04 Janeiro 2024
"A abertura às bênçãos para os casais homossexuais poderia ser o primeiro progresso, a premissa de uma autêntica mudança ou, como parece mais provável, um pronunciamento que, em vez disso, colocará num gueto por tempo indefinido os homossexuais crentes nos quartos dos fundos da igreja católica".
A opinião é de Marco Marzano, professor de Sociologia na Universidade de Bergamo, na Itália, em artigo publicado por Domani, 02-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A declaração do dicastério da Doutrina da fé Fiducia suplicans, que torna lícita a bênção a casais irregulares e, em particular, a casais homossexuais, suscitou ferozes reações contrapostas.
Os conservadores guardiões da tradição (interpretada à sua maneira) bradam por blasfêmia, traição e prometem um boicote (aquele já anunciado, por exemplo, pelos bispos poloneses, conforme relatado pelo historiador Stanislaw Obirek). Os progressistas exultam, convencidos de que se trata de um passo importante em direção a uma mudança de atitude da Igreja em relação à homossexualidade.
Julgada de fora em relação à luta interna da igreja, a disposição apresenta um elemento inovador e outros de forte continuidade.
A inovação é representada pelo fato de esta última decisão desmente efetivamente uma anterior, divulgada em 2021. Dois anos atrás, de fato, o mesmo ministério manifestou-se sobre o tema de uma forma completamente diferente, negando qualquer legitimidade à bênção dos casais homossexuais.
Uma virada tão evidente, que chegou sem aviso prévio, de uma hora para outra, confirma que as mudanças na Igreja são possíveis, desde que o Papa as queira. A igreja é uma monarquia absoluta: quando o soberano decide mudar de direção, a instituição deve se adaptar. Os conservadores vão estrilar, mas não podem cancelar o que o Papa deliberou.
Da mesma forma, hoje compreendemos ainda melhor que o pontífice argentino poderia ter procedido, caso o quisesse, da mesma forma em todos os outros campos, do celibato ao papel das mulheres, reformando a igreja católica em profundidade e de forma duradoura.
A continuidade reside mais no método, na decisão de separar o plano normativo daquele pastoral. Já havia acontecido com Amoris laetitia, a exortação apostólica na qual o Papa Francisco por um lado, reiterara a indissolubilidade do casamento e, por outro, permitia aos sacerdotes, em determinadas circunstâncias, readmitir à comunhão os divorciados recasados.
Fiducia suplicans apresenta uma argumentação semelhante: por um lado, reitera a absoluta primazia, sancionada por uma liturgia precisa e solene, do casamento heterossexual orientado para a procriação e, por outro lado, permite que os padres abençoem casais homossexuais. A inferioridade desses últimos em relação aos heterossexuais é continuamente especificada em cada linha do documento do Vaticano: os casais “irregulares” não podem ser abençoados como se fosse um rito de união civil nem, lemos na declaração, “com as roupas, gestos ou palavras próprios de um matrimônio."
Nada de vestidos de casamento e nada de chuva de arroz ao sair da igreja, nada de vídeos e sem beijo na noiva ou no noivo. As bênçãos não devem ser programadas e acontecer quase por acaso, à margem, lemos sempre no documento, “da visita a um santuário, do encontro com um sacerdote, de uma oração recitada num grupo ou durante uma peregrinação”. Em suma, tudo numa bênção deve reafirmar a diversidade do casamento e o fato de que aqueles que a solicitam vivem numa “situação moralmente inaceitável”.
A bênção dos casais homossexuais apenas sinaliza a importância de reconhecer a presença de Deus em todos os lugares, como acontece com "os objetos de culto e de devoção, com as imagens sagradas, com os lugares de vida, trabalho e sofrimento, com os frutos da terra e do trabalho humano, e com todas as realidades criadas que se reportam ao Criador". Deus ama todas as criaturas (humanas e não humanas), mesmo aquelas que, como os homossexuais, cometem graves erros. Ele as ama esperando sempre que finalmente se abram ao bem.
Em essência, o Papa abre as portas da Igreja também aos homossexuais, desde que sejam conscientes de sua inferioridade em relação aos heterossexuais casados e que aceitem ocupar um cantinho escuro e lateral da casa comum. É difícil dizer agora se esse seja um primeiro progresso, premissa de uma autêntica mudança futura (como temem os conservadores) ou, como parece mais provável, um pronunciamento que, em vez disso, colocará em um gueto por tempo indefinido os homossexuais crentes nos quartos dos fundos da igreja católica.
Em termos de efeitos práticos, a declaração, como aconteceu com a Amoris laetitia, pouco ou nada muda. Não acredito que veremos casais do mesmo sexo fazendo fila para serem abençoados. Os padres que já abençoavam clandestinamente os casais homossexuais continuarão a fazê-lo.
Aqueles que estão horrorizados com essa eventualidade persistirão na recusa.
Para um debate sério sobre a homossexualidade na Igreja que finalmente inclua também aquela clandestina de um enorme número de sacerdotes, aguardamos com confiança uma próxima oportunidade.
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Abençoar os casais homossexuais, mas deixando-os nas sombras. A meia abertura do papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU