09 Mai 2024
Em seu último livro, El imperio zombi (Galaxia Gutenberg, 2024), Mira Milosevich, pesquisadora do Real Instituto Elcano e professora de Relações Internacionais na IE, mergulha nas causas que levaram a Rússia a fazer da agressão a seus vizinhos e do confronto com o Ocidente os eixos de sua política externa. Conversamos com ela sobre esta e outras tensões, aspirações e alianças que, neste momento, agitam o tabuleiro geopolítico mundial.
A entrevista é de Ignácio Santa María, publicada por Ethic, 07-05-2024. A tradução é do Cepat.
Dois conflitos armados muito inflamados coincidem no tempo: a guerra na Ucrânia e o conflito entre Israel e a Palestina, que se complicou com o ataque do Irã a Israel. Existe alguma interconexão entre os dois?
São duas guerras muito diferentes por razões distintas, mas têm três pontos em comum. O primeiro é que os Estados Unidos estão compartilhando armas e informações de inteligência, tanto com Israel como com a Ucrânia. O segundo é que o Irã está armando o Hamas, o Hezbollah, os houthis e diferentes grupos na Síria, no Iraque e no Paquistão que atacam Israel.
E o terceiro ponto comum, e talvez o mais importante do ponto de vista geopolítico, é que tanto o Irã como a Rússia são duas potências revisionistas, que buscam minar o poder dos Estados Unidos como líder de um bloco de democracias liberais. Percebem que Washington os impede de se tornarem potências hegemônicas em sua própria região.
A Rússia continua uma corrida para recuperar territórios que pertenceram à antiga União Soviética e, por outro lado, a OTAN está incorporando novos membros: a Suécia, a Finlândia e, possivelmente, a Ucrânia. Enquanto isso, a Polônia se oferece para receber armas nucleares. Caminhamos para uma nova guerra fria?
A guerra fria, propriamente dita, é de contenção, de dissuasão, e hoje poderia ser aplicada à relação entre os Estados Unidos e a China, que são as duas grandes superpotências. A Rússia não é mais uma grande potência, mas, sim, um ator revisionista. Na minha opinião, uma expressão mais precisa seria Grande Jogo 2.0.
O grande jogo é a expressão com a qual Kipling se referia à rivalidade entre o Império Britânico e o Império Russo Czarista, no século XIX, pela influência na Ásia Central, no Afeganistão, na Índia e em todo o Oriente Médio. Para ter esta visão global, utilizo a expressão Grande Jogo 2.0, que é uma partida na qual participam muito mais territórios, muito mais atores e, claro, nela entra tudo o que você mencionou.
Em ‘El imperio zombi’, você define as potências revisionistas como aquelas que não estão satisfeitas com o lugar que lhes foi atribuído na atual ordem internacional. Neste momento, quais são os países que se enquadram nessa definição? Todos são uma ameaça para outros países?
Por um lado, temos a Rússia, a China e o Irã, que defino como pós-impérios eurasiáticos, que justificam as suas ambições atuais com o seu legado imperial, porque querem se tornar atores hegemônicos em suas regiões e dominar os seus vizinhos. No entanto, também temos países como a Índia e a Turquia, para citar dois, que realmente acreditam que não têm o papel que merecem na ordem liberal internacional, mas não pretendem dominar os seus vizinhos.
A Índia prefere mais conter a China. E a Turquia (pensemos que o Império Otomano se estendia por todo o Mediterrâneo) não tem uma intenção clara de ser um ator hegemônico na região. Quanto à Rússia, há que pontuar: não possui recursos econômicos para manter o que foi. Não quer repetir a União Soviética porque não pode, mas deseja manter a sua influência. Quer decidir a política externa e de segurança das ex-repúblicas soviéticas, e isso supõe buscar impedir que entrem na OTAN e na União Europeia.
Uma das teses de seu livro é que, com ou sem Putin, a Rússia almejaria reeditar esse passado influente e que este desejo nacionalista imperialista é mais forte e profundo do que os sistemas ideológicos, como o comunismo e autocracias como a de Putin.
No século XIX, quando os Estados-nação começaram a ser criados na Europa, a Rússia fracassou nas tentativas de criar o seu. A última oportunidade foi durante os anos 1990, quando Yeltsin tentou transformar um império em um Estado-nação. Isto significava passar de um sistema político de partido único para um sistema multipartidário, de uma economia estatal para um modelo capitalista e de uma identidade imperialista para uma identidade nacional normalizada. Esta era uma tarefa titânica e não surpreende que Yeltsin tenha fracassado.
Não é possível mudar rapidamente o que durou quatro séculos. A Rússia construiu um império se expandindo e agora mantém com as ex-repúblicas soviéticas – que também faziam parte do império czarista – um vínculo histórico, linguístico, religioso, tradicional… Por exemplo, o russo ainda é o idioma oficial para fazer negócios. Mesmo nos países bálticos, que odeiam a Rússia, todo mundo fala russo. É mais fácil tentar exercer a influência pós-imperial, pois existem vínculos muito sólidos que permanecem.
Se entendermos por Putinismo essa espécie de nacionalismo revisionista com afã imperialista, continuará existindo quando Putin desaparecer biológica ou politicamente de cena?
A tese principal do meu livro é que tentar explicar com a figura de Putin tudo o que acontece na Rússia é um simplismo que não funciona. Por exemplo, Lukashenko é um ditador ao estilo de Putin, mas não tenta conquistar ex-repúblicas soviéticas. Lá existe um legado imperial que não pode ser explicado só porque existe uma pessoa como Putin. Portanto, penso que existirá putinismo depois de Putin, e pode ser inclusive mais nacionalista e mais radical, como vimos em figuras como a de Yevgeny Prigozhin.
Então, a democracia tem alguma chance na Rússia?
As democracias têm mecanismos para mudar governos, os regimes não. Uma mudança de regime só ocorre através de um golpe de Estado militar ou de uma revolução. Uma revolução é possível, mas não a vejo tão provável agora, pois os russos tiveram duas durante o século passado e estão muito cansados de mudanças tão radicais. Além disso, Putin tem um grande apoio.
Sendo assim, no futuro, vejo na Rússia mais putinismo, mais radical ou mais suave. Mais suave no sentido de que um tecnocrata como [Mikhail] Mishustin, que é o primeiro-ministro, possa sucedê-lo. Mas, não se sabe. Até agora, Putin não deu nenhuma pista sobre o que pode acontecer, nem nomeou um sucessor. Tem boa saúde, apesar de muito se falar o contrário. Portanto, não acredito que possa ocorrer uma mudança rápida.
A China é um ator que, por um lado, apoia a Rússia nas votações na ONU e ajuda a difundir o discurso de Putin, mas, por outro, tem um plano muito diferente que consiste em se tornar a principal potência mundial pela via comercial, em torno de 2050. É outro estilo de expansionismo.
Sim, é um estilo completamente diferente. E a nova guerra fria entre os Estados Unidos e a China será bastante diferente daquela do século passado. A China não usa a força militar convencional, ao contrário, a evita. Seu melhor trunfo é a paciência estratégica, mas tem objetivos muito claros a longo prazo. A nova guerra fria é travada no campo da tecnologia porque este é o fator mais importante da economia contemporânea.
Vejam como Washington proibiu as empresas estadunidenses de colaborar com as chinesas: realmente, delimitou o território desta batalha da nova guerra fria. Os Estados Unidos, em termos de poder, continuam sendo a potência que mais investe dinheiro na indústria militar e que mais contribui para o PIB mundial... No entanto, está perdendo influência. É que o poder e a influência nem sempre são a mesma coisa. China, Rússia, Irã e Índia coincidem na aposta em uma ordem mundial multipolar.
E nesta nova ordem mundial para a qual caminhamos, a Europa tem clareza sobre o seu papel e para onde almeja ir?
Em Pesquisa e Desenvolvimento, a Europa não tem capacidade para competir com as empresas estadunidenses e chinesas. Diminuiu a sua dependência da energia russa, mas aumentou a sua dependência tecnológica da China e do gás liquefeito dos Estados Unidos. Muito se tem dito que a Europa recebeu dois sinais para despertar: um foi a pandemia e o outro foi a guerra na Ucrânia. No entanto, uma coisa é despertar e outra é ter forças para se levantar.
A Europa está consciente de que, neste momento, não cumpre nenhum dos critérios de estabilidade de um Estado-império, que são: demografia, energia, gasto militar e uma economia competitiva. E a culpa não é apenas da Europa. Os Estados Unidos aprovaram leis que subsidiam a indústria nacional, medidas protecionistas. A aliança transatlântica permanece no político e no militar, mas no econômico os Estados Unidos se tornaram um concorrente.
É necessário trabalhar muito na conscientização de que a aliança transatlântica é muito benéfica para a Europa, por diversas razões, mas também é importante para os Estados Unidos. Os aliados importam. Os Estados Unidos se equivocam, se realmente desejam tomar o caminho de se tornar um rival da Europa, mesmo que seja só no econômico.
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“No futuro, vejo na Rússia mais putinismo, mais radical ou mais suave”. Entrevista com Mira Milosevich - Instituto Humanitas Unisinos - IHU