07 Março 2024
"É meio óbvio que Lula não disse que o Estado de Israel matou ou está matando tantos palestinos quanto Hitler; ou seja, não é sobre quantificação dos atos comparados, mas sobre suas intenções. A direita de Israel, suporte fundamental do governo Netanyahu, e o próprio Netanyahu, estão de acordo em que é preciso eliminar os palestinos das terras que Israel pretende anexar, e para isso vem atuando há décadas".
O artigo é de Wilmar R. D’Angelis, indigenista, doutor em Linguística, professor da área de Línguas Indígenas da UNICAMP.
Repercutiu bastante, na mídia brasileira, por conta da reação irada do governo de Israel, uma declaração do Presidente Lula a respeito do massacre da população palestina em Gaza pelo Exército de Israel (que alguns insistem em chamar de “guerra”). A declaração causou polêmica porque Lula comparou a ação israelense em Gaza com a política de extermínio de judeus por Hitler (significando: os nazistas).
Em um podcast chamado “Nós na história”, datado de 23/02 (#111 Lula, Netanyahu e Hitler na mesma frase), o assunto veio à baila, sob o enfoque de discutir-se os sentidos de “holocausto” e de “genocídio”, se sinônimos ou distintos, ou se “holocausto” estaria subsumido em “genocídio”. Participaram dessa discussão o escritor Eduardo Bueno (vulgo “Peninha”) e os comunicadores Luciano Potter e Arthur Gubert.
Abordar o tema do genocídio foi uma decisão oportuna, dada a polêmica criada na imprensa brasileira sobre a declaração de Lula, polêmica, por sua vez, deflagrada a reboque das reações do governo de Israel. E, de fato, o debate trouxe informações relevantes para o público em geral, basicamente pela exposição de Eduardo Bueno, e com contribuições de Luciano Potter.
Eduardo Bueno, o Peninha, escreve sobre história do Brasil, especialmente dos primeiros séculos, com base em vasta leitura de fontes bibliográficas. Isso não faz dele, propriamente, um historiador, mas é inegável que, num momento histórico em que as pessoas pensam que WhatsApp e Tik-Tok são fontes de informação, quem quer que leia e consulte livros tem uma vantagem incomensurável sobre os mortais comuns. Entretanto, como tudo que circula na internet, tudo o que circula em livros também exige uma atitude crítica e aprofundamento teórico para tornar um apanhado enorme de informação em uma interpretação adequada dos fatos históricos. E é aqui, vez ou outra, que Peninha escorrega, porque tem um gosto pela historiografia um tanto tradicional (embora, nela, conheça as obras de um Capistrano de Abreu) e uma bronca com os que ele entende serem – ou classifica como – “historiadores de esquerda”.
No podcast, aqui mencionado, destaca-se a seguinte afirmação do escritor:
A decisão deliberada de exterminar todo um povo e riscá-lo da face da terra, ou seja, uma decisão genocida, esteve longe de ser ‘exclusividade de judeus’. Muitas e muitas vezes ao longo da história, muitas mesmo, mais de 10, nações europeias tomaram a decisão de erradicar da face da terra determinados povos. (aprox. aos 8:00 min.).
E mais adiante, na sequência desse raciocínio, segue-se o trecho abaixo, que merece reparo:
É muito louco que os Tupi – que era o principal grupo indígena que ocupava toda a costa do Brasil – Tupi quer dizer “o povo”, eles se consideravam tão fodões que eles eram “o povo”; e os demais povos, eles denominaram de Tapuias – “Tapuia” é uma palavra tupi que quer dizer “bárbaro”, que quer dizer “os outros”, que quer dizer “aqueles que não são que nem nós”. E os Tupis trataram de dominar, conquistar, escravizar e matar os Tapuias. E com isso o que eu quero dizer? Que não é uma exclusividade do europeu querer matar os outros. Os outros povos também tentaram matar-se entre si próprios; os Tupis tentaram matar muitos tapuias. (aprox. 17:30 min.).
É verdade, diga-se em primeiro lugar, que os povos indígenas de fala Tupi (ou, mais especificamente, falantes de línguas da família Tupi-Guarani), habitantes de extensas faixas do atual litoral brasileiro (do Pará ao litoral paulista), eram dados à guerra. Quando aqui chegaram os primeiros portugueses e franceses para estabelecer ocupações permanentes, conheceram dessas guerras, e os cronistas mais qualificados de então registraram que não se tratava de guerras de conquista territorial (embora, antes da chegada dos europeus, povos Tupis também tenham feito guerras para ocupar a faixa litorânea, e dali expulsar outros povos), e muito menos, guerras de extermínio de outros povos. Eram guerras voltadas ao aprisionamento de inimigos, para uso em seus sacrifícios rituais antropofágicos, e guerras de vingança contra os inimigos que tivessem feito o mesmo contra eles.
O jesuíta Manoel da Nóbrega, em uma carta de 1549, assim escreveu:
Fazem guerra, uma tribu a outra, a 10, 15 e 20 léguas, de modo que estão todos entre si divididos. (...) Não se guerreiam por avareza, porque não possuem de seu mais do que lhes dão a pesca, a caça e o fructo que a terra dá a todos, mas somente por ódio e vingança (...)” (Cartas do Brasil – 1549-1560. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1931, p. 90).
É igualmente ilustrativo o depoimento – 60 anos depois – do capuchinho francês, Claude D’Abbeville, que integrou a experiência de ocupação francesa no Maranhão, no começo do século XVII:
É preciso primeiramente que se saiba que não fazem a guerra para conservar ou estender os limites do seu país, nem para enriquecer-se com os despojos dos seus inimigos, mas unicamente pela honra e pela vingança. (História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas, originalmente publicada em 1614. Cito a edição brasileira, na tradução de Sérgio Milliet, p. 229).
Vale indicar, a quem tenha interesse, a leitura do clássico de Florestan Fernandes: A função social da guerra na sociedade Tupinambá.
Eram, pois, sociedades guerreiras, e por isso mesmo, os inimigos preferenciais deles não eram os “tapuias” (embora também fizessem guerras a eles). Os inimigos preferenciais de um grupo Tupi (Tupinambá, Tupiniquim, Tupinaé e outros) eram outros grupos falantes da mesma língua e participantes da mesma cultura. Exterminá-los significaria perder aqueles com os quais compartilhavam valores e práticas guerreiras e rituais. Um inimigo “tapuia” aprisionado, poderia tentar a fuga, dado que não compartilhava, com os Tupis, seus ideais de honra e sua compreensão da guerra. Já um outro Tupi, aprisionado, via-se compelido a aceitar a mulher que lhe designavam, e a esperar o momento de seu sacrifício ritual, momento no qual teria a palavra para lançar, contra os que o matariam, a ameaça da vingança de sua morte, por seus parentes.
Por fim, uma última retificação à fala de Peninha: não há nenhum reconhecido estudioso de línguas Tupi que informe a tradução desse termo como sendo “o povo”.
Para concluir, resta comentar o que repercutiu a respeito da fala do presidente Lula. É meio óbvio que Lula não disse que o Estado de Israel matou ou está matando tantos palestinos quanto Hitler; ou seja, não é sobre quantificação dos atos comparados, mas sobre suas intenções. A direita de Israel, suporte fundamental do governo Netanyahu, e o próprio Netanyahu, estão de acordo em que é preciso eliminar os palestinos das terras que Israel pretende anexar, e para isso vem atuando há décadas. Pode ser que eles se contentem com a expulsão de todos os palestinos de Gaza e da Cisjordânia, mas colocar um exército fortemente armado e treinado para exterminar civis não pode receber outro qualificativo que não o de genocídio. É disso que o Presidente Lula falou. Tanto assim que, dias depois, retomou sua fala, sem mencionar Hitler, mas expressamente qualificando a ação de Israel em Gaza como “genocídio”. Para bom entendedor, o esclarecimento estava dado: quando falei de Hitler, quis dizer que a ação de Israel não difere da prática nazista genocida contra judeus (e contra minorias).
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Israel, Hitler e Tupis num mesmo podcast. Artigo de Wilmar R. D'Angelis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU