09 Janeiro 2024
"O projeto de transferir ou encorajar o deslocamento 'voluntário' dos palestinos de Gaza era, antigamente, uma posição marginal dentro da sociedade israelense, apoiada principalmente pelos kahenistas. Essa ideia foi gradualmente se normalizando após a formação do último governo Netanyahu, no ano passado e levada ao extremo após o ataque do Hamas em 7 de outubro".
O artigo é de Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana, em artigo publicado por La Stampa, 05-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Embora o balanço das vítimas da guerra supere as 22 mil pessoas, os líderes políticos israelenses tornam-se cada vez mais explícitos no seu objetivo de transferir o maior número possível de habitantes de Gaza para fora das fronteiras da Faixa. As declarações, cada vez mais numerosas e mais transparentes, estão desparando os alarmes das organizações humanitárias e dos aliados de Tel Aviv, especialmente os Estados Unidos. Alarmes que, no entanto, continuam a cair no vazio.
No domingo passado, o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, na cúpula do partido ultranacionalista Sionismo religioso, referindo-se a Gaza, falou de um gueto onde é necessário encorajar a emigração. “Para evitar que Gaza continue a ser um foco onde dois milhões de pessoas cresçam no ódio aspirando a destruir Israel" Smotrich sugere que pelo menos 90% da população tenha que sair.
“Se tiver 100 ou 200 mil árabes em Gaza, e não mais dois milhões – disse ele –falar do ‘dia seguinte’ será diferente”.
Este é o tema da discussão hoje: falar do dia seguinte. A estratégia no presente da guerra é a estratégia sobre o futuro da Faixa. O que acontecerá amanhã com as pessoas que hoje estão realmente presas numa prisão a céu aberto e sobre cujo destino muitos representantes da liderança israelenses parecem ter ideias claras: restabelecer o assentamento judaico no território e encorajar os palestinos a ir embora. Cenário que para os habitantes de Gaza representa a concretização do pesadelo de uma segunda catástrofe, a Nakba, o deslocamento forçado após a guerra de 1947-49, e que para os observadores da política israelense representa as ambições das franjas mais extremistas do governo Netanyahu, a quem o Primeiro-Ministro deve a formação do último governo, o apoio político e, portanto, a esperança de que a sua liderança não acabe com o fim da guerra.
O projeto de transferir ou encorajar o deslocamento “voluntário” dos palestinos de Gaza era, antigamente, uma posição marginal dentro da sociedade israelense, apoiada principalmente pelos kahenistas. Essa ideia foi gradualmente se normalizando após a formação do último governo Netanyahu, no ano passado e levada ao extremo após o ataque do Hamas em 7 de outubro. Para os expoentes políticos e os apoiadores declarados das teses kahenistas, o massacre de outubro e da guerra que se seguiu tornaram-se “uma oportunidade para nos concentrarmos no encorajamento dos residentes de Gaza a migrar", essas são as palavras do Ministro da Segurança Nacional Itamar Ben Gvir, para quem a transferência dos habitantes de Gaza é uma “escolha correta, justa, moral e humana”.
Em novembro, os deputados Danny Danon do Likud, antigo embaixador nas Nações Unidas, e Ram Ben Barak, do partido de oposição Yesh Atid, ex-vice-diretor do Mossad, escreveram no WSJ um editorial intitulado: “O mundo deveria acolher os refugiados de Gaza, mesmo se os países acolhessem apenas 10 mil pessoas cada, isso ajudaria a aliviar a crise", terminando o apelo com estas palavras: “A comunidade internacional tem o imperativo moral – e a oportunidade – de demonstrar compaixão, ajudar o povo de Gaza a mover-se para um futuro mais próspero e trabalhar juntos para alcançar maior paz e estabilidade no Oriente Médio."
Em dezembro, a Ministra da Inteligência, Gila Gamliel, publicou um editorial no Jerusalem Post usando palavras semelhantes, convidando os países ocidentais a acolherem os residentes da Faixa de Gaza, num ato de “reassentamento voluntário”. Em resposta ao pedido de Gamliel de instituir uma força tarefa sobre o tema, Netanyahu admitiu na semana passada que o governo está trabalhando para facilitar o movimento dos habitantes de Gaza para fora da fronteira. “O problema – disse ele – é encontrar países dispostos para absorvê-los, estamos trabalhando nisso."
Na semana passada, Danny Danon reiterou a tese do gesto humanitário: “Israel deve facilitar a saída para os habitantes de Gaza para outros países. Uma imigração voluntária dos palestinos que querem sair”, disse, acrescentando que já foi contatado por “países africanos e latino-americanos dispostos a absorver os refugiados da Faixa de Gaza." Segundo fontes anônimas do gabinete de segurança citadas pelo jornal Zman Israel, o Congo estaria disposto a acolhê-los. Entre os intermediários no reassentamento dos palestinos em outros países, segundo o canal israelense Channel 12, também o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, mas o Tony Blair Institute for Global Change, uma organização sem fins lucrativos que ele fundou em 2016, negou os encontrou com Gantz e Netanyahu sobre esse tema: “Tony Blair não apoiaria uma tal discussão, a ideia está errada por princípio. Os habitantes de Gaza deveriam poder ficar e viver em Gaza", escrevem no comunicado.
As indiscrições do Channel12 surgiram depois de dois ministros do governo de extrema direita especularem que os colonos poderão retornar à Faixa de Gaza quando a guerra terminar.
São muitos os políticos israelenses que começaram explicitamente a pedir à restauração dos assentamentos israelenses em Gaza (os colonos israelenses retiraram-se da Faixa em 2005), e num recente artigo no Jerusalem Post, um geógrafo israelense, definiu a península egípcia do Sinai “um local ideal para desenvolver um amplo reassentamento para a população de Gaza”.
Nas últimas semanas, foram difundidas muitas imagens de soldados israelenses retratando-se no território da Faixa, com placas com os dizeres "Estamos de volta!" e “Estamos aqui para ficar!".
Obviamente essas imagens alarmaram a comunidade internacional e confirmaram a ideia de que o plano de Israel seja de deslocar à força e permanentemente os palestinos.
A guerra em Gaza já obrigou ao deslocamento a grande maioria da população.
Desde o início da ofensiva, Israel repetidamente exortou os civis a deslocarem-se para o sul, em áreas apresentados como "mais seguras", mas, na realidade os bombardeios seguiram o fluxo de pessoas e hoje também os grandes centros do sul estão sob bombardeio contínuo, as infraestruturas e as habitações estão devastadas e um milhão e meio de pessoas enfrentam necessidades médicas enormes e uma carestia iminente.
Em dezembro, as Nações Unidas definiram a situação em Gaza como catastrófica, alertando que mais de noventa por cento da população enfrenta "uma grave insegurança alimentar" e “praticamente todas as famílias pulam refeições todos os dias”.
O relatório destacava que os níveis de fome representam “o maior percentual de pessoas que enfrentam elevados níveis de insegurança alimentar aguda" jamais registado "para uma determinada área ou País".
De acordo com Arif Husain, economista-chefe do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas, entrevistado em 3 de janeiro pelo New Yorker, em Gaza neste momento praticamente toda a população de 2,2 milhões de pessoas encontra-se numa crise de segurança alimentar. "Eu faço esse trabalho há vinte anos e testemunhei todo tipo de conflito e todo tipo de crise – disse. E, para mim, esta situação não tem precedentes, nunca vi nada parecido em termos de gravidade, escala e, portanto, velocidade. Em Gaza há um chuveiro para cada 450 pessoas, há um banheiro para cada 220 pessoas. Mais de 1,5 milhão de pessoas vivem em locais muito congestionados. Um quarto da população já está enfrentando níveis catastróficos de fome. Se o que está acontecendo continuar ou piorar, muito em breve, nos próximos seis meses, teremos uma verdadeira carestia."
Numa longa e detalhada reconstrução da difusão das teses kahanistas na sociedade israelense, em novembro, o jornal Hareetz publicou um longo artigo intitulado: A direita israelense está tentando reformular a transferência da população de Gaza como um “ato moral”. A ideia de expulsar os árabes para outros países, diz o Haaretz, antigamente estava ligada a Meir Kahane e outros radicais de extrema direita e, portanto, considerada um anátema pela maioria dos israelenses.
Hoje a situação mudou e a ideia está ganhando terreno como solução “moral” para a guerra. Realinhando as etapas que tornaram explícito e aceitável na sociedade israelense esse cenário, o Hareetz reconstrói algumas passagens da comunicação nos três meses de guerra: um mês após o início da ofensiva, o apresentador de TV Guy Lerer escreveu em suas redes sociais: “Por que milhões de refugiados sírios foram para a Turquia e milhões de ucranianos foram para todas as partes da Europa? – Por que em cada guerra existem os refugiados, com exceção da guerra na Faixa Gaza?”. No mesmo dia, no Channel12, canal de notícias mais assistido do país, o parlamentar Ram Ben Barak disse: “Se considerarmos que toda Gaza é composta de refugiados, vamos dispersá-los pelo mundo. Existem 2,5 milhões de pessoas lá. Cada país poderia acolher 20.000 pessoas – 100 países. É humano, é lógico, melhor ser refugiado no Canadá do que refugiado em Gaza. Se o mundo realmente quer resolver esse problema, pode fazê-lo." Tanto Lerer quanto Ben Barak são seguidores de ideias do rabino ultranacionalista Meir Kahane, mas o que é interessante e inquietante ao mesmo tempo é que as suas teses, que antigamente teriam sido prerrogativas da extrema direita, hoje estão se tornando comuns na sociedade israelense.
Dez dias depois do massacre de 7 de outubro, havia sido publicado um documento que tentava dar legitimidade à ideia de transferimento populacional. O Dr. Raphael BenLevi, da organização de direita Tikvah Fund e pesquisador do Instituto Misgav para a segurança nacional e a estratégia sionista, sempre citado pelo Haaretz, escreveu que a única maneira de estabilizar a fronteira sul de Israel “é agir para empurrar a população para a península do Sinai e criar uma iniciativa internacional para absorver os deslocados do Sinai para países estrangeiros. Apesar da oposição esperada, Israel deve agir para criar uma situação intolerável em Gaza, que obrigará outros países a ajudar a saída da população – e os Estados Unidos a exercerem uma forte pressão para esse fim." Ou seja: quanto mais intolerável for a situação em Gaza, mais os civis pressionarão pela saída da Faixa. E, como resultado, será inevitável que os esforços diplomáticos começarão a mover-se para convencer os países árabes a acolher os refugiados e os países ocidentais a fazerem a sua parte.
Para tentar transformar a expulsão dos habitantes de Gaza de acordo com essas teses teve também um artigo publicado no Hashiloach, em outubro, intitulado: “Necessário, moral e possível: não voltar a Gaza”. O autor, Yoav Sorek apresenta argumentações “éticas” para sua tese, uma passagem que o Haaretz define como um " sofisticado upgrade para os kahanistas". Sorek sabe que o risco de transferimento forçado, que é um crime de guerra, poderá provocar o isolamento de Israel dos seus aliados internacionais, portanto, esboça uma tese segundo a qual a única maneira para abandonar o convite à vingança e à matança de civis é transferir a população. “A transferência de uma população ou a implementação de uma troca de população são práticas generalizadas na resolução dos conflitos e são completamente independentes do crime conhecido como ‘limpeza étnica’”.
Transferir para não matar. Essa é a troca explicitamente proposta pelas franjas extremistas da política e, portanto, da sociedade israelense, esse é o dilema moral do qual o Ocidente e os países árabes estão tomando consciência.
Nesse contexto, a migração apresentada como "voluntária" equivale cada vez mais a um deslocamento forçado ilegal.
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Gaza e os palestinos condenados ao exílio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU