A concepção de uma teologia capaz de se configurar como “um meridiano entre dois polos, entre o sofrimento humano e a afirmação da existência de Deus (Teodiceia)”. É assim que o doutor em Teologia Fundamental Paulo Suess define o principal legado de Johann Baptist Metz, que faleceu no último dia 2 de dezembro, aos 91 anos. Mundialmente reconhecido, Metz é fundador da chamada "Nova Teologia Política". Professor emérito da Universidade de Münster, foi considerado um dos mais importantes pensadores no período após o Concílio Vaticano II (1962-65). Aluno de Metz, Suess ainda observa que a “‘nova Teologia Política’ nunca será teologia partidária no sentido estreito de aderir a um ou outro partido, jamais mediadora entre partes conflitantes ou clericalização da política”. Isso porque se configura como “uma teologia que procura resgatar a teologia da privacidade burguesa, que separa a religião da sociedade, e da anistoricidade metafísica e universal, alheia à responsabilidade histórica”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Suess ainda detalha: “a ‘nova Teologia Política’, universalmente contextualizada, é teologia pública que se intromete nos conflitos concretos e que dá ao grito dos pobres uma memória e no abandono do crucificado e dos crucificados a perspectiva de uma correção possível”. Para ele, é nesse grito que pode se encontrar a canção, a eucaristia em que se celebra não somente a morte, mas a ressurreição. Ou seja, é manter a esperança de que o fim não é um ato consumado. “O Apocalipse não é uma mensagem catastrófica definitiva. É uma advertência. Alzheimer pode ser não só uma doença degenerativa, mas paradigmática da nossa civilização”, sintetiza.
Compreender essa “Teologia Política” num paralelo como Teologia da Libertação, consiste em, segundo Suess, entender que “‘a nova Teologia Política’ de Metz, por seu carisma pessoal e por ser o titular de uma cadeira acadêmica, era mais personalizada que a Teologia da Libertação”. “Uma era mais acadêmica, outra mais narrativa, portanto mais próxima à vida cotidiana dos leitores. Entre ambas as teologias havia uma solidariedade fundamental e um encontro crítico que se articulava na Revista Internacional Concilium”, acrescenta.
Assim, não é por acaso que vai considerar as aulas do antigo mestre como estreias de grandes espetáculos no Teatro Municipal de São Paulo. “No início, uma casa superlotada e suave nervosidade; durante a apresentação, silêncio místico, devoção e reverência no ar; no final, batidas acadêmicas nos bancos reproduziram o consentimento emocional”, resume.
Paulo Suess (Foto: Obind)
Paulo Suess é doutor em Teologia Fundamental, fundador do curso de Pós-Graduação em Missiologia, na então Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi e professor em várias Faculdades de Teologia no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia. Participou do Sínodo dos Bispos sobre Amazônia, como perito. Entre suas últimas publicações, destacamos Introdução à Teologia da Missão (Petrópolis: Vozes, 4a ed., 2015); Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007); Dicionário da Evangelii gaudium (São Paulo: Paulus, 2015); Missão e misericórdia - A transformação missionária da Igreja segundo a Evangelii gaudium (São Paulo: Paulinas, 2017); e Dicionário da Laudato si’ – Sobriedade feliz (São Paulo: Paulus, 2017).
A entrevista foi originalmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU no dia 10-12-2019.
IHU On-Line – Qual é o legado teológico de Johann Baptist Metz?
Paulo Suess – O fio condutor da teologia de Johann Baptist Metz, ao qual ele deu o nome “nova Teologia Política”, é como um meridiano entre dois polos, entre o sofrimento humano e a afirmação da existência de Deus (Teodiceia). Como articular estes dois polos: a bondade de um Deus amor e a existência do mal e do sofrimento? Como podemos ainda falar de uma história de salvação e de um Deus onipotente diante de uma história abismal de sofrimento? Entre esses dois polos, a “nova Teologia Política” nunca será teologia partidária no sentido estreito de aderir a um ou outro partido, jamais mediadora entre partes conflitantes ou clericalização da política, mas uma teologia que procura resgatar a teologia da privacidade burguesa, que separa a religião da sociedade, e da anistoricidade metafísica e universal, alheia à responsabilidade histórica.
A “nova Teologia Política” contestou a afirmação da inocência política da Igreja (neutralidade, indiferença). O sofrimento humano tem causas, vítimas e perpetradores beneficiados. A "memoria passionis" resiste ao esquecimento imposto (amnésia) por regimes autoritários que obrigam a humanidade a passar pelos meandros do rio Lete, o rio do esquecimento, como uma manada de bois para o matadouro: escravidão, colonização, Auschwitz, Hiroshima, killing fields de Camboja – esqueçam! O sofrimento exige opções, uma prática transformadora e a participação das vítimas nessas transformações. Numa aula, Metz definiu uma vez assim o papel da fé em sua teologia: “Fé é práxis em história e sociedade. Essa práxis se compreende como esperança solidária (memória perigosa) no Deus dos vivos e mortos, que resiste à divisão dos processos histórico-sociais no sentido de uma ‘história dos vencedores’, de uma utopia de justiça universal exclusivamente para as gerações vindouras, sem incluir os mortos”. Nesta postura apocalíptica e tensa, a fé encontra sua identidade em contraste com esquemas evolucionistas ou idealistas.
A “nova Teologia Política”, universalmente contextualizada, é teologia pública que se intromete nos conflitos concretos e que dá ao grito dos pobres uma memória e no abandono do crucificado e dos crucificados a perspectiva de uma correção possível e, talvez, o início de uma interrupção, sem suspender a irritação da pergunta de Jó: “Até quando?” Tempo não é passagem pela sala de espera da história, devidamente tranquilizado por uma esperança que aguarda o essencial depois. No tempo do grito há canção e na eucaristia celebramos morte e ressurreição “enquanto esperamos a vossa vinda”, enquanto celebramos uma festa de espera que tenta antecipar a Sua vinda e radicaliza sua encarnação, enquanto o sofrimento ainda não é consumado. Pode ser que a destruição da natureza seja o prelúdio da destruição apocalíptica da humanidade. Contudo, ainda não é consumado. O Apocalipse não é uma mensagem catastrófica definitiva. É uma advertência. Alzheimer pode ser não só uma doença degenerativa, mas paradigmática da nossa civilização.
IHU On-Line – Pode nos contar como foi sua relação pessoal e profissional com Metz?
Paulo Suess – Depois de uma presença prolongada “com as melhores intenções”, porém no fundo, despreparado, no baixo-Amazonas, senti cada vez mais o veto da realidade contra a teologia aprendida. A passagem de uma teologia de respostas, como geralmente se recebe nas Faculdades de Teologia, para uma Teologia de perguntas configura um choque cultural. Aprendi que o paradigma “missão e desenvolvimento” não rompe com a visão, nem com a prática colonial de 500 anos. Era fácil conseguir para o “nosso” desenvolvimento o aval do povo, que encontrou os modelos de seu progresso na cidade mais próxima, em Santarém, Belém ou Manaus. Éramos aplaudidos com as construções que levantávamos sem cessar: ambulatório, escolas, capelas, casas, quadras de esporte.
Na euforia desenvolvimentista, as estruturas paroquiais tornaram-se cada vez mais pesadas e, financeiramente, insustentáveis. Por causa das grandes distâncias, nem as revoltas estudantis de Paris e Rio de Janeiro, nem a ditadura militar de Brasília nos incomodaram muito. Mesmo Medellín, que em 1968 procurou inserir o Vaticano II na realidade latino-americana através do paradigma da libertação e da opção pelos pobres, para nós, na distante Amazônia, aconteceu anos mais tarde. Na época, vivíamos um certo atraso de informação que se tornou um atraso pastoral. Senti que, com a missão desenvolvimentista, entraria cada vez mais num beco sem saída. Como articular Comunidades de Base com festas patronais que instrumentalizaram a religiosidade popular como um pronto socorro transcendental para problemas de saúde nas comunidades e financeiras da paróquia?
Em 1974, resolvi sair da região em busca de uma articulação mais relevante entre pastoral, teologia e realidade sociocultural. Nessa época procurei Johann Baptist Metz, por causa de um artigo sobre “Igreja e Povo”, que ele tinha publicado na revista Stimmen der Zeit (Dez. 1974). Nesse artigo Metz falou da ruptura entre a fé do povo e seu sofrimento e a doutrina oficial da Igreja com respostas descontextualizadas para tudo. Como a Igreja pode tornar-se uma voz que não só exige redistribuição dos bens e reconhecimento dos outros, mas um lugar onde as diferentes culturas são reconhecidas e os bens redistribuídos através de uma participação e partilha plena dos pobres e dos outros?
Essa Igreja não seria mais uma Igreja para o povo, mas uma Igreja do povo. Os canais de comunicação entre povo e Igreja, dizia Metz, estão entupidos através de uma teologia distanciada por causa de seus padrões científicos, geograficamente distantes e historicamente cristalizados através de uma hermenêutica do Norte. Eu tinha a impressão que aqui falava alguém que conhecia a Amazônia. Arrumei minha mala e aterrissei em Münster, em maio de 1976, onde entreguei, em dezembro do mesmo ano, minha tese de doutorado sobre o “Catolicismo popular no Brasil” (Ed. Loyola, 1979).
Nesses poucos meses em Münster, participei de uma constelação de colaboradores em torno do mestre que não se ajoelharam diante dele. Periodicamente submeteram seus argumentos a uma contestação recíproca e contaram com o protesto bávaro de Metz. Nós, os ouvintes na antessala, tivemos que juntar todo o nosso saber sobre Tomás de Aquino, [Karl] Marx, [Ernst] Bloch, Walter Benjamin e [Theodor] Adorno para entender de que essas cabeças, vermelhas de ira santa, que saíram da sala do chefe, falaram. Através dessas trovoadas e relâmpagos acadêmicos, a constelação estrelar movimentava-se permanentemente, sem se desfazer. Acompanhava o mestre em formação ampliada e paralitúrgica para a sala de aula.
Aulas com Metz foram como estreias no Teatro Municipal de São Paulo. No início, uma casa superlotada e suave nervosidade; durante a apresentação, silêncio místico, devoção e reverência no ar; no final, batidas acadêmicas nos bancos reproduziram o consentimento emocional. Atrás da radicalidade das palavras, os ouvintes sentiram a fidelidade ao Evangelho e o horizonte de uma Igreja nova, católica e inculturada, pluricultural e multiétnica que Metz chamava de policêntrica.
Todos esses anos que se seguiram ficamos em contato solto.
Em 2006, Metz me enviou seu último livro “Memoria Passionis”, com uma dedicatória. Em 2008, a “constelação” em torno do mestre me convidou para fazer a palestra festiva por ocasião dos seus 80 anos. No ano passado, em 2018, já marcado pela idade avançada, quando celebrou seus 90 anos, consegui me despedir dele. Dia 2 de dezembro de 2019, Johann Baptist Metz passou pela ponte que ele construiu na Memoria Passionis, para a eternidade.
IHU On-Line – Como você percebe a relação entre as reflexões teológicas de Metz e a Teologia da Libertação?
Paulo Suess – A “nova Teologia Política” de Metz, por seu carisma pessoal e por ser o titular de uma cadeira acadêmica, era mais personalizada que a Teologia da Libertação, que tinha características de uma escola militante que resistiu às ditaduras latino-americanas. Uma era mais acadêmica, outra mais narrativa, portanto mais próxima à vida cotidiana dos leitores. Entre ambas as teologias havia uma solidariedade fundamental e um encontro crítico que se articulava na Revista Internacional Concilium.
Neste contexto, quero lembrar o “Memorando de teólogos alemães ocidentais a respeito da Campanha contra a Teologia da Libertação” (21.11.1977). Metz era um dos autores do “Memorando”, que era uma declaração de solidariedade à Igreja latino-americana e aos seus teólogos. Estes, desde Medellín (1968) não só foram perseguidos pelas ditaduras militares, mas também ideologicamente combatidos por publicações e congressos organizados com o apoio financeiro de certos setores católicos alemães. Os membros do “Círculo de estudos Igreja e Libertação” reagiram ao Memorando. “Metz”, escreveram, “com sua ‘Teologia Política’, está sentado, por um lado, entre as cadeiras da mais radical ‘Teologia da Libertação’, que lhe atesta uma distância total da práxis, e, por outro lado, da Doutrina Social, que ele acusa de uma falta de engajamento que emerge do centro e da radicalidade da fé cristã”. [1]
Faz dois anos que liguei para Baptist Metz, agradecendo seu gesto solidário. Na época do Memorando, quem nos teria dito que 40 anos mais tarde poderíamos entoar a canção do velho Simeão, que poderíamos partir em paz porque nossos olhos viram algo da luz de solidariedade e do amor aos pobres na Igreja institucional que tempos atrás olhou com ceticismo aos nossos escritos? Quem teria na época pensado em Jorge Mario Bergoglio, o então provincial dos Jesuítas na Argentina, que corresponderia exatamente ao perfil que Metz e Rahner, numa Carta Aberta aos cardeais alemães, escreveram, que em 1978 partiram para a eleição de João Paulo II? Na época, Metz e Rahner profeticamente postularam: “O futuro papa da nossa Igreja deve ser um papa dos pobres e dos oprimidos do mundo: não um papa burguês, cosmopolita e esclarecido; nem um papa que conserva o status quo eclesiástico; tampouco um papa que serve como um paliativo social. Sua opção pelos pobres e oprimidos significará seguimento de Jesus [...]. Para nós se tornaria um ‘aborrecimento produtivo’, um líder daquela conversão [...], daquela rejeição da prosperidade, sem a qual não pode haver comunhão de mesa entre pobres e ricos”. [2]
Os alunos de Metz, que retornaram à América Latina, inculturaram a Teologia Política de Metz em seus diferentes contextos e foram logo considerados teólogos da libertação. O que a academia, com suas reflexões teóricas e, por vezes, sem sujeito concreto, separou, a inserção na vida cotidiana latino-americana uniu: a proximidade à pastoral e setores proféticos da hierarquia, a militância junto ao povo pobre e a descolonização do Outro em países outrora colonizados.
A Igreja institucional discutiu com ceticismo as teses de Metz. Em 1979, o então cardeal de Munich, Joseph Ratzinger, impediu Metz, apesar de ser o primeiro na lista da Faculdade de Teologia, de assumir a cadeira de teologia de sua arquidiocese. No Katholikentag de Berlim, em junho de 1980, Metz, pela primeira vez, não constava mais do programa oficial do evento. Fez parte da pauta alternativa da “Kirche von unten” (“Igreja de baixo”, “Igreja de base”), em que acusou com a sagacidade e veemência, que lhe eram próprias, a arrogância da lógica desenvolvimentista europeia. Contra teologias neoescolásticas e modelos liberais aburguesados defendeu “Teologias Políticas da Libertação” e o modelo correspondente da Igreja como articulação de Comunidades Eclesiais de Base.
Metz aprendeu rápido, também dos alunos, que o aproximaram da América Latina. Tinha antenas sintonizadas com a academia, sem ser escravo da ciência. Sabia que certos pensamentos só podem ser transmitidos seguindo as sendas dos poetas ou respirando o faro do povo. Johann Baptist Metz se tornou cada vez mais um dos nossos!
IHU On-Line – Como a experiência da Segunda Guerra Mundial impactou a produção teológica de Metz?
Paulo Suess – Com 16 anos ainda, Metz ainda foi recrutado para participar dos últimos meses da Segunda Guerra Mundial. Entrincheirado na fronteira de guerra, seu comandante enviou o jovem soldado à retaguarda com uma mensagem para o quartel-general. Quando voltou à sua unidade, encontrou só mortos. Esse fundo biográfico, Metz contou aos seus alunos em diferentes ocasiões, permanece até hoje como uma espécie de fundo musical de todos os seus temas teológicos desde o fracasso dos sonhos de infância até a presença do perigo e do tempo limitado, desde as metáforas apocalípticas de uma história da fé que pode fracassar até sua desconfiança de uma escatologia que se reveste de uma neblina mítica e harmoniosa que idealiza o fracasso e o sofrimento que grita ao céu.
O perigo dessa “escatologia bem passada” é o esquecimento, o desaparecimento e a invisibilidade das vítimas. Falar do Deus das tradições bíblicas, porém, significa “dar uma memória aos gritos e ao tempo sua temporalidade, quer dizer, um prazo”. [3] No decorrer de seu trabalho teológico se manifestou uma sensibilidade crescente face a qualquer teodiceia. Quem fala do Deus de Jesus, tem que aceitar os questionamentos de certezas religiosas pelo sofrimento dos outros. Desde o início se mostram os vestígios do novo.
IHU On-Line – Como ele refletiu sobre a questão levantada após a Segunda Guerra: como é possível, depois da catástrofe humana de Auschwitz, um discurso, uma teologia sobre Deus?
Paulo Suess – No início da reflexão sobre a catástrofe de Auschwitz estava Adorno, que já em seu texto Crítica cultural e sociedade, de 1949, escreveu: “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas”. Mais tarde, em sua Dialética Negativa, Adorno retoma esse sentimento de estupefação: “Toda cultura depois de Auschwitz, inclusive a sua crítica urgente, é lixo”. [4]
Metz confessou que não foi a teologia, mas a atmosfera dos anos 1960, que o empurrou com sua teologia à confrontação com a história concreta de “Auschwitz”, o maior campo de concentração com mais de um milhão de pessoas assassinadas. Onde estava Deus que permitiu isso? Em 1961, aconteceu o julgamento de Adolf Eichmann, a partir de 1963 ocorreram os processos de Auschwitz, em Frankfurt, e em 1968 os protestos mundiais da juventude. A partir daí, a pergunta central não era mais somente: “Onde estava Deus naquela noite de Auschwitz?”; mas “Onde estavam as pessoas humanas, onde estava a humanidade?”. O olhar às vítimas forjou o olhar aos perpetradores e sua visão perversa do ser humano. O que seria se um dia a humanidade pudesse somente se defender contra as barbaridades da história pela arma do esquecimento? Existem feridas que o tempo não cura. Numa cultura da amnésia e num parque do esquecimento – onde fica a justiça maior? O que nos pode defender contra a repetição da catástrofe de Auschwitz, se não a confrontação e a memória “da noite em que foi entregue” (1Cor 11,23) com a noite histórica de Auschwitz e de outras noites da conquista, de Hiroshima, Vietnã e Camboja?
Depois de Auschwitz, a teologia deve questionar as estruturas políticas e sociais que permitem o sofrimento e a injustiça. Tudo está interligado e questionado: a história da paixão real da humanidade e a paixão de Cristo, a responsabilidade recíproca e a relevância pública. Sua Teologia Fundamental ultrapassa a antiga Apologética. Sua Teodiceia e Escatologia não são chaves de ouro. São refugiados na parábola apocalíptica do juízo final (Mt 25,31-46) que é um apelo à responsabilidade, aqui e agora: “Não existe sofrimento que não tem nada a ver conosco”. [5]
IHU On-Line – Quais foram as contribuições de Metz para superar as justificativas teológicas de Carl Schmitt para o totalitarismo? Como sua teologia política se contrapõe à teologia política de Schmitt?
Paulo Suess – A resposta de Metz a Carl Schmitt é a “reserva escatológica” e a esperança historicamente situada. Carl Schmitt (1888-1985), um especialista em direito constitucional e internacional, publicou em 1922 um livro com o título “Teologia Política – Quatro capítulos sobre a doutrina da soberania”, reeditado em 1934. O livro inicia com a famosa frase: “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. Para Schmitt, um ditador poderia representar a vontade popular melhor que um parlamento e cada Constituição deveria ter previsões de soberania da ditadura. Embora considerado sustentáculo do autoritarismo jurídico e ideológico de Hitler, teve dificuldades com o regime nazista.
Metz não tinha registrado essa “teologia política”, que na época, 20 anos após o final da segunda guerra mundial, não foi discutida nos seminários da faculdade teológica. Metz não se envolveu numa polêmica explícita com Schmitt, mas respondeu, implicitamente, com a figura teológica da “reserva escatológica”, que é política no sentido de limitar o alcance do agir político e eclesial e “reservar” para Deus as intervenções decisivas na história para “um grande finale”. Era um tópico teológico discutido anteriormente, sobretudo nos tratados escatológicos por teólogos protestantes como Albert Schweitzer, Karl Barth, Erik Peterson e Ernst Käsemann, para citar os mais conhecidos. Nesse contexto, Metz não cita nenhum deles. Ele situa seu agir político entre um realismo imediatista e um idealismo, que terceiriza os problemas de hoje para um futuro mítico de uma “terra sem males”. Ele cobra da teologia uma reflexão sobre aquilo que ainda falta, sobretudo lembrando o sofrimento dos injustiçados de ontem e hoje e insistindo numa “memória perigosa” alimentada por uma esperança histórica contra toda esperança. Um outro mundo é possível e é urgente.
IHU On-Line – Quais foram os teólogos que influenciaram a produção teológica de Metz?
Paulo Suess – A biografia teológica de Metz, como ele nos conta, é sobretudo marcada por Karl Rahner e sua “virada antropológica”. A revelação bíblica de Deus não deve ser tratada como um mero tema eclesial, mas como um diálogo inserido na história voltada ao mundo e à humanidade. A desprivatização da fé e do seu linguajar, e a purificação da filosofia transcendental (Kant) de pressupostos epistemológicos abstratos (aprioris), era um dos passos decisivos da Teologia Política voltada com seu rosto para o mundo, a história, a sociedade e o sofrimento do outro. Inspirada foi essa virada em Tomás de Aquino que capitaneou a virada do idealismo teológico marcado por Platão e Agostinho para Aristóteles.
A escola dominicana, que no Vaticano II, através de Chenu e Congar, forjou, ao menos parcialmente, a passagem de uma teologia dedutiva a uma teologia indutiva (cf. Gaudium et spes), abriu caminhos de salvação ao lado e além do monopólio salvífico. A metodologia do ver-julgar-agir, as opções pelos pobres e os Outros, as teologias e pastorais que trabalham com sujeitos concretos (mulheres, migrantes, lavradores, afro-americanos, indígenas) são, com toda a sua diversidade e reelaboração dos seus pressupostos filosóficos e culturais, inspiradas por essa “virada antropológica”. Ela inquietou a Igreja e até hoje convivem setores que consideram a história não como um lugar teológico, mas como sala de espera para a eternidade, e setores para os quais a realidade e a encarnação nela é mais importante que a ideia sobre ela (cf. EG 231-233).
No decorrer do seu itinerário teológico, o pensamento bíblico de Metz, com sua razão anamnética, que dá ao sofrimento uma memória é beneficiado por essa “virada antropológica” em detrimento do pensamento grego, que aposta na passagem pelo rio Lete. Sem descartar Atenas, é Jerusalém, é o pensamento bíblico que sustenta todas as teses teológicas de Metz. [6] Essa reflexão já tem seu início em 1962, com sua dissertação teológica (Christliche Anthropozentrik) orientada por Karl Rahner.
IHU On-Line – Que diálogos Metz estabeleceu com a filosofia, em especial com teóricos marxistas e representantes da Escola de Frankfurt?
Paulo Suess – Metz não copia seus ancestrais ou contemporâneos teológicos; ele sempre cria a partir deles. Interdisciplinaridade teológica e policentrismo pastoral se complementam. Junto com Karl Rahner, a partir dos anos 60, procura o diálogo com o marxismo e a Escola de Frankfurt. Os escritos de Walter Benjamin e Adorno, Ernst Bloch e [Jürgen] Habermas foram nossos interlocutores nos colóquios. Aos seus assistentes disse repetidas vezes: “Me tragam o pensamento deles. Depois eu faço a teologia”.
Com que fascínio estudávamos as teses de Walter Benjamin “Sobre o conceito de história”! Quando voltei ao Brasil, em 1977, para lecionar em Manaus, meu primeiro trabalho foi traduzir as teses de Benjamin, no Brasil ainda desconhecidas e até hoje atuais. Por exemplo, a 6ª Tese: “O dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer”. [7]
De sua geração, disse Habermas por ocasião da morte de seu amigo Metz, foi "provavelmente o teólogo que com mais paixão trabalhou a questão de que maneira se pode ainda depois do holocausto falar de Deus“. Adorno, em sua Dialética negativa (p. 24), talvez acertou melhor o que uniu a “nova Teologia Política”, de Metz, e a Escola de Frankfurt: “A necessidade de dar voz ao sofrimento é a condição de toda a verdade”.
No dia 31 de maio 2006, Metz me mandou a sua obra-síntese: “Memoria Passionis”. Eu a recebi dois meses mais tarde, chegando da “Romaria dos Mártires”, na Prelazia de São Félix, de Pedro Casaldáliga, onde tínhamos celebrado a “historia passionis” latino-americana. Agradeci-lhe com um fragmento da nossa “memoria passionis” sobre o assassinato de João Bosco Burnier (1976), na delegacia de Ribeirão Bonito (MT), onde foi construído um Santuário dos Mártires, e sobre o assassinato de Rudolf Lunkenbein (1976), que era um dos primeiros conselheiros do Cimi, assassinado em defesa do território do povo Bororo, junto com Simão Bororo. Mais de 3 mil pessoas participaram dessa romaria. O que me impactou naqueles dias foi a presença de três mulheres com uma relação muito próxima com esses martírios que celebramos: a mãe de Galdino, líder indígena do povo Pataxó, a mãe do padre Josimo Tavares e a mulher de Chicão, cacique do povo Xucuru.
Galdino foi à Brasília para tratar a demarcação do território de seu povo, no sul da Bahia. Após as comemorações do Dia do Índio, encontrando a sua hospedaria fechada, abrigou-se em uma parada de ônibus. Um grupo de jovens o viu, foi comprar gasolina, a derramou sobre Galdino e o incendiou. Morreu no dia 20 de abril de 1997.
O padre Josimo Tavares foi assassinado na escada do prédio da Mitra Diocesana de Imperatriz (MA), no Dia das Mães, dia 10 de maio de 1986. Josimo era coordenador regional da Pastoral da Terra - CPT, no Bico do Papagaio, marcado por conflitos agrários. Semanas antes do seu assassinato escapou de um atentado quando teve seu carro perfurado. Na Assembleia Diocesana de Tocantinópolis, em 27 de abril, falou consciente do perigo, livremente: “Agora estou empenhado na luta pela causa dos pobres lavradores indefesos, povo oprimido nas garras dos latifúndios. Se eu me calar, quem os defenderá?”.
Chicão, cacique do povo Xucuru, retornou depois de uma longa peregrinação pelo mundo urbano do Brasil para sua terra, no município de Pesqueira (PE), onde milagrosamente recuperou a sua saúde pela santa local. Chicão era uma liderança importante nas retomadas das terras tradicionais Xucuru, então em mãos de fazendeiros de gado. Os setores não indígenas da região, posseiros e fazendeiros, que se beneficiaram das terras indígenas e da mão de obra dos Xucuru se organizaram contra o povo Xucuru. Seis meses antes de ser morto, Chicão começou a receber ameaças. No dia 20 de maio de 1998, foi assassinado. Seu filho Marcos, também ameaçado de morte, continua o trabalho do pai. Naquela peregrinação, Dom Pedro Casaldáliga chamou Marcos ao palco e o convidou para fazer a homilia.
De Ribeirão Bonito, onde se encerrou a “Romaria dos Mártires”, para São Paulo se leva mais horas de viagem do que de São Paulo para Münster, onde, dia 2 de dezembro, terminou a peregrinação de Johann Baptist Metz. Seu livro (“Memoria Passionis”) e nossa caminhada (“Romaria dos Mártires”) têm como convergência o sofrimento do outro. Podem ser pontes que permitem idas e voltas, passar por riachos e abismos, caminhos complementares em busca de uma hermenêutica do Sul. No início e no fim da vida não há um ombro, só chão para se segurar e sentar. São peregrinações com tempo limitado, novamente com perspectivas desde o chão, passagens ao desconhecido, que, no final, cada um percorre só e do seu jeito.
[1] Studienkreis Kirche und Befreiung, Angriff und Abwehr. Berichte, Kommentare, Dokumente zum Streit um Adveniat und die `Theologie der Befreiung´, Pattloch, Aschaffenburg, 1978, p. 15.
[2]„Für einen Papst der Armen und Unterdrückten dieser Welt“, Süddeutsche Zeitung, Nr. 186 (16.08.1978), p. 8.
[3] METZ, J.B. Mit dem Gesicht zur Welt. Eine theologisch-biographische Auskunft, in: Jahrbuch Politische Theologie, Bd. 5, 2008 , p. 3.
[4] ADORNO, Th.W. Dialética Negativa, Rio de Janeiro, 2009, p. 304.
[5] Cf. rodapé n. 3, p. 9.
[6] Cf. Metz, J.B., Memoria Passionis, § 16.
[7]Löwy, M. (org.). Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”, Boitempo, São Paulo, 2005, p. 65.