16 Mai 2024
"Depois de muitos anos de vazia retórica extremista, sobretudo derramada na ideologia, perdemos a gosto pelo extremismo autêntico, como se revelou em algumas das grandes figuras do nosso passado recente, começando pelo intratável Dom Milani. Turoldo e Pasolini foram dois 'perturbadores de consciências' (assim falou o Cardeal Martini em relação ao primeiro), sem pertença e heréticos, fiéis a um seu ideal primordial de verdade: constantemente desviaram de seus âmbitos doutrinários e disciplinarem, desmontaram clichês e preconceitos, afundaram nas trevas do nosso tempo procurando, porém, uma fresta, nunca renunciando à poesia e ao sentido do sagrado", escreve Filippo La Porta, ensaísta, jornalista e crítico literário italiano, em artigo publicado por l’Unità, 19-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
No viés religioso, Pier Paolo Pasolini tinha raiva por não poder ser cristão, por não poder ser católico, quase tinha uma espécie de revolta porque a igreja tinha decaído...”. Assim falou Padre David Maria Turoldo numa entrevista inédita de 1989. Poucos conhecem a amizade que ligou Turoldo e Pasolini – desde o seu primeiro encontro por ocasião do Evangelho segundo Mateus (1964): ambos da região do Friuli, inclinados a idealizá-la como um Éden perdido, imbuída de religiosidade popular ("a terra que o mundo com inveja amava"), capazes de transmitir em cada palavra que proferiram uma vertigem de autenticidade, críticos irredutíveis não da modernidade, mas dessa modernidade italiana, desfigurada e sempre incompleta.
Depois de muitos anos de vazia retórica extremista, sobretudo derramada na ideologia, perdemos a gosto pelo extremismo autêntico, como se revelou em algumas das grandes figuras do nosso passado recente, começando pelo intratável Dom Milani. Turoldo e Pasolini foram dois “perturbadores de consciências” (assim falou o Cardeal Martini em relação ao primeiro), sem pertença e heréticos, fiéis a um seu ideal primordial de verdade: constantemente desviaram de seus âmbitos doutrinários e disciplinarem, desmontaram clichês e preconceitos, afundaram nas trevas do nosso tempo procurando, porém, uma fresta, nunca renunciando à poesia e ao sentido do sagrado.
Onde a poesia não é tanto a atividade “técnica” de fazer versos (suas composições são desiguais, mas todas contêm pelo menos um verso memorável) quanto o exato oposto da lógica utilitarista que, mesmo para além do capitalismo, polui todas as nossas relações: o espaço maravilhoso do gratuito, do não funcional e do inútil. Enquanto o sagrado não diz respeito a algo espiritualista, mas coincide com a própria realidade. Ou melhor, é apenas o outro lado, um pouco na sombra, da realidade cotidiana, o alhures que também se esconde no gesto ou no objeto mais familiar: algo que podem ver não os sábios e os intelectuais, mas apenas os puros de coração. E é o elo de tudo com um tempo cíclico, eterno.
Vamos tentar aproximar a sua obra com um livro repleto de temas e rico de contribuições, agora lançado pelas edições Aldebaran, com escritos de Marco Roncalli, Ermes Ronchi, Elio Ciol, Domenico Clapasson, Liliana Cargnelutti, Raffella Beano, Elisa Roncalli, Due anime friulane [Duas almas friulianas] – que sexta-feira à tarde será apresentado no Município de Casarsa (organizado pelo Centro de Estudos Padre David Maria Turoldo de Coderno di Sedegliano e pelo Centro de Estudos Pier Paolo Pasolini de Casarsa della Delizie, bem como do Ente Regionale Teatrale).
Nas palavras do Pe. Turoldo, o genocídio cultural e a homologação de Pasolini tornam-se as aberrantes “monoculturas americanas” (ele se referia às séries de TV que circulavam na época, Dallas e Dinastia), “todo esse rio de tralhas, de entulho que nos chega do outro lado do Atlântico”.
A sua utopia é aquela de um Friuli um pouco real e um pouco imaginário. Friuli significa para ambos fidelidade a uma terra e aos seus habitantes, à cultura camponesa, às memórias da infância, às histórias dos emigrantes, e sobretudo às suas mães friulianas, que "recolheram a história da sua civilização nas profundezas da terra, no ar perto do Tagliamento, no vigor das pedras..." (Raffaela Beano). Apesar da diversidade de biografias e das origens sociais, pequeno-burguesas e abastadas para Pasolini, muito pobres e desoladas para Turoldo, que morava numa casa feita de pedras de rio.
Pasolini, um não crente encantado e aterrorizado pelo mistério do ser (acreditava que tudo o que existe é “antinatural”), e Pe. Turoldo, que encontrou Deus em sua ausência (Ungaretti fala por ele numa “ausência-presença do eterno") podem encontrar-se no terreno quebradiço do sagrado. Turoldo, hipnotizado pela figura veterotestamentária de Jó vê através dela a “única solução” da sua vida: “o direito ao desespero”. Para Pasolini, que intitulou um poema “Uma vitalidade desesperada”, as pessoas maduras são mais felizes que os jovens porque, finalmente, não são mais obrigadas a ter esperança, não esperam nada do futuro, que em si é irreal. No Evangelho segundo Marcos lemos que “o reino é uma realidade visível apenas em virtude de uma transformação interna”. Portanto o Reino já existe, mas oculto: para conseguir “vê-lo” basta apenas aquela transformação.
Num artigo sobre o filme Os Últimos, de Vito Pandolfi e do próprio Turoldo, de 1963, ambientado no mundo do campesinato do Friuli, Pasolini define o filme como “monótono e cinzento, mas cheio de uma exasperada coerência com sua realidade estilística e, portanto, profundamente poético" (nunca uma cena com o sol, sempre nuvens altas e compactas no inverno, a cidade imóvel em seu "puríssimo branco e preto”, os personagens cinzentos, anônimos, exaustos e doentes). E acrescenta que Pandolfi apresentou “com severidade absoluta” uma obrigação religiosa à renúncia, à pequenez, que se resume no sentimento religioso do Pe. Turoldo: “Se deve haver saudade da minha aldeia e da minha infância, não se deve embelezá-las: pelo contrário, se deve reduzi-las ao extremo."
Em outra ocasião designa Danilo Dolci e Davide Turoldo a uma seção especial, caracterizada por um “misticismo” que é “desespero, pobreza de forças racionais, neurose”.
Em que sentido “neurose”? Talvez no sentido de uma austeridade que se torna obsessão, de um cinzento quase autoimposto, de uma coerência obstinada que, no entanto, no final, se identifica com a poesia e que beira a dimensão do sagrado. Sempre me impressionou o catolicismo do Padre Turoldo: áspero, pouco consolador, macerado.
Tem uma radicalidade mais próxima de certos escritores católicos franceses, como Péguy e Bernanos, e semelhante àquela de Testori. Contudo, só atravessando destemidamente o inverno da esperança, a ausência de Deus, só sentindo que as nossas vidas não têm escapatória”, se pode alcançar uma fé autêntica, tão afiada e inquebrável como o diamante.
Uma fé que coincide não com uma doutrina, mas com uma experiência, mesmo que seja a experiência elementar do despertar diário de cada um de nós, pela manhã: “Mais um amanhecer no mundo / outra luz, um dia / nunca vivido por ninguém” (Turoldo).
No funeral de Pasolini no Friuli, o Padre Turoldo começou a amaldiçoar Roma, a "capital maldita" que para ele resumia a Itália daquele período, com sua gente "amontoada e turva, com a juventude que pensa em dilacerar e matar", onde "nós não somos mais capazes de um mínimo gesto de misericórdia" e onde se desconfia de um homem de religião que não seja "homem de Evangelho". A tudo isso contrapõe o antigo Friuli, onde o padecimento gera canto: “somos um povo que canta, mesmo quando deveria chorar”. Ele exagerava com suas invectivas e o tom profético? Provavelmente sim, mas todos nós precisamos desesperadamente desses exageros.
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Uma amizade corsária, Pasolini e padre Turoldo: história de um vínculo indissolúvel. Artigo de Filippo La Porta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU