13 Julho 2024
"É preciso voltar à consciência e à sabedoria milenar das tradições indígenas reaprendendo o respeito e a reverência aos elementos mais sagrados. Existem algumas coisas que o dinheiro não pode comprar. A natureza já emite sinais evidentes de saturação, indicando que está na hora da mudança ou já passou desta hora", escreve o padre jesuíta Sandoval Alves Rocha.
Sandoval Alves Rocha é doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciências Sociais pela Unisinos/RS, bacharel em Teologia e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE, MG), membro da Companhia de Jesus (jesuíta), trabalha no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), em Manaus.
Formado por diversas organizações e movimentos sociais, o Fórum das Águas do Amazonas manifestou o descontentamento da população manauense com os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, realizados atualmente pela empresa Águas de Manaus. A concessão privada do saneamento manauara, iniciada no dia 04 de julho de 2000, já foi impugnada inúmeras vezes ao longo dos seus 24 anos de existência.
Além dos questionamentos levantados pelo Ministério Público Estadual, o empreendimento já sofreu três investigações parlamentares (CPI 2005, CPI 2012 e CPI 2023) lavadas a curso pela Câmara Municipal de Manaus, visando mensurar a precariedade dos serviços na cidade, chegando a recomendar a quebra do contrato de concessão pelas irregularidades encontradas e os graves abusos contra a população manauense. Junto a esses desvios, o Fórum das Águas do Amazonas também destacou diversos outros pontos que fazem dessa privatização uma fonte de decepções e reclamações.
Entre as reclamações destacam-se: o nosso esgotamento sanitário chega somente a 26% da cidade; ocupamos os piores lugares no ranking do saneamento brasileiro; grande parte dos esgotos é lançada nos nossos igarapés; pagamos as tarifas mais caras da região amazônica e do Brasil; ainda encontramos muitas comunidades sem água potável em Manaus; a qualidade da água servida pela empresa não é recomendável em muitos bairros; a concessionária é uma das empresas mais reclamadas da cidade; a fiscalização dos serviços não funciona adequadamente; e a ampliação dos serviços é geralmente financiada pelos cofres públicos.
Tais reclamações são comumente identificadas em diversas privatizações, gerando processos de remunicipalização ou reestatização em cidades de muitos países: Bolívia, França, Alemanha, Argentina, Estados Unidos, Uruguai, Inglaterra, entre outros. O site “Water remunicipalizacion Tracker” coleciona uma biblioteca de casos de remunicipalizações pelo mundo. Segundo as contas da plataforma, nos últimos 15 anos, 235 cidades em 37 países remunicipalizaram seus serviços de água e esgoto, impactando a vida de mais de 100 milhões de pessoas.
O grito do Fórum das Águas está fundamentado nestas reclamações concretas, mas a cultura amazônica que é fomentada por inúmeras tradições indígenas tem fornecido uma importante objeção aos processos de privatização que avançam indiscriminadamente no Brasil. Estas culturas têm trazido à consciência ocidental o fato de que a água é vida e não pode ser tratada como simples mercadoria para produzir lucros em benefício de alguns. Para muitas tradições indígenas, a água é um elemento sagrado e a sua mercantilização constitui uma grave profanação. A transformação de um elemento tão essencial em produto de compra e venda implica degradar tal elemento, ignorando o seu elevado valor, a sua dignidade e respeito.
A Organização das Nações Unidas (ONU), ao reconhecer a água como direito fundamental, confirmou de alguma forma a essencialidade deste elemento para o ser humano e para o ecossistema. De fato, na declaração da água como direito humano, a ONU afirma que ela é um direito do qual depende todos os outros direitos. Assim, 28 de julho de 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou a água limpa e o saneamento um direito humano essencial para gozar plenamente a vida e todos os outros direitos humanos.
Esta percepção ajuda a compreender a importância da água para a vida e promove uma rede universal de defesa das águas alertando para o perigo de sua integração ao mercado capitalista para servir aos interesses de grupos econômicos poderosos. Podemos perceber em Manaus o quanto esta experiência tem gerado exclusão e iniquidade social. O avanço da mentalidade mercadológica em todas as dimensões da vida já tem se mostrado um caminho perigoso a partir das tragédias ambientais cada vez mais recorrentes no mundo contemporâneo.
É preciso voltar à consciência e à sabedoria milenar das tradições indígenas reaprendendo o respeito e a reverência aos elementos mais sagrados. Existem algumas coisas que o dinheiro não pode comprar. A natureza já emite sinais evidentes de saturação, indicando que está na hora da mudança ou já passou desta hora. Agora talvez seja o momento de recolheremos os frutos das profanações que o ser humano realizou ao longo dos últimos séculos, ultrapassando importantes limites éticos e ecológicos.
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Água é vida, não é mercadoria! Artigo de Sandoval Alves Rocha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU