceira propriedade. A lógica da vida não se dá assim com a junção de duas substâncias que gera uma terceira, uma quarta, uma quinta. As qualidades emergem da relação. A soma de dois fatores não é um terceiro fator que some as quantidades e qualidade dos dois fatores. A soma de dois fatores, de dois seres, de duas substâncias, deflagra e produz propriedades emergentes que não podem muitas vezes ser quantificadas. Uma pessoa ou uma família que perdeu um filho e que tem dois filhos, não tem dois filhos nem três filhos; ela tem alguma coisa entre dois e três filhos. Se eu cortar “x árvores”, não tenho como quantificar se estou cortando “y número de árvores”. O corte das árvores não é uma soma das propriedades inerentes a cada árvore somente. O corte das árvores precisa ser entendido a partir de propriedades emergentes. Ou seja, da relação que aquele ecossistema estabelece com a relação dos ecossistemas adjacentes. Chegar a essas equações emergentes é um dos grandes desafios hoje da Ciência do Sistema Terra, das teorias da complexidade, da teoria Gaia, e de toda a ciência e epistemologia contemporânea para tentar produzir soluções para os impasses que vivemos. 

Tecnologia 

Uma questão que joga a nosso favor é também a tecnologia – e eu diria a tecnologia de dados –, especialmente a inteligência artificial, a computação e a computação quântica que está prestes a chegar e se tornar mais acessível. Isso porque talvez as dificuldades que temos de cruzar volumes estratosféricos de dados e entender sistemas infinitamente complexos, difíceis, e catastróficos no sentido de pouca previsibilidade, que precisam de cálculos probabilísticos muito sofisticados para serem determinados e estão o tempo todo mudando, possam ser sanados com essas tecnologias. 

Então, mais um desafio lançado pelo antropoceno é a utilização dessas tecnologias de modo a sairmos daquela visão romântica e individualista de que há um grande gênio que vai criar uma teoria ou uma pessoa que vai fazer cálculos no computador. Não é uma teoria ou um cientista que vai fazer isso; são redes, redes de humanos e não-humanos, redes de dados, de inputs e outputs e de processos de dados dentro de modelos matemáticos probabilísticos altamente sofisticados. Isso é possível e exequível. Nosso nível de compreensão desses sistemas complexos tem crescido e essa é uma saída possível para dimensionar os impactos antropocênicos que temos vivido. 

A questão da tecnologia também vai por muitos caminhos. Alguns são mais polêmicos e difíceis de serem contornados. James Lovelock, criador da teoria Gaia, é um defensor da energia nuclear. É muito interessante a argumentação dele; ele traz muitos dados e fatos e cruza dados para afirmar que nós temos uma visão equivocada da energia nuclear. Segundo ele, pensando em curto e médio prazo, talvez a energia nuclear seja a única saída para que possamos sustentar as vésperas de cumprir oito bilhões de pessoas no planeta e eliminarmos certos combustíveis fósseis e processos altamente poluentes, e fazermos uma transição energética para assegurar a vida do planeta, a vida do humano, assegurar a produção econômica, a produção de energia, dar sustentação a toda essa estrutura da civilização que nós criamos e, ao mesmo tempo, mitigar e minimizar alguns impactos. Tem vários debates que poderíamos desdobrar a partir da opinião dele. Existem outros teóricos criticando essa visão positiva da energia nuclear e chamando a atenção para todos os problemas que isso poderia trazer. Então, debater energia e entrar em alguns assuntos espinhosos é uma das necessidades que temos quando pensamos no antropoceno

Isolamento da espécie humana 

O biólogo, Edward Wilson, criador da sociobiologia, diz que a espécie humana foi se isolando das demais espécies. Nosso processo de isolacionismo gerou uma ruptura com os demais seres vivos e essa ruptura é que caracteriza a época humana e o modo de ser humano, o modo de operar humano em relação aos outros seres vivos. Essa solidão propiciou uma profunda confiabilidade do humano na sua inerradicabilidade. Traduzindo em outras palavras: o ser humano foi se afastando dos demais seres vivos, da Terra, e gerou um isolamento por meio técnico e artificial, o qual gera em nós uma mentalidade antropocêntrica e uma certa confiança desmedida de que nós não somos mais vulneráveis e, por conseguinte, somos inerradicáveis. 

Existe um desdobramento cosmológico desse tipo de perspectiva, dentro do qual alguns teóricos acreditam que o ser humano não teria como não existir dentro da história do cosmos e dentro da história da vida. Essa é uma tese muito ruim e nefasta; é uma tese que, às vezes, é conhecida como a centralidade do humano no sentido cosmológico, e ela se coaduna e se liga com a visão de Wilson porque se nós nos isolamos, somos potentes, conseguimos criar uma vida autônoma, livre e bastante diferente da das outras espécies. Se somos potentes, isso quer dizer que a nossa fragilidade foi minimizada. A solidão oculta essa fragilidade e, ao mesmo tempo, ressalta a ideia da inexorabilidade da existência do humano. Então, o humano, do ponto de vista cosmológico, já estava previsto no programa do cosmos, do universo e, portanto, não haveria como o humano não ter existido. Se não haveria como o humano não ter existido, quer dizer que ele nunca deixará de existir. Esse é o fundo cosmológico que perpassa o excepcionalismo humano e a solidão da espécie. Esses dois termos caminham juntos: a formação de uma solidão, do isolacionismo, constitui o mito do excepcionalismo, o mito de que o humano é excepcional e todos os outros seres são comuns. Esse mito é corroborado por essas teorias cosmológicas que têm um plano e uma necessidade cósmica da existência do humano – mas isso gera vários problemas. 

 

Teoria Gaia e Teoria Medeia 

Outro ponto importante e interessante dentro de todos esses dilemas é a chamada teoria Gaia. Por que ela é tão central quando debatemos o antropoceno? A teoria Gaia foi desenvolvida por James Lovelock e sua contrapartida é a teoria Medeia, que foi criada e desenvolvida por Peter Ward. A teoria Gaia vem da teoria dos sistemas em diálogo com a teoria cibernética dos anos 1950 e 1960. Ela é um modo de compreensão da vida diferente e que acrescenta um passo adiante na teoria de [Charles] Darwin. Resumindo bastante, no sentido da teoria darwiniana clássica, os seres vivos estão sempre respondendo a um meio que lhes é hostil e que é relativamente estável. Então, a seleção natural de Darwin é uma seleção por adaptação. O próprio nome já diz: há um processo de adaptabilidade ao meio pré-existente. O meio não é alterado pela vida. É a adaptabilidade ao meio que vai alterar a vida e produzir a sobrevivência dessas espécies, e isso diante de uma seleção de parentesco que leva milhares e milhões de anos. Certas espécies vão sobreviver e outras, não. A teoria Gaia altera bastante isso porque pensa na relação entre sistema e meio. Ou seja, uma relação indissolúvel entre a vida e o meio. E não apenas isso. Lovelock diz que as propriedades físico-químicas da Terra, ou seja, do meio físico, foram alteradas pelo advento da vida. Então, a vida não está apenas respondendo a um meio que lhe é hostil ou extrínseco e externo. Vida e meio constituem uma díade, como diria Sloterdijk, uma estrutura dual, e há uma autopoiesis, uma relação de construção e reconstrução, uma reversibilidade, como diria Edgar Morin, entre vida e meio. Isso altera tudo porque precisamos parar de pensar nesse antagonismo entre vida e meio e começar a pensar no modelo sistêmico, ou seja, uma retroalimentação cujo tecido e propagação não encontra um corte. Não existe um corte porque já imaginamos que existe essa relação de todo vivo com o não-vivo. Por exemplo, a atmosfera da Terra, que é feita de gases, a propriedade das águas, algumas propriedades químicas, físicas e geológicas, existem nessas condições no planeta porque a vida existe e esta produziu e propiciou certos elementos e certos processos físico-químicos e não outros. Essa relação sistêmica dá ensejo a essa visão, que seria a visão de Gaia

Gaia não é natureza porque não existe o conceito desta como uma natureza prévia ou uma natureza não-humana, não existe uma naturalização – é justamente o oposto à naturalização e ao naturalismo; nós estamos pensando em sistemas integrados. Existe aí a perspectiva de uma certa homeostase, uma certa possibilidade de equilíbrio entre essas diversas forças e diversos atores humanos e não-humanos que constituem a vida e a Terra. 

A teoria Medeia já parte de uma visão mais catastrofista, que está mais ligada a uma espécie de desequilíbrio estrutural da vida na Terra. Como houve cinco extinções, a vida não teria um processo autorregulador e uma auto-organização. A relação entre vida e não-vida, entre vida e meio, não seria pautada por uma base de auto-organização e, por conseguinte, a vida seria muito mais frágil do que imaginamos e, talvez, podemos pensar que uma grande extinção em massa seja irreversível. 

Existem muitos problemas nessas duas teorias, mas, de um modo geral, o que costumamos pensar é que essas visões catastrofistas trazem um problema em si. Qual é o problema do otimismo e do pessimismo? A ciência nunca pode se pautar por otimismo e pessimismo. A ciência precisa se pautar pelas evidências e a filosofia tem que se pautar pela razão. Então, quando vemos visões muito catastrofistas, isso nos fecha todas as portas e justifica determinadas posturas como as dos chamados ecocéticos, aqueles que negam, em certa medida, as evidências das mutações climáticas e do antropoceno, dizendo que isso é um ciclo da Terra e da vida e talvez isso seja irreversível e não tem como mudarmos essa situação. 

 

Paradoxos 

Esse tipo de visão é paradoxal: se não é possível mudar, não é possível mudar. Será que não vamos conseguir mudar porque acreditamos que não seja possível mudar, ou será que as coisas não vão mudar porque, de fato, não são passíveis de mudança? Caímos em uma tautologia e num círculo vicioso que congela as alternativas e as possibilidades da vida e obstrui a liberdade humana, que é a própria liberdade de poder gerar novos cenários, poder se autodeterminar, poder gerar novas formas de vida e saídas para esses impasses. 

Da mesma forma, a teoria Gaia não é uma teoria otimista – isso seria um equívoco de interpretação. Lovelock está apenas pensando que existe um limiar de uma certa auto-organização, mas ele pressupõe que essa auto-organização seja dos seres vivos e da Terra no seu conjunto todo – se é que existe um todo – e todos os sistemas se integram à Terra e não aos humanos. Então, dentro dessa auto-organização, pode haver uma auto-organização desequilibrada que possa produzir a erradicação dos humanos se estes não estão no centro. Não podemos mais pensar a partir da centralidade do humano dentro dessa visão sistêmica de Gaia

 

São desafios muito grandes, tanto intelectivos, científicos, cognitivos, quanto desafios políticos, econômicos, culturais e, diria, até espirituais. O problema do antropoceno está gerando uma demanda por novas espiritualidades que consigam entender a Terra como uma grande entidade, não diria transcendental, no sentido de transcendência divina – não precisamos de Deus para pensar essas coisas e de nenhuma categoria transcendente –, mas uma grande categoria transcendental no sentido kantiano. Isto é, no sentido de imaginar que os processos nos escapam, que não temos mais o domínio sobre processo nenhum, que o ser humano é radicalmente frágil, contingente, precário e que, enquanto não estivermos diante dessa precariedade, enquanto não nos olharmos no espelho e não vermos o quão precários, vulneráveis e em perigo nós estamos, não vamos conseguir produzir essa transcendentalidade possível de poder integrar todos os seres em um novo paradigma. 

O paradigma humano já foi perdido, como diria Morin, e nós não temos mais um paradigma para nos guiar. Jean-Pierre Dupuy, um dos maiores pensadores do mundo, na minha opinião, usa o termo catástrofe para designar essa falta de paradigma. Só que ele usa esse termo no sentido da perda do astro, a perda da estrela. Esse é momento catastrófico não apenas no sentido negativo de destruição; é catastrófico porque também perdemos as bússolas, os astros, a estrela que guiou a humanidade ao longo de muitos séculos e milênios. Essa estrela está perdida, se pulverizou e é preciso, então, criar novas ciências, novos saberes, novas espiritualidades que forneçam novas diretrizes de guias diante de uma Terra tão complexa, de um sistema e de um modo de vida tão complexo como esse que temos hoje em dia, que já existe há bilhões de anos, que é essa integração da vida. 

A teoria dos mesons que tenho desenvolvido visa olhar todos esses cenários e fatores, mas ressaltar sempre o sentido da relação, da mediação, dos meios, sejam eles meios vivos, integrados, sistêmicos, ecossistêmicos, ou meios em termos de relações de mediações que podemos estabelecer com tudo que é alheio ao humano. 

 

Leia mais