28 Outubro 2024
"O centrão, bloco político que vai do centro à direita, governará 62% dos municípios. Partidos de esquerda, apenas 13% (metade do que em 2012)", escreve Bernardo Gutiérrez, jornalista, escritor e pesquisador hispano-brasileiro, em artigo publicado por El Diario, 28-10-2024.
A esquerda brasileira continua em estado crítico. Se em 2022 Lula da Silva conquistou a presidência liderando uma frente democrática contra a extrema direita, a esquerda foi derrotada nas eleições municipais. O segundo turno realizado ontem em 51 cidades, incluindo quinze capitais, confirmou os maus presságios das pesquisas. Guilherme Boulos, candidato do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), apoiado pelo presidente Lula, esteve longe de vencer em São Paulo: 40,65% dos votos, contra 59,35% de Ricardo Nunes, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), apoiado por Jair Bolsonaro. O Partido dos Trabalhadores (PT) perdeu quatro das cinco capitais em que disputou o segundo turno. Sua vitória em Fortaleza, uma importante cidade esquerdista do Nordeste com 2,5 milhões de habitantes, veio por uma margem estreita contra o candidato de Bolsonaro (menos de um ponto de diferença).
Uma das grandes decepções da esquerda foi o resultado desastroso em Porto Alegre, um dos berços do PT. O atual prefeito Sebastião Melo, que após sua má gestão após as enchentes de maio ficou conhecido como Sr. Enchentes, obteve 61,53% dos votos. “É de partir o coração que as enchentes não tenham tido resultado eleitoral”, lamentou o analista político Fernando de Barros na transmissão ao vivo do influente Fórum de Teresina. A nomeação de Maria do Rosário, figura sagrada do PTismo com alto índice de rejeição, foi duramente criticada, por ter bloqueado o caminho para lideranças mais jovens que ganharam visibilidade durante as enchentes. “Havia muitas figuras possíveis para as eleições municipais, como o deputado Edgar Pretto, mas o PT escolheu Maria do Rosário, como sinal de hierarquia”, afirmou a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado em entrevista após o primeiro turno.
Nos últimos doze anos, a esquerda perdeu metade das câmaras municipais que governava. Em 2012, os cinco partidos de esquerda governaram 1.468 cidades de um total de 5.565. Após o segundo turno de ontem, o número foi reduzido para 729. A ligeira recuperação do PT – passou de 183 para 252 – tem um sabor agridoce. Os candidatos apoiados por Lula que derrotaram bolsonaristas em cidades importantes como Rio de Janeiro ou Belo Horizonte, não são de esquerda, mas sim do chamado centrão. Paradoxalmente, o Partido Liberal (PL) de Jair Bolsonaro não sai tão vitorioso da disputa eleitoral como esperado. A direção do partido, que aspirava a mil prefeituras, terá de se contentar com 517. Governará apenas 4 das 27 capitais. O Republicanos, partido de Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente, governarão uma capital. Os números da extrema direita melhoram se for levada em consideração a aliança do PL com o establishment político, como tem sido o caso de São Paulo.
Os verdadeiros protagonistas da primeira disputa eleitoral desde o retorno de Lula à presidência foram uma nova extrema direita liderada por Pablo Marçal (que estava às portas do segundo turno em São Paulo), um clima hostil e com menor controle judicial das notícias falsas que nas eleições presidenciais e na vitória esmagadora do bloco político centrão (governará 3.500 municípios, 62% do total).
Durante o dia das eleições, Tarcísio de Freitas, governador bolsonarista do estado de São Paulo, afirmou sem provas que o poderoso comando do tráfico de drogas Primeiro Comando da Capital (PCC) estava pedindo o voto para Guilherme Boulos. A esquerda reagiu em uníssono, anunciando um processo judicial para desqualificar politicamente tanto o governador como o prefeito eleito Ricardo Nunes. A acusação de Tarcísio coincidiu com a desinformação que Pablo Marçal espalhou no primeiro turno contra Boulos, a quem acusou de ser usuário de drogas. “Falei com um eleitor que pensava que eu fabricava cocaína”, disse Boulos há poucos dias.
Em Belo Horizonte, o candidato de Bolsonaro, Bruno Engler, baseou sua campanha em notícias falsas e até acusou seu adversário, Fuad Noman, de encorajar violações sexuais.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que não é mais presidido pela mão de ferro de Alexandre de Moraes, flagelo de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022, não conseguiu controlar a onda de desinformação espalhada pela extrema direita. A demora na aprovação do Projeto de Lei 2.630 no Congresso, conhecido como PL das fake news, duramente atacado pelo lobby das Big Tech e pelo próprio Elon Musk, contribuiu para o clima de desinformação. “Mentiras e ataques definiram esta eleição”, disse Guilherme Boulos em sua primeira aparição pós-eleitoral.
A campanha foi marcada por violência verbal e até física. Em São Paulo, o candidato José Luiz Datena, popular apresentador de televisão que se inscreveu no histórico Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, bateu em Pablo Marçal com um banquinho durante um dos debates eleitorais. A cadeirada (sillazo) de Datena resume a perda do partido que liderou a direita brasileira durante décadas e que não governará nenhuma capital ou cidade relevante do país. Por outro lado, em outro debate, um assessor de Pablo Marçal agrediu com os punhos o assessor do prefeito Ricardo Nunes.
Os maus resultados da esquerda dispararam o alarme após o primeiro turno, em 6 de outubro. Uma das vozes mais críticas foi a de Marília Campos, que foi reeleita com 60% dos votos como prefeita de Contagem, importante cidade de 622 mil habitantes na região metropolitana de Belo Horizonte. Campos, uma das fundadoras do PT, desafia completamente a estratégia, o discurso e a narrativa de uma esquerda que olha para o passado. “Para superar a polarização, temos que apresentar um projeto brasileiro conectado a problemas reais. Temos que parar de falar de Jair Bolsonaro. O PT hoje pende para um discurso identitário, que dialoga apenas por uma bolha. Não é muito universal”, garantiu ao O Globo. Por sua vez, o deputado Reginaldo Lopes, do PT, insistiu na necessidade de autocrítica do partido. “O PT não pode conversar com a sociedade. O atual governo tem excelentes resultados, mas não consegue se comunicar com o povo”, afirmou o deputado.
Para o cientista político Leandro Consentino, a atitude do partido de Lula de ceder a liderança dos candidatos a outros partidos não surtiu efeitos positivos, apesar de a estratégia ter conseguido derrotar o bolsonarismo em locais-chave como Rio de Janeiro ou Belo Horizonte. “Nas grandes cidades o PT sai menor, bastante desarticulado. Faz parte de uma estratégia concebida há muito tempo, para ganhar aliados até 2026, mas veremos se valerá a pena no longo prazo. Não parece uma boa ideia porque perde capilaridade”, disse Consentino ao Correio Braziliense.
As eleições municipais apontam algumas tendências para a disputa presidencial de 2026. O resultado em São Paulo, disputa que o próprio Lula descreveu como um ensaio para 2026, pinta um cenário confuso. A vitória de Ricardo Nunes ocorre com a maior abstenção da história de São Paulo em segundo turno, num país onde o voto é obrigatório: 31%. Por sua vez, a figura de Jair Bolsonaro sai desgastada. O vitorioso Nunes, em seu discurso oficial, mencionou de passagem Bolsonaro e elogiou Tarcísio de Freitas, a quem definiu como um “líder maior”.
Por outro lado, Pablo Marçal, o novo outsider do Brasil, surge com sérias possibilidades de ser o candidato mais competitivo da extrema direita. A pesquisa Quaest confirmou há algumas semanas a divisão da extrema direita: sem Bolsonaro na disputa de 2026 (ele está desqualificado politicamente) os ultravotos ficam divididos entre Pablo Marçal (18%) e Tarcísio de Freitas (15%). Em primeiro lugar aparece Lula (32%).
A nível nacional, os resultados municipais podem interferir nas alianças de esquerda. Em 2022, Lula montou uma frente democrática com poucos partidos de direita que seduziu o centro com um candidato à vice-presidência historicamente conservador (Geraldo Alckmin). Em 2026, após a vitória clara do centrão, a incorporação dos partidos de direita à frente democrática de Lula parece inevitável.
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A esquerda brasileira derrapa nas eleições municipais. Artigo de Bernardo Gutiérrez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU