09 Julho 2021
"Morin obviamente não consegue apreender que a reflexão do Papa Francisco nasce justamente da categoria cristã da centralidade de Cristo, homem-Deus. Só porque Cristo está no centro da realidade e da realidade do homem é que podemos apreender a verdade do homem em sua complexidade e relação intrínseca consigo mesmo, com os outros e com a criação. Se Morin a alcança pela sensibilidade, o pensamento cristão a alcança pelo caminho da fé. Razão e fé, portanto, não estão em oposição, mas são verdadeiramente 'as duas asas com que o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade' (Fides et ratio, 1)", escreve Luigi Maria Epicoco, presbítero da arquidiocese de L'Aquila, Itália, que estudou filosofia e teologia na Pontifícia Universidade Lateranense e que formou-se em filosofia na Universidade Estadual de Roma, em artigo publicado por Osservatore Romano, 08-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um século de vida para Edgar Morin, pseudônimo de Edgar Nahoum, muito do qual despendido para satisfazer sua curiosidade pelo ser humano.
Há um episódio esclarecedor para a compreensão de Edgar Morin, o filósofo da "complexidade" e que, como ele próprio bem o compreendeu, talvez tenha sido a alma escondida de toda a sua longa vida e da sua obra: “A morte da minha mãe, que aconteceu quando eu tinha apenas dez anos, é o acontecimento mais importante da minha vida e suas consequências foram decisivas para o meu destino. Não tinha entendido que a morte era inseparável da minha obsessão pela verdade. Meu pai, de fato, tentou esconder de mim aquela morte, acreditando que ele poderia me enganar inventando todas aquelas histórias estúpidas sobre sua partida; mas na realidade eu tinha entendido, eu sabia do irreparável desde que tinha visto, no mesmo dia do funeral, seus sapatos e seu vestido preto. O horror da perda do amor então se ligou irrevogavelmente em mim com o horror da mentira. Desgostado pela boba e obtusa mentira de meu pai, acabei escondendo dele minha própria tristeza: nunca a mostrei e ele só a descobriu quarenta anos depois, quando a lembrei em meu Diário da Califórnia. Nunca pretendi possuir a verdade, mas sempre fui obcecado pelo erro e pela cegueira”.
Se quiséssemos encontrar um terreno comum para o diálogo entre Morin e o Cristianismo, talvez o pudéssemos encontrar exatamente nesta "obsessão". A paixão pela Verdade cria uma solidariedade humana que faz com que nos reconheçamos todos no mesmo barco, todos com a mesma pergunta. E se as respostas inevitavelmente nos separam, a pergunta ainda assim cria um vínculo de simpatia e respeito mútuo. De fato, Morin nunca escondeu a herança recebida mais de Spinoza do que do próprio Evangelho: “Pessoalmente, tenho uma concepção herdeira de Spinoza, baseada na capacidade criadora da natureza. Acredito que a criatividade não nasça de um criador inicial, mas de um evento inicial”. A figura de Jesus como filho de Deus parece completamente ausente, recuperada, porém, apenas em chave meramente horizontal. Parece ouvir as respostas que os discípulos dão a Jesus quando os questiona sobre o que pensam dele: "E eles responderam: João o Batista; e outros: Elias; mas outros: Um dos profetas" (Mc 8,28). Mas mesmo que falte em Morin o foco principal em Jesus, ele não perde de vista o que é importante em sua mensagem, como testemunho de que o caminho da razão leiga conduzido com lealdade conduz às mesmas prioridades da razão crente. É por isso que encontramos os temas caros a Morin claros também no Magistério dos últimos anos.
Por exemplo, por ocasião da publicação da carta encíclica Laudato si' do Papa Francisco, Morin concedeu uma entrevista ao jornal francês "La Croix" destacando aquilo que muitas vezes uma narrativa excessivamente rápida e superficial não consegue captar do pensamento da Igreja atual: "Francisco define ‘a ecologia integral’, que não é de forma alguma aquela ecologia ‘profunda’ que pretende nos converter ao culto da Terra, subordinando tudo o restante. Mostra que a ecologia diz respeito às nossas vidas em profundidade, à nossa civilização, aos nossos modos de agir, às nossas reflexões. Mais profundamente, critica um paradigma ‘tecno-econômico’, essa forma de pensar que preside todos os nossos discursos, tornando-os obrigatoriamente fiéis aos postulados técnicos e econômicos para resolver qualquer coisa. Este texto marca ao mesmo tempo uma tomada de consciência, um incitamento a repensar a nossa sociedade e a agir”. Morin capta o que muitas vezes escapa até a nós crentes: a palavra do Papa Francisco não é uma palavra que se adequa a uma visão mundana da história atual, é sim uma palavra que leva a sério a complexidade de nossa existência e restitui profundidade a temas, como aqueles do cuidado da criação, que correm o risco de se tornarem ideológicos.
E é precisamente a partir do risco ideológico que Morin continua sua reflexão atenta sobre o pensamento do Papa, aceitando o convite para redescobrir um novo humanismo diferente de um antropocentrismo ateu: “Esclareçamos a noção de humanismo - continua Morin - que tem um duplo sentido, como diz Francisco em seu discurso, criticando uma forma de antropocentrismo. Existe de fato um humanismo antropocêntrico, que coloca o homem no centro do universo, que o considera o único sujeito do universo. Em suma, no qual o homem toma o lugar de Deus. Não sou crente, mas acho que esse papel divino que o homem às vezes atribui a si mesmo é absolutamente insensato. E uma vez que escorregamos nesse princípio antropocêntrico, a missão do homem, muito claramente formulada por Descartes, é conquistar e dominar a natureza. O mundo da natureza se tornou um mundo de objetos. O verdadeiro humanismo, pelo contrário, consiste em reconhecer em cada ser vivente ao mesmo tempo um ser semelhante e diferente de mim”.
Morin obviamente não consegue apreender que a reflexão do Papa Francisco nasce justamente da categoria cristã da centralidade de Cristo, homem-Deus. Só porque Cristo está no centro da realidade e da realidade do homem é que podemos apreender a verdade do homem em sua complexidade e relação intrínseca consigo mesmo, com os outros e com a criação. Se Morin a alcança pela sensibilidade, o pensamento cristão a alcança pelo caminho da fé. Razão e fé, portanto, não estão em oposição, mas são verdadeiramente "as duas asas com que o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade" (Fides et ratio, 1).
Outro aspecto a salientar é a visão escatológica de Morin sobre a realidade. Obviamente, usamos o termo escatológico em sentido amplo, entendendo a capacidade de saber ver para além do que a própria realidade mostra sobre si mesma.
Em um tempo como o nosso, dominado por estatísticas e cálculos que muitas vezes não deixam margem para esperança, Morin oferece-nos confiança de um imprevisto que parece estar sempre subjacente à história e pelo qual vale a pena viver: “Não sou nem otimista nem pessimista. Se eu olhasse friamente para a realidade, não poderia nutrir esperanças. Mas a história da humanidade nos ensina que a salvação se manifesta repentina e inesperadamente. Como escrevia o poeta Höldelin, “onde há perigo, há salvação”. Somos feitos de tal forma que, somente quando caímos no abismo, nos damos conta da situação. Nem mesmo penso, com Gramsci, que se deva falar de otimismo da razão e pessimismo da vontade, porque é a razão que nos mostra os perigos que corremos. Sinto que estamos em perigo e todo o meu esforço visa impedir que ele nos destrua”. Talvez até caiba dizer que o poeta Eugenio Montale tinha razão: "Um imprevisto / é a única esperança".
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Os cem anos de Edgar Morin: filósofo da complexidade e da obsessão pela verdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU