23 Mai 2024
"A reconstrução do estado não pode se resumir a grandes obras: é chance de desafiar o desenvolvimento extrativista, que levou a esta e outras tragédias ecossociais. E de outro paradigma: um novo global, a partir do bem-viver e da integração dos múltiplos locais do país", escreve Cândido Grzybowski, doutor em Sociologia pela Sorbonne, e ex-diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase, em artigo publicado por Outras Palavras, 20-05-2024.
O também meu Rio Grande do Sul – o afirmo com profundo sentimento de uma espécie de migrante em relação à sua origem – onde famílias choram a morte de entes queridos e milhares sofrem a destruição de suas condições de vida, por um “dilúvio” devastador, está diante do desafio de se refazer e seguir a vida. Energia e determinação do povo sei que é algo intrínseco da “cultura gaúcha” e me sinto parte dela. Mas por mais importante que seja esta força cultural, será que ela poderá barrar os “donos do poder”, sempre atentos a possibilidades de negócios? Para eles, nada como uma calamidade para novas frentes de acumulação fácil, mirando os enormes recursos públicos que o governo federal terá que destinar para a reconstrução. As grandes empresas “abutres” – empreiteiras de obras públicas, construtoras, seguradoras, o trator de arrasto do agronegócio, entre tantos outros – ficam de prontidão em tais ocasiões e nunca irão se engajar numa reconstrução virtuosa do que são os territórios de vida e identidades das comunidades atingidas: seu lugar e endereço, seu lar, local de convivência com seus familiares, amigos e antepassados, de celebrações religiosas e festas?
Como milhões de brasileiras e brasileiros, passei dias sofrendo com a catástrofe e pensando em como contribuir, além da solidariedade na emergência, com ideias, reflexões e propostas sobre o que e como reconstruir as bases da vida quando tudo ou quase foi perdido. Não duvido da força das comunidades locais e de sua determinação em dar a volta por cima. Duvido muito de governantes e empresas, com seu “mantra do desenvolvimento”, que daí possa sair algo de novo, que fortaleça a resiliência de comunidades gaúchas, sua vibrante cultura e seus territórios de vida, diante da mudança climática em curso.
Antes de tudo, penso que precisamos valorizar e celebrar a solidariedade que brotou com força do seio da sociedade civil gaúcha e brasileira em relação às vítimas, prestando ajuda de emergência às milhares de famílias atingidas pelo dilúvio. Este é um gesto claro de se sentir parte e compartilhar diante de ameaças, o que dá esperanças renovadas no caminho de transformações que precisamos no modo de viver, no grande território do Brasil que nos cabe cuidar, enquanto um coletivo nacional de mais de 2012 milhões. Também saúdo a presteza e eficiência de setores governamentais para ações de emergência, do RS, de muitos estados brasileiros e do governo federal. A solidariedade e o acolhimento nestas ocasiões, com profundo sentido ético, indispensáveis ao viver, apontam o cuidado, a convivência e o compartilhamento entre todas e todos. Está é uma potência que surge do seio da sociedade civil brasileira, uma base política indispensável, já existente, que pode ser mobilizada para a democracia ecossocial transformadora que precisamos. Ou seja, de algum modo, estão no nosso seio potentes atitudes e gestos de construção e de reconstrução de uma sociedade que tenha lugar para todas e todos, de direitos iguais, respeitadas as muitas diversidades.
Mas como isto pode inspirar as cidadanias locais, estaduais e brasileiras para pressionar politicamente o governo federal e o Congresso, o governo estadual e a Assembleia Legislativa na busca de soluções que sejam baseadas em direitos ecossociais? Não podemos aceitar que a reconstrução se resuma a uma política de financiamento público para grandes obras, reconstruindo mais ou menos o mesmo, sem realmente mudar. Pior ainda, ser apenas um grande aporte de recursos extraordinários que acabam se resumindo a uma oportunidade e frente de expansão de grandes negócios, com corrupção, como tem sido uma regra dominante. A reconstrução necessária é a que busca valorizar as potências e condições de vida locais, com perspectiva de direitos ecossociais, empoderando as comunidades em convivência com a dinâmica ecológica de seus territórios diversos.
A hora é de reconhecer e valorizar a especificidade local. Não há um modelo único, por mais que o projeto seja tecnicamente bem feito, não será virtuoso sem considerar as especificidades ecológicas, vivências, aspirações e culturas locais. Afinal, as cidades e as comunidades, assim como seus próprios territórios, são diversos e vibrantes por isto mesmo. Trata-se de uma grande oportunidade de olhar, descobrir e praticar a mais radical participação local, num esforço de busca coletiva de soluções entre sociedade civil e os setores do poder governamental, depois que venham as empreiteiras fazer o que sabem e podem. Neste momento, a primeira e fundamental reconstrução é da esperança no interior das comunidades atingidas, como base não só para uma superação possível, mas como um recomeço de um amanhã que pode ser melhor.
Para a reconstrução ser virtuosa e de enfrentamento das ameaças, os atores mais fundamentais são exatamente os atingidos, suas comunidades locais, com a colaboração de ativistas, educadores, especialistas em questões ecológicas, agrícolas, de arquitetura e engenharia, identificados com as demandas da população local e que sabem ouvir e valorizar as demandas de gente que faz sua vida aí. Neste esforço coletivo amplo, com determinação de buscar as potencialidades de cada território e de sua comunidade, poderá ser recriado um novo mais resiliente e, ao mesmo tempo, mais com a cara da gente local e seu território.
As comunidades territoriais atingidas precisam, sem dúvida, de infraestrutura, mas com nova inspiração diante da necessidade de adaptação às dinâmicas de territórios submetidos à força das mudanças climáticas, que já estão acontecendo. Trata-se de refazer bases resilientes no modo de viver, especialmente produção e modos de organização da ocupação humana. Trata-se de lançar as bases ecossociais de organização de comunidades assentadas no cuidado e convivência, na relação e respeito ao território, no seu uso e preservação, nas regras de regulação ambiental e seus órgãos, na economia e, por fim, até no modo de conceber, implementar, avaliar e aperfeiçoar as políticas públicas.
O desafio é enquadrar os que devastam a vegetação nativa e as florestas, secam os banhados e alagadiços (esponjas naturais de armazenamento de águas), desmatam as encostas e, especialmente, acabam com as matas ciliares nas margens dos rios. Afinal, dada a monstruosidade da tragédia, é fundamental trazer a vida, todas as vidas, humanas e não humanas, ao centro de uma reconstrução para um viver saboroso, sem ameaças. A natureza em si não é uma ameaça, é um dom e um bem essencial para viver. Está em questão o modo como a habitamos e a gerimos.
O maior causador da tragédia ecossocial ocorrida no RS é o desenvolvimento econômico movido em busca do lucro, destruidor e extrativista. Nunca é demais lembrar que o Rio Grande do Sul foi o pioneiro no estabelecer as bases do agronegócio e sua monocultura baseada em adubos químicos, agrotóxicos, sementes transgênicas. Daí, foi em direção ao Oeste e Centro, conquistando, desmatando, colonizando. Mas também o RS nos deu um dos primeiros grandes pensadores e ativistas por mudanças na nossa forma de se relacionar com a generosa base natural que temos, o José Antonio Lutzenberger (17/12/1926 – 14/05/2002). Ele já havia, no então, alertado para o que poderia ocorrer no RS com o tipo de economia e o modo extrativista dominante. Foi também o inspirador e liderou o grupo que formulou um virtuoso Código Ambiental para o RS, desfigurado completamente por governos do período mais recente, especialmente o atual governador (já no primeiro mandato) e a sua maioria na Assembleia Legislativa.
Na verdade, precisamos nos convencer que não há uma solução ou resposta única para a grande área do estado do RS, o número assustador municípios atingidos de algum modo e a enorme população diretamente afetada em suas condições de vida. De algum modo, há um problema no todo, dado que a mudança climática está longe de ser um fenômeno local. Mas as soluções tem que ter raízes locais com um enfoque de “territórios de vida”, para quem vive nele e dele depende, como um bem comum a ser cuidado e não exaurido, com sua potencialidades e limites, como nos ensinam povos indígenas e tradicionais, assim como as muitas redes de agroecologia que se expandem pelo país. Enquanto prevalecer um enfoque de ocupação de áreas como “território de negócio”, de extrativismo e exploração, voltada para fora dos territórios, em vista de lucros o mais rápido e maior possível, as ameaças só serão intensificadas e cada vez mais destrutivas. [1] Estamos diante da oportunidade no Rio Grande do Sul – onde surgiu o Fórum Social Mundial por Outro Mundo Possível – de “recomeçar” buscando inspiração em novos paradigmas de viver, do local ao mundial, onde “muitos mundos cabem no mesmo mundo”, na genial síntese dos zapatistas.
Que fique bem claro: emergências, quando muitas vidas humanas, inclusive não humanas, estão em questão, devem ser tratadas por ações de emergência como um direito fundamental, salvando vidas. Reconheço que isto está merecendo a devida atenção governamental e despertou ampla solidariedade local e no Brasil inteiro. Mas e depois? Se surgiu a emergência é por ações humanas que as produziram, com responsabilidades diferenciadas, entre governos e atores empresarias, nas várias áreas. Há também responsabilidades no nível das comunidades locais, no modo como vivem e convivem com as condições locais. O grande desafio de enfoque e de prática social na reconstrução de vidas e meios de vida é a convivência com as potencialidades do local em que se vive. Algumas grandes obras acabam sendo necessárias porque nos ligam ao todo e porque precisamos todas e todos de bens e serviços para viver que só podem ser produzidos de forma mais complexa e concentrada em outros territórios e cidades. Esta visão de um paradigma de convivência com as potencialidades dos territórios se alarga em círculos, onde os locais formam conjuntos territoriais maiores integrados. A solução local é uma forma de reconstrução do global, onde não é o global que determina, mas o “global” (estadual, regional, nacional, internacional e mundial ) é a virtuosa integração dos “locais”. O princípio fundamental da convivência dos povos também deve reger o mundial como condição de preservação da integridade natural do próprio planeta, como bem comum da humanidade inteira e com a responsabilidade de conservá-lo para futuras gerações.
Sei que muita gente vai reagir desprezando o fundamental que é o “fazer de outro jeito” aquilo que estamos fazendo, seja lá no Rio Grande do Sul, mergulhado numa catástrofe por intensas chuvas, ou em qualquer outra parte do Brasil e do mundo, como mostram as informações que circulam diariamente, nos meios de comunicação e nas redes digitais. Mas nossa parte, como brasileiras e brasileiros, é aqui, neste território grande e complexo de muita diversidade territorial e modos de viver, em que se forjou o Brasil com um trágico começo de conquista e desmatadores, dominado por colonizadores e extrativistas, contra os povos indígenas originários e com trabalho escravo, chagas dolorosas, nunca verdadeiramente extirpadas de nosso seio. Hoje fazemos o mesmo contra as maiorias que vivem em periferias urbanas e rurais, em biomas diversos, de Norte a Sul, de Leste a Oeste. As emergências se tornaram uma espécie de “normalidade” entre nós, só variando onde acontecem e quando, em termos de territórios e comunidades atingidas.
A natureza não é a culpada pelas catástrofes. Pelo contrário, é o nosso modo de viver que as gera. Não há modo de viver sem se relacionar com a natureza, nossa grande Mãe Terra, tão bem definida pelos povos originários e tradicionais. Este grande bem comum fundamental, com todos os complexos sistemas ecológicos que o movem, está sendo sistematicamente agredido pelo tipo de civilização e seu desenvolvimento movido pela busca de acumulação. A tarefa de mudança é hercúlea, mas inadiável. O desafio é começar por onde é mais urgente, no momento, e ir aprendendo o que e como fazer.
Companheiras e companheiros do Rio Grande do Sul, estamos juntos na empreitada cidadã de reconstrução democrática ecossocial virtuosa dos territórios de vida de vocês, que também é parte de nós todas e todos. A hora é arregaçarmos as mangas, desde o lugar de cada uma e um, neste imenso Brasil, e fazer a parte fundamental – participar com determinação e força – que cabe a nós e não podemos renunciar. Afinal, em democracia, como cidadanias diversas, somos as únicas forças instituintes e constituintes, não o Estado ou o mercado. Mas como estamos longe disto!
[1] A contraposição entre “territórios de vida” em relação a “territórios de negócio” foi brilhantemente desenvolvida pelo grande geógrafo brasileiro Milton Santos.
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RS: A força para dar a volta por cima. Artigo de Cândido Grzybowski - Instituto Humanitas Unisinos - IHU