18 Abril 2024
"Tão grave quanto a erosão do Ethos, do ethos e da ética em geral é a asfixia da espiritualidade humana. Deixemos claro: espiritualidade não é sinônimo de religiosidade, embora a religiosidade pode potenciar a espiritualidade", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor de, entre outros livros, O Tao da libertação: uma ecologia da transformação (Vozes, 2010), que mereceu a medalha de ouro nos EUA em Ciência e Nova Cosmologia.
Segundo ele, "atualmente a eclipse da ética e a negação da espiritualidade humana poderão levar-nos a situações dramáticas, não excluindo tragicamente a extinção da espécie homo depois de alguns milhões de anos, amados, nutridos pela Magna Mater que não soubemos retribuir-lhe cuidado, reverência e amor".
Seguramente vigora um complexo de causas que subjazem à atual crise sistêmica. Ela tomou todo o planeta e nos colocou numa encruzilhada: ou seguimos o caminho inaugurado pela modernidade a partir do século 17/18 com o advento do espírito científico que modificou a face da Terra e trouxe-nos incontáveis benefícios para a vida. Mas ao mesmo tempo deu-se a si mesma os meios de sua autodestruição. Vamos mais longe: a forma como decidimos habitar o planeta e organizar nossas sociedades com custos altíssimos para os ecossistemas e para as relações sociais, brutalmente desiguais, nos fizeram tocar nos limites da Terra. A seguir esse caminho, um abismo aterrador se apresenta à nossa frente. A Terra viva pode não nos querer mais sobre sua superfície por sermos demasiadamente violentos e destrutivos. Podemos sucumbir pelo antropoceno, pelo necroceno, pelo virusceno e, por fim, pelo piroceno, ocasionados por nós mesmos e também pela reação da própria Terra viva, ferida e vitalmente enfraquecida, que reage desta forma.
Ou então, num momento de aguda consciência face ao possível desaparecimento da espécie, o ser humano dê um salto quântico em seu nível de consciência, cai em si, dá-se conta de que pode realmente chegar ao fim de sua aventura planetária e mudar, forçosamente e definir um novo rumo.
Certamente não se fará sem uma fenomenal crise que pode levar porções significativas da humanidade, começando pelos mais vulneráveis mas não poupando nem os mais apetrechados. Assim ocorreu em tempos pré-históricos do planeta, nos quais até 70% da carga biótica desapareceu definitivamente.
Qual será o rumo? Estimo que nem sábios, nem cientistas nem mestres espirituais saibam apontar a direção. A humanidade, agora unida pelo medo e pelo pavor, mais do que pelo amor ao futuro, perceberá que poderá ter chegado ao fim do caminho andado. Olhará ao redor e descobrirá uma senda a ser percorrida e construída pelo andar de todos. “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar” nos ensinou um poeta desesperado espanhol, fugido da perseguição franquista. De dentro de nossa essência humana teremos que tirar as inspirações e os sonhos que nos consolidam o novo caminho. Vale a frase de Einstein: a ideia que criou a crise atual não pode ser a mesma que nos vai sair dela. Temos que sonhar, criar, projetar utopias viáveis e abrir caminhos novos. As ciências da vida nos confirmaram que somos seres de amor, de solidariedade, de cuidado, apesar de uma sombra sempre nos acompanhar e que devemos colocá-la sob vigilância.
Mas antes nos interroguemos: por que chegamos a este ponto crítico global? Aqui, mais que um saber científico, socorre-nos um pensamento filosofante.
Entre outras causas, considero duas fundamentais: a erosão da ética e a asfixia da espiritualidade.
Recuperemos o sentido clássico de Ethos dos gregos, pois nos iluminam ainda hoje. Ethos escrito em maiúsculo significa a casa humana. Vale dizer, separamos uma parte da natureza, a trabalhamos de forma a ser o espaço de viver bem. A outra forma é o ethos em minúsculo, que são as formas como organizamos a casa para que nos sintamos bem nela e possamos dar hospitalidade a quem nos visitar: enfeitar a sala, colocar corretamente as mesas, cuidar da cozinha, alimentar o fogo sempre aceso, manter a dispensa abastecida e os quartos decentemente arrumados. São as virtudes éticas que dão concreção ao Ethos. Mas não só, pertence ao Ethos zelar pelo entorno da casa, do jardim, de estátuas de divindades. Só assim o Ethos (viver bem) ganha forma concreta (ethos).
Hoje o Ethos é a Casa Comum, o planeta Terra. Por séculos alimentou a humanidade. Mas, com o advento da ciência e da técnica, temos explorado de forma ilimitada e irresponsável seus bens e serviços de forma que, hoje, ultrapassamos sua capacidade de suporte (The Earth Overshoot), a assim chamada Sobrecarga da Terra. Ela é finita e não suporta o projeto da modernidade de um crescimento infinito. O Ethos (viver bem na casa) e o ethos, as formas de organizá-la desestruturou tudo o que é importante para viver bem: poluímos as águas, sobrecarregamos os alimentos com agrotóxicos, envenenamos os solos, contaminamos dos ares a ponto de afetar o sistema da vida natural e da vida humana. Assistimos a erosão geral do Ethos, do ethos e da ética. A Casa Comum deixa de ser comum, e é apropriada por elites que detêm terras, poder, dinheiro e a condução da política do mundo. Elas se transformaram no Satã da Terra.
Tão grave quanto a erosão do Ethos, do ethos e da ética em geral é a asfixia da espiritualidade humana. Deixemos claro: espiritualidade não é sinônimo de religiosidade, embora a religiosidade possa potenciar a espiritualidade. A espiritualidade nasce de outra fonte: do profundo do ser humano. A espiritualidade é parte essencial do ser humano, como a corporalidade, a psiqué, a inteligência, a vontade e a afetividade.
Neurolinguistas, os novos biólogos e eminentes cosmólogos como Brian Swimme, Bohm e outros reconhecem que a espiritualidade é da essência humana. Somos naturalmente seres espirituais, mesmo não sendo explicitamente religiosos. Essa porção espiritual em nós se revela pela capacidade de solidariedade, de cooperação, de compaixão, de comunhão e de uma total abertura ao outro, à natureza, ao universo, numa palavra ao Infinito. A espiritualidade faz o ser humano intuir que, por detrás de todas as coisas, há uma Energia poderosa e amorosa que tudo sustenta e a mantém aberta a novas formas no processo da evolução.
Alguns neurólogos identificaram um fenômeno excepcional. Sempre que se aborda existencialmente o Sagrado, a experiência de pertença a um Todo maior, verifica-se numa parte do cérebro forte aceleração dos neurônios. Eles, não os teólogos, o chamaram de “ponto Deus no cérebro”. Como temos órgãos exteriores pelos quais captamos a realidade circundante, temos um órgão interior que é nossa vantagem evolutiva, de perceber Aquele Ser que faz ser todos os seres, aquela Energia misteriosa que penetra todos os seres e os vivifica.
Essa dimensão espiritual de nossa natureza foi sufocada por nossa cultura que venera mais o dinheiro que a natureza, o consumo individual que a repartição, que é mais competitiva que cooperativa, prefere o uso da violência do que o diálogo para resolver conflitos e criou a guerra nuclear e biológica como dissuasão, ameaça e eventual utilização, o que significaria o fim do sistema-vida e do sistema-humano. A violência e as guerras implicam a asfixia da espiritualidade, intrínseca à nossa essência.
Atualmente a eclipse da ética e a negação da espiritualidade humana poderão levar-nos a situações dramáticas, não excluindo tragicamente a extinção da espécie homo depois de alguns milhões de anos, amados, nutridos pela Magna Mater que não soubemos retribuir-lhe cuidado, reverência e amor.
Nem por isso nos desesperamos. O universo guarda surpresas e o ser humano é um projeto infinito, capaz de criar soluções para erros que ele mesmo cometeu.
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Causas da crise sistêmica: erosão da ética e asfixia da espiritualidade. Artigo de Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU