20 Junho 2024
“Temos de reconhecer que estamos pregando para o vento”, disse-me há três semanas um padre jesuíta cuja história sacerdotal é do firme compromisso com os mais pobres, os desprovidos, a gente posta à margem. A declaração, feita em meio a conversa sobre a situação dramática no Rio Grande do Sul, a frágil percepção da responsabilidade humana na feitura da atual realidade e o apetite guloso em ampliar áreas privatizadas, quem sabe transformar o rio Guaíba em propriedade particular.
O artigo é de Ivânia Vieira, jornalista, professora da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), doutora em Processos Socioculturais da Amazônia, articulista no jornal A Crítica de Manaus, cofundadora do Fórum de Mulheres Afroameríndias e Caribenhas e do Movimento de Mulheres Solidárias do Amazonas (Musas).
Na sexta-feira (14) ao tomar conhecimento da nota da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em apoio ao Projeto de Lei nº 1.904/2024, o “PL do Estuprador”, lembrei a preocupação e a tristeza do padre jesuíta. Ele tem razão. Ao selar o apoio a essa proposta retrógrada, inconstitucional e virulenta a quem parcela dos bispos brasileiros quer agradar? Não é a Deus, seguramente.
Reconhecemos o quanto a CNBB mudou nas últimas décadas e amoldou a atuação sacerdotal de um território ultraconservador na gestão da fé para outro agir assumindo as dores e as angústias dos pobres numa opção preferencial. Na juventude, minha formação tem muito dessa CNBB, representada em mulheres e homens em missão na Amazônia e no Amazonas. Aprendi com elas e eles sobre a importância da igreja viva e caminhante diante da conduta de alguns dos seus pares pelo gosto de construir, abençoar prédios e aumentar o uso de correntes e de cadeados como parte da segurança dessas edificações: “tá vendo aquele edifício, moço?...”
Aos 72 anos, a serem completados em outubro, a Conferência Nacional dos Bispos parecia ter assumido casaldáligacamente a coragem para enfrentar a própria história e inaugurar a reparação diante de condutas do passado. O corpo diretivo da instituição fez travessias da igreja em paz com o silêncio, o silenciamento, a tortura, a benção à elite econômica-política e a distância dos pobres para a Igreja inquietada, acolhedora, entranhada das dores dos oprimidos e dos sujeitos da natureza, enfrentou a fúria dos poderosos. A postura gerou credibilidade à instituição, fazendo-a uma das mais procuradas pela imprensa quando dos momentos mais cruciais vividos pelo país. A CNBB era buscada, a mídia queria saber da posição dos bispos. A credibilidade e a audiência da representação do bispado nacional apresentavam índices elevados no meio católico, não católicos, dos intelectuais e dos coletivos sociais.
Campanhas marcantes foram realizadas sob o guarda-chuva da CNBB. Documentos demarcadores na defesa dos direitos humanos, da Amazônia, dos povos indígenas, dos sem-terra e dos sem-teto, de análise de conjuntura sócio-político-econômica e de denúncia ganharam o mundo, assinados pela instituição. Assinatura que nos honrou e nos socorreu em enfrentamento cruciais. Os textos se tornaram subsídios nas escolas, nas universidades, nas pastorais sociais e em outras instâncias para a reflexão crítica, o perceber-se como sujeito assujeitado, aprender sobre autonomia, liberdade, fraternidade, justiça, amor ao próximo, esperançar.
Espalhados nas cidades, vilarejos, sindicatos e outros ambientes coletivos, por meio da imensa rede ativa, criativa e solidária tecida pela Igreja Católica, os documentos e a atuação sacerdotal de alguns eram como a escola freireana ou olhando um pouco mais para outro tempo da história, a escola de rua de Jesus Cristo.
A CNBB de hoje, ao manifestar-se em apoio ao “PL do Estuprador”, ajuda a fincar uma estaca no coração das mulheres brasileiras. A postura da instituição dói mais em nós, mulheres, que o PL em si, pois, veio de um lugar cujo resultado seria a excrecência que é. Feminicidio, estupro e outras violências domésticas e estruturais marcam a vida da mulher no Brasil. São 822 mil estupros por ano ou um estupro a cada dois minutos (IPEA/junho de 2024). Ao se colocar favorável ao conteúdo do PL, a Conferência dos Bispos endossa as negociatas político-ideológica feitas por parlamentares usando os corpos das mulheres, punindo-as à moda da inquisição. Talvez, pior que à caça às bruxas porque hoje a ciência apresenta o alcance da violência contra as mulheres no Brasil e a define como “epidemia”.
Há muito tempo, as mulheres, pesquisadoras/es e juristas responsáveis lutam para que o aborto seja percebido e compreendido como questão de saúde pública e não criminal ou religiosa. Teria sido importante ver a CNBB mobilizada nessa direção da escuta da dor das mulheres e no compromisso de ampliar o escutar e o agir pela garantia dos humanos da mulher no Brasil que está submetida a uma das longas e perversas cultura de violência. Nesse momento, centenas de mulheres, meninas, estão sendo estupradas por aqueles que deveriam protege-las, e, grávidas, devem fazer o que com esse ato de violação, de crueldade praticada contra seus corpos?
Como uma oração, sigo com o Jesus das ruas, como aqueles sacerdotes e aquelas missionárias feitas Maria Madalena que ousam enfrentar o mal, os violentos, os senhorios, os que utilizam a fé para negociar poder e manutenção de determinados dogmas. Sigo com aqueles e aquelas que conjugam o verbo amar as mulheres diante das instâncias patriarcais que impõem condenações a exemplo do ‘PL do Estuprador’ que serve somente à vontade dos machos.
Mônica Bergamo: Bispo católico critica PL antiaborto e diz que é preciso dar educação sexual em vez de prender mulheres https://t.co/F1lksKQVJn
— IHU (@_ihu) June 19, 2024
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A CNBB e o apoio ao ‘PL do Estuprador”. Artigo de Ivânia Vieira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU