11 Janeiro 2024
"O veto dos EUA no Conselho de Segurança e os votos contra na Assembleia Geral são efetivamente votos a favor da Nakba Permanente do povo palestino, da Solução sem Estado. Pelo menos, é assim que serão interpretados em todo o mundo", escreve Vijay Prashad, em artigo publicado por Globetrotter, 13-12-2023.
Vijay Prashad é historiador, editor e jornalista indiano. É membro da redação e correspondente-chefe da Globetrotter. É editor-chefe da LeftWord Books e diretor do Instituto Tricontinental de Investigação Social. É autor de mais de 20 livros, entre eles: The Darker Nations e The Poorer Nations. Seus últimos livros são Struggle Makes Us Human: Learning from Movements for Socialism e The Withdrawal: Iraq, Libya, Afghanistan, and the Fragility of U.S. Power (com Noam Chomsky).
Em 1948, o historiador sírio Constantin Zurayk utilizou a palavra árabe Nakba (Catástrofe) para se referir à remoção forçada dos palestinos de suas terras e casas pelo recém-formado estado de Israel (em seu livro de agosto de 1948, Ma’na al-Nakba ou O Significado da Nakba). Uma década atrás, em Beirute, eu me encontrei com o romancista libanês Elias Khoury, na época editor da Revista de Estudos Palestinos em língua árabe, que me disse que a Nakba de 1948 não foi um evento, mas parte de um processo. "O que temos é uma Nakba Permanente, o que significa que essa catástrofe tem sido contínua para os palestinos", ele disse. Desde 1948, movimentos políticos palestinos e intelectuais argumentaram que a lógica do Estado de Israel tem sido expulsar os palestinos da região entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo. Essa política de expulsão para criar um Estado de Israel judeu etnorreligioso é o que Khoury quis dizer com Nakba Permanente.
Em 11 de novembro de 2023, o Ministro da Agricultura de Israel, Avi Dichter, disse algo surpreendente à imprensa. "Estamos implementando agora a Nakba de Gaza", disse ele. "Nakba de Gaza 2023. É assim que terminará", disse este ex-diretor do serviço de segurança interna de Israel, Shin Bet. Na primeira semana de novembro, o Ministro do Patrimônio de Israel, Amihai Eliyahu, estava na Rádio Kol BaRama, cujo entrevistador refletiu sobre lançar "algum tipo de bomba nuclear em toda Gaza, nivelando-os, eliminando todos lá". Eliyahu respondeu: "Essa é uma maneira. A segunda maneira é descobrir o que é importante para eles, o que os assusta, o que os dissuade... Eles não têm medo da morte." Israel, disse o ministro, deveria retomar toda a Faixa de Gaza. E os palestinos? "Eles podem ir para a Irlanda ou para o deserto", disse ele. "Os monstros em Gaza devem encontrar uma solução por si mesmos". Essa linguagem de aniquilação e desumanização tornou-se comum no gabinete do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. Netanyahu suspendeu Eliyahu de seu gabinete, mas não repreendeu seu Ministro da Defesa Yoav Gallant, que chamou os palestinos de "animais humanos". Esta é a atitude geral dos altos funcionários israelenses, que agora estão registrados com esse tipo de linguagem.
?? ?? | O Ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, afirmou: "Abolimos todas as regras da guerra. Os nossos soldados não serão responsabilizados por nada. Não haverá tribunais militares". Ele já havia chamado os palestinos de "não-humanos" e "animais". pic.twitter.com/qPgIfZbC8g
— De Olho no Front (@deolhonofront) October 13, 2023
O exército de Israel avançou na execução da "Nakba de Gaza". Na fase inicial do ataque, Israel disse aos civis palestinos para se mudarem para o sul dentro da Faixa, ao longo da Estrada Salah al-Din, o eixo norte-sul nesta área de 40 quilômetros de extensão da Palestina que abriga 2,3 milhões de palestinos. Os israelenses disseram que atacariam principalmente o norte de Gaza, especialmente a cidade de Gaza. Cerca de 1,5 milhão de palestinos se mudaram da parte norte de Gaza para o sul, os israelenses tendo dito repetidamente que esta seria uma zona segura. Aqueles que ficaram experimentaram um nível de bombardeio não visto em Gaza no passado, que tem sido bombardeada pelos israelenses de forma pontual desde 2006 (a guerra atual inclui ataques aéreos mortais contra campos de refugiados altamente congestionados, como Jabalia). No final de novembro, cinco semanas após seus brutais bombardeios no norte, as aeronaves israelenses intensificaram os bombardeios na segunda maior cidade de Gaza, Khan Younis, e começaram as operações terrestres nas áreas onde haviam dito aos civis para se abrigarem. Na primeira semana de dezembro, tanques israelenses cercaram Khan Younis, e as aeronaves israelenses começaram a bombardear pequenas cidades na parte sul de Gaza. Tendo empurrado 1,8 milhão de palestinos para o sul, os israelenses agora começaram a bombardear essa parte de Gaza. Enquanto isso, a recusa de Israel em permitir a entrada suficiente de ajuda humanitária em Gaza significa que nove em cada dez palestinos estão vivendo sem comida por dias a fio (alguns disseram ao Programa Mundial de Alimentos da ONU que não comem há 10 dias). Essa guerra total de Israel empurrou a maioria dos palestinos em Gaza em direção à fronteira egípcia. Sob a cobertura desta guerra, os israelenses também avançaram agressivamente na Cisjordânia para aprofundar a Nakba Permanente nessa parte do Território Palestino Ocupado.
Já em 18 de outubro, muito antes de as forças israelenses se moverem em direção a Khan Younis, o exército de Israel tuitou que "ordena aos residentes de Gaza que se mudem para a zona humanitária na área de al-Mawasi". Três dias depois, o exército israelense disse que os palestinos devem se mover "ao sul de Wadi Gaza" e ir para a "área humanitária em Mawasi". Aqueles que foram para este pequeno enclave (8,6 quilômetros quadrados) descobriram que ele não tinha nenhum serviço, incluindo a internet, e que mesmo aqui os israelenses estavam disparando suas armas nas proximidades. Mohammed Ghanem, que morava perto do Hospital al-Shifa, no norte de Gaza, disse que al-Mawasi não era "nem humano nem seguro". Os palestinos do sul de Gaza agora esperam que possam sair antes que as bombas israelenses os encontrem. O número de mortos agora ultrapassa 18.000. Como um amigo palestino escreveu em uma mensagem de texto, "Se não sairmos de nossas casas e irmos para o exílio, seremos mortos aqui". Ele enviou esta mensagem no momento em que a confirmação chegou de que mais palestinos foram expulsos de suas casas e mortos desde 7 de outubro do que na Nakba de 1948. "Esta é a Segunda Nakba", disse ele para mim, perto da fronteira entre Gaza e o Egito.
O terrível ataque israelense aos palestinos de Gaza provocou um apelo por um cessar-fogo a partir da segunda semana de outubro. O imenso poder de fogo de Israel, fornecido por países ocidentais (especialmente Reino Unido e Estados Unidos), foi usado indiscriminadamente contra um povo que vive em áreas congestionadas de Gaza. Imagens dessa violência inundaram as redes sociais e até mesmo os noticiários televisivos, que não puderam ignorar o que estava acontecendo. Essas imagens superaram todas as tentativas do governo israelense e de seus apoiadores ocidentais de justificar suas ações. Dezenas de milhões de pessoas participaram de várias formas de protesto ao redor do mundo, mas principalmente nos estados ocidentais que apoiam Israel, enfrentando corajosamente governos que tentaram retratar sua solidariedade com os palestinos – sem sucesso – como antissemitismo. Este ataque foi uma tentativa cínica de usar a existência real e horrível do antissemitismo para difamar os protestos. Não funcionou. O apelo por um cessar-fogo em larga escala aumentou, exercendo pressão sobre governos ao redor do mundo para agir.
Em 8 de dezembro de 2023, os Emirados Árabes Unidos (EAU) apresentaram uma resolução "breve, simples e crucial" para um cessar-fogo (as palavras são do embaixador dos EAU na ONU, Mohamed Issa Abushahab). O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, invocou o Artigo 99 da Carta, que permite que ele destaque a importância de um evento por meio de "diplomacia preventiva" (o artigo só foi usado três vezes anteriormente, nos conflitos na República do Congo em 1960, Irã em 1979 e Líbano em 1989). Quase cem Estados membros da ONU apoiaram a resolução dos EAU. "O povo de Gaza está sendo instruído a se mover como peões humanos, ricocheteando entre fragmentos cada vez menores do sul, sem nenhum dos elementos básicos para a sobrevivência", disse Guterres ao Conselho de Segurança da ONU. "Nenhum lugar em Gaza é seguro". Treze membros do Conselho de Segurança votaram a favor, incluindo a França, enquanto o Reino Unido se absteve. Apenas o vice-embaixador dos EUA, Robert Wood, levantou a mão para vetar a resolução.
Quatro dias depois, em 12 de dezembro, os egípcios apresentaram praticamente a mesma resolução na Assembleia Geral da ONU, onde o presidente da Assembleia, Dennis Francis (de Trinidad e Tobago), disse: "Temos uma única prioridade - apenas uma - salvar vidas. Pare com essa violência agora." A votação foi avassaladora: 153 países votaram a favor da resolução, 10 votaram contra e 23 se abstiveram. É instrutivo ver quais países votaram contra o cessar-fogo: Áustria, República Tcheca, Guatemala, Israel, Libéria, Micronésia, Nauru, Papua Nova Guiné, Paraguai e Estados Unidos. Muitos países europeus, da Bulgária ao Reino Unido, se abstiveram. Mas as questões são complexas. Até mesmo a Ucrânia não votou com Israel nesta resolução. Eles se abstiveram.
O veto dos EUA no Conselho de Segurança e os votos contra na Assembleia Geral são efetivamente votos a favor da Nakba Permanente do povo palestino, da Solução sem Estado. Pelo menos, é assim que serão interpretados em todo o mundo, não apenas em al-Mawasi, à medida que as bombas se aproximam, mas também nas manifestações de Nova York a Jacarta.
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A “solução sem Estado” torna-se mais real à medida que a Nakba permanente de Israel prossegue - Instituto Humanitas Unisinos - IHU