24 Abril 2024
"Esses sentimentos nacionalistas não são necessariamente a herança tradicional da direita, mas pertencem aos caminhos ideológicos da esquerda latino-americana, na qual, queiramos ou não, o ingrediente nacionalista sempre esteve presente. Pense nos populismos antigos e germinais: a Argentina de Perón ou o Brasil de Vargas, e como o slogan 'o petróleo é nosso' retorna, junto com a reivindicação nacionalista de propriedade estatal da Companhia Vale do Rio Doce (hoje simplesmente Vale), nas propostas da esquerda brasileira. Em suma, tenho que me convencer de que, para os argentinos, as Malvinas são uma causa, e eu diria um trauma, quase bicentenária e um elemento fundamental na construção e afirmação da identidade nacional. E dom Jorge Garcías Cuerva é, sem dúvida, um argentino", escreve Flavio Lazzarin, padre Fidei Donum, italiano, atuando na diocese de Coroatá, MA, em artigo publicado por Settimanna News, 23-04-2024.
No dia 3 de abril, uma notícia ignorada pela mídia hegemônica e captada por acaso em um artigo do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, me deixou muito intrigado.
No dia 2 de abril, aniversário da derrota de 1982, dia dedicado à memória dos soldados caídos e dos veteranos da guerra das Malvinas, em uma missa celebrada na catedral de Buenos Aires, sede primacial da Argentina, dom Jorge Garcías Cuerva afirmou, em uma homilia comovente e patriótica, que a causa das Malvinas une profundamente todos os argentinos e que, apesar da vitória britânica, o arquipélago será e deverá ser para sempre argentino.
A missa contou com a presença de Diana Elena Mondino, ministra das Relações Exteriores e do Comércio Internacional do governo de Javier Milei, que, apesar de algumas declarações equivocadas durante a campanha eleitoral do ano passado, acabou se unindo ao coro nacionalista que reivindica a soberania argentina sobre as Malvinas.
O pai de Dom Jorge era um militar e primo em primeiro grau do piloto Gustavo García Cuerva, herói nacional que morreu na guerra das Malvinas. O prelado é considerado pelo Papa Francisco como "um pastor com cheiro de ovelha", um "padre de rua", um cura villero, um aliado solidário dos pobres das vilas, as periferias geográficas e existenciais das cidades argentinas.
A imprensa argentina também nos diz que o arcebispo tem boas relações com o ex-ministro da Economia, Sergio Massa, um peronista moderado, porque eles colaboraram, quando Massa era prefeito de Tigre, em projetos em favor dos pobres.
Esperei alguns dias, em vão, para ver se havia alguma reação crítica do meio pastoral e teológico da Argentina e da América Latina e, decepcionado com esse silêncio, estou começando a pensar que talvez seja apenas eu, um latino-americano por adoção, que não entende realmente como funciona a alma e o coração desses povos.
Pertenço à geração que aceitou a interpretação do conflito das Malvinas como um evento profundamente ligado à ditadura militar, a ponto de o fim do terror militar ter coincidido com essa derrota e que, portanto, falar positivamente sobre ele revelaria uma inaceitável cumplicidade e apoio à ditadura.
Parece, no entanto, que o apoio popular à guerra não coincidiu com a aprovação política e a absolvição da Junta Militar, mas foi – e parece que esse sentimento nacionalista também é muito forte nos dias atuais – aquele ressentimento antigo e justificado reservado às potências ocidentais e ao modelo colonialista de exploração e opressão.
Esses sentimentos nacionalistas não são necessariamente a herança tradicional da direita, mas pertencem aos caminhos ideológicos da esquerda latino-americana, na qual, queiramos ou não, o ingrediente nacionalista sempre esteve presente. Pense nos populismos antigos e germinais: a Argentina de Perón ou o Brasil de Vargas, e como o slogan "o petróleo é nosso" retorna, junto com a reivindicação nacionalista de propriedade estatal da Companhia Vale do Rio Doce (hoje simplesmente Vale), nas propostas da esquerda brasileira.
Em suma, tenho que me convencer de que, para os argentinos, as Malvinas são uma causa – e eu diria um trauma – quase bicentenária e um elemento fundamental na construção e afirmação da identidade nacional. E dom Jorge Garcías Cuerva é, sem dúvida, um argentino.
Em um trecho da homilia, ele afirmou que "devemos ter a coragem de chorar, porque Jesus também chorou... choramos porque 649 soldados mortos e mais de mil feridos são uma fonte de dor; choramos porque a guerra, o esquecimento e o uso ideológico da causa das Malvinas nos machucam... lamentamos derrotas e frustrações... e também choramos de raiva porque a dor da pátria nos entristece".
Continuando, o arcebispo lembrou que o papa, falando a um presidente europeu em 2020, disse que "é muito triste quando as ideologias se apropriam da interpretação de uma nação... e desfiguram a pátria".
Em outro momento da homilia, García Cuerva afirma que "voltar à memória das Malvinas é para nós uma fonte de esperança e alegria, de orgulho, heroísmo e soberania nacional... dizer Malvinas é dizer identidade nacional, é dizer pátria, é dizer história, presente e futuro, é dizer fraternidade, porque a causa das Malvinas nos une".
Vale a pena lembrar que, além do pungente simbolismo nacionalista, as Ma–lvinas continuam no centro do debate geopolítico devido à sua importância econômica nos últimos anos. Elas não são apenas estratégicas devido à sua proximidade com a Antártica e para a pesca, mas também são reservas preciosas de água doce e, especialmente, no Atlântico circundante, de petróleo.
Parece que eles são uma minoria quase insignificante que se opõe a esse nacionalismo intolerante, o que lhes rende uma grande inimizade na Argentina. Um nome significativo é o do historiador Luis Alberto Romero, que pertence a um grupo de intelectuais que contesta o patriotismo que se alimenta do trauma das Malvinas. Romero sustenta sua oposição com argumentos históricos, que devem ser valorizados em um debate político sério.
Mas o que finalmente me surpreende e realmente me preocupa é a decisão da Igreja Católica de se colocar ao lado dessa comunhão nacionalista. Por mais limitado que eu seja, não consigo conceber e aceitar a aliança pastoral e teológica entre o nacionalismo e o Evangelho de Jesus de Nazaré.
[1] O bispo não menciona os 255 soldados britânicos mortos.
[2] L'Osservatore Romano, edição diária, Ano CLX, nº 248, 27/10/2020. "Há dois anos, talvez a Senhora Embaixadora saiba, um livro de um intelectual italiano do Partido Comunista foi publicado aqui em Roma. Ele tem um título muito sugestivo: Síndrome de 1933. A senhora o conhece? Um livro com capa vermelha. Muito bonito. Vale a pena ler. Ele se refere à Alemanha, é claro. Após a queda da República de Weimar, uma miscelânea de possibilidades começou a emergir da crise. E aí começou uma ideologia que mostrou que o caminho era o nacional-socialismo, que continuou e continuou, e chegou ao que conhecemos: o drama que foi para a Europa aquela pátria inventada por uma ideologia. Porque as ideologias sectarizam, as ideologias desconstroem a pátria, elas não constroem. Aprendam isso com a história. E esse homem no livro faz uma comparação muito gentil com o que está acontecendo na Europa. Ele diz: cuidado, pois estamos indo por um caminho semelhante novamente. Vale a pena ler. Com essas palavras, quero simplesmente lembrar aos políticos que sua missão é uma forma muito elevada de caridade e amor. Não se trata de fazer manobras ou resolver os casos que chegam às suas mesas todos os dias, mas de servir em três frentes: fazer o país crescer, consolidar a nação e construir a pátria. E é muito triste quando as ideologias assumem o controle da interpretação de uma nação, de um país, e desfiguram a pátria. Neste momento, lembro-me do poema de Jorge Dragone: "Nossa pátria está morta". É o réquiem mais doloroso que já li e é extraordinariamente belo. Esperemos que isso nunca aconteça conosco."
[3] Discurso do Papa Francisco ao Presidente do Governo da Espanha.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Igreja argentina e memória nacional. Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU