23 Mai 2024
"Após o pedido do mandado de prisão, torna-se cada vez mais difícil para os governos ocidentais desviar o olhar, refugiar-se em fórmulas vazias e contornar com táticas protelatórias as reservas cada vez mais fortes das suas equipes jurídicas", escreve o cientista político italiano Francesco Strazzari, professor de Relações Internacionais na Scuola Universitaria Superiore Sant’Anna, em Pisa, na Itália. O artigo foi publicado por Il Manifesto, 21-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Estava no ar, mas quando chegou foi como uma bomba. O Procurador da Corte Penal Internacional, Karim Khan, a antecipou à CNN: ouvimos da sua própria voz, depois das pesadas acusações dirigidas à liderança do Hamas, as palavras starvation, civilian targeting, extermination, associadas ao pedido de prisão para Benjamin Netanyahu e seu ministro da Defesa, Yoav Gallant.
Não existem precedentes para chefes de governo de países que se definem como democráticos de quem a justiça internacional tenha pedido a prisão por crimes de tal gravidade elevados a método de guerra.
O procedimento se soma àquele em que Israel se defende perante o Tribunal Internacional de Justiça, também sediado em Haia, da acusação - apresentada pela África do Sul e já considerada plausível – que diz respeito à violação da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. Israel é signatário dessa convenção, embora notoriamente - tal como os EUA, a China e Rússia – não tenha assinado o Tratado de Roma que institui a Corte Penal Internacional.
É claro que o pedido do procurador vai agora para a análise do juiz. Mas do ponto de vista da importância política, o fato é significativo. Para mostrar que para o governo de Israel o dano foi feito, há as reações raivosas que chegam de TelAviv: não só pela extensão das acusações, destinadas a atingir os responsáveis pelas decisões, mas também pelo fato de serem citados na companhia dos líderes terroristas do Hamas, que igualmente se jogam contra a suposta equiparação entre agressor e vítima.
No entanto, sejam quais forem as opiniões sobre a “palavra com G” (genocídio), o fato que em Gaza e nos territórios ocupados tenham sido cometidos e continuem a ser cometidos crimes de guerra, é evidente a qualquer pessoa que tenha acompanhado os eventos que se seguiram a 7 de outubro. O procurador Khan apenas defende a existência da pedra angular do direito internacional como instrumento que intervém em dinâmicas de guerra cada vez mais desumanas. Esse passo é indispensável para evitar a morte do direito internacional diante do 'resto do mundo'.
Recordamos, há alguns anos, os protestos dos chefes de Estado africanos, cansados de serem os únicos alvos da justiça penal internacional: com a África do Sul abandonando a CPI, permitindo que o jato de al-Bashir levantasse voo e deixasse Pretória.
Na semana passada, numa passagem dramática, o próprio Procurador Khan respondeu ao representante russo sobre o perigo de ser ameaçado: ele disse estar bem ciente das constelações de poder que condicionam as organizações internacionais, mas garantiu o fato que, se pressionado, não desistiria, aceitando sobre suas ações apenas o julgamento do juiz, de Deus e da história.
Olhando atentamente para a providência, não há qualquer menção à tortura de prisioneiros palestinos, nem de ocupação. Contudo, quando, informado de fatos tão trágicos e marcantes, o mesmo tribunal que emitiu mandatos contra Assad e Putin inclui hoje um líder ocidental, e os mesmos que ontem elogiavam a “justiça” começam a falar de “motivações políticas”. Agora vão dizer que tudo continuará da mesma maneira, que Putin, destinatário de um mandado de prisão, viaja pelo mundo com relativa facilidade e um número crescente de admiradores. Que Israel, habituado a absolver-se perante as Nações Unidas, continuará como sempre e que ainda veremos as ajudas humanitárias de que Gaza necessita desesperadamente bloqueadas e saqueadas sob o olhar dos militares.
Aqui, porém, estamos fora das Nações Unidas no sentido estrito e diante da magnitude dos sofrimentos das populações, as táticas usadas até hoje para influenciar o debate diplomático e midiático parecem desgastadas. O Israel de Netanyahu em Washington é cada vez mais visto como um aliado que cria problemas, cada vez menos como aliado que oferece vantagens. Muitas coisas se movem de forma incerta, a começar pelo Irã, que enfrenta uma sucessão complexa. Em 7 de outubro, quando 14 anos de “doutrina Netanyahu” desmoronaram diante dos hediondos crimes dos milicianos do Hamas, a resposta foi encontrada por Netanyahu no repertório bíblico: 'o extermínio dos amalequitas', evocado ao anunciar a guerra contra Gaza e os seus habitantes. Muitas pessoas diante desse desenvolvimento no Ocidente, assumiram uma atitude compreensiva, deixando-se conduzir por uma liderança cega numa crista cada vez mais estreita. Cada dia fica mais claro que o extermínio de que fala hoje o procurador é uma realidade, e que o enorme sofrimento que foi adicionado não leva a lugar nenhum nem mesmo Israel.
Após o pedido do mandado de prisão, torna-se cada vez mais difícil para os governos ocidentais desviar o olhar, refugiar-se em fórmulas vazias e contornar com táticas protelatórias as reservas cada vez mais fortes das suas equipes jurídicas. Se tornará cada vez mais difícil defender toda concordância à exportação de armas ou silenciar os pedidos de revisão de pacotes de colaboração científica com implicações de dupla utilização. Será cada vez mais árduo fingir unanimidade pelo executivo de guerra israelense, com Netanyahu e seus aliados de extrema direita pressionados pelo ultimato de Benny Gantz. Talvez venha um sinal da CPI sobre o limite da possibilidade de continuar a inverter toda noção publicamente defensável de ordem internacional “baseada nas regras”. A menos de distorcer também toda aparência de mínima coerência do sistema, até perder toda identificação, sucumbindo aos padrões duplos, triplos, aos quais toda visão despótica da política desde sempre se segura desesperadamente.
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Fim do duplo padrão, justiça sem exceção. Artigo de Francesco Strazzari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU