20 Dezembro 2023
Faleceu, aos 90 anos, o célebre marxista italiano que fez jus, como poucos, à tradição comunista por nunca desconectar a produção teórica da luta revolucionária.
O artigo é de Hugo Albuquerque, publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD), publicado por Jacobin Brasil, 16-12-2023.
O mundo perdeu um grande militante comunista. Aos 90 anos, o italiano Toni Negri se foi em Paris, capital da França onde vivia há tempos. Nascido em Pádua, no Vêneto, ele foi um dos mais destacados líderes do Potere Operaio e depois da Autonomia Operaia, a esquerda extraparlamentar da Itália dos anos 1960-1970, vinculada ao autonomismo marxista e engajada na luta social radical — enquanto os partidos tradicionais capitulavam à lógica institucional e na crença no desenvolvimento por si só.
Na sua longa e produtiva trajetória, há pelo menos quatro fases de Negri: a sua formação militante na Itália dos 1950, sobretudo em sua colaboração com Mario Tronti — também falecido neste ano de 2023 — e Raniero Panzieri — nos Quaderni Rossi [Cadernos Vermelhos], sua radicalização no final dos anos 1960, seu exílio francês, no qual se relaciona com o pós-estruturalismo e sua fama global a partir de 2000, em colaboração com Michael Hardt, com a tetralogia Império, Multidão, Bem Comum e Assembly.
Ainda fica estampada, na sua fase derradeira, a estreita relação de Negri com o Brasil e a América Latina. Por aqui, ele fez visitas constantes, manteve interlocução direta com militantes e redes, sendo entusiasta das assim chamadas experiências progressistas — justamente por perceber a dimensão revolucionária que era ser reformista na nossa periferia do mundo. O Brasil sempre encantou Negri, em cujo encontro sempre revelou sua potente faceta de um realista sem jamais perder a alegria.
Depois da tragédia do fascismo e o morticínio da Segunda Guerra, a Itália dominada pelos Aliados era uma terra pobre, arrasada pelas tempestade da extrema direita e do maior conflito que a humanidade conheceu. O jovem Negri, cujo pai era um militante comunista que morreu quando ele tinha dois anos, já era um militante engajado muito jovem, se filiando mais tarde à ala esquerda do Partido Socialista — onde permaneceu por sete anos.
Formado em filosofia em Pádua, sua terra natal, Negri se dedicou à Teoria do Estado e à Teoria Constitucional. No solo fértil do nordeste italiano, Negri rapidamente se vincula com a intelectualidade dissidente do próprio Partido Comunista, os quais buscam uma renovação do marxista, enquanto o partido — a maior agremiação comunista da Europa Ocidental, se tornava um navio à deriva, perdido na lógica eleitoral e parlamentar.
Em uma intensa produção intelectual, sobretudo nas páginas dos Qaderni Rossi, Negri é observador privilegiado da morte do capitalismo fordista e inova com o conceito de trabalhador massa — no qual já antevê as novas formas de exploração do trabalho pelo capital. É nesse contexto que ele se alia aos movimentos sociais naquilo que se desenhará como uma década inteira de lutas em seu país: na Itália, 1968 teve mais de dez anos e se estendeu por toda a década de 1970.
A Itália se desenvolveu sob um regime de democracia representativa no pós-guerra, com uma irrupção também nos campos da arte da intelectualidade, mas os anos 1970 eram a hora da verdade para um outro projeto de humanidade — talvez o derradeiro plano dessa natureza gestado na Europa. Tudo termina com o sequestro e morte do premiê Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas em 1978, o que desencadeia uma onda de repressão e prisões, cujos objetivos iam muito além.
Na época, Negri se projetava como intelectual de porte, reconhecido na França, na qual se produzia o que havia de intelectualmente mais avançado no Ocidente. Depois de um bem-sucedido ciclo de conferências com Althusser em Paris, que renderam o icônico Marx além de Marx, Negri retorna à Itália, onde é envolvido, meses depois, no turbilhão de eventos da morte de Aldo Moro, sob insólitas acusações de ser mandante moral do crime, por sua obra, e ser um cattivo maestro, um corruptor.
Preso, injuriado e aviltado no início de 1979, a história de Negri não acabaria, no entanto, naquele momento. Enquanto era alvo de ativa solidariedade internacional, sobretudo entre os intelectuais franceses, Negri resiste e não esmorece no cárcere. Lá, ele chega a escrever o seu seminal A anomalia selvagem sobre a obra de Espinosa, uma presença que acompanha especialmente tardia. Em 1983, ele é eleito deputado, mesmo preso, pelo Partido Radical o que leva à sua soltura.
Furiosa, a direita se une à esquerda parlamentar para cassar o mandato, e consequentemente a imunidade parlamentar, de Negri, que se usa da breve soltura para empreender uma fuga cinematográfica para a França. Lá, é recebido pela rede de exilados italianos dos anni di piombo italianos assim como os filósofos Félix Guattari, Gilles Deleuze e Michel Foucault — os quais o ajudam a se estabelecer como professor na Universidade de Paris VIII (Vincennes) e retomar sua produção.
Protegido pela chamada Doutrina Mitterrand, que permitiu a acolhida dos militantes italianos perseguidos pela onda repressiva da virada dos anos 1970, enormemente produtivo, Negri encara a sombra de não poder voltar à sua terra natal — um drama acompanhado por muitos desses exilados, sobretudo os mais velhos, que gostariam de morrer na sua terra, rever entes queridos e outras tantas coisas básicas.
Enquanto isso, a filosofia negriana encara os anos 1990 como um bom vento, que recusa explicações derrotistas e busca pensar o futuro, se perfilando ao movimento alterglobalista — sem recusar o comunismo como instância de entendimento e luta para os novos tempos, quando a hegemonia neoliberal parece absoluta e invencível. É nesse cenário que Negri parte de volta para a sua Itália natal, para se entregar e buscar colocar em xeque o governo e a causa dos exilados.
É nessa nova experiência no cárcere que Negri iniciou a produção da trilogia, que no fim se tornou uma tetralogia, que o torna mundialmente famoso, feita em parceira com o americano Michael Hardt: Império (2000), Multidão (2004), Bem Comum (2009) e, finalmente, Assembly (2017). Uma vez solto, Negri visita o Brasil em 2003, mantendo uma estrita relação com o governo Lula, sobretudo com o então entourage do ministério da Cultura, chefiado por Gilberto Gil.
A produção de Negri com Hardt o alçam a um estrelato global, ainda mais com muitas de suas antevisões se confirmando com a Primavera Árabe, os movimentos de contestação na Europa e, finalmente, o movimento Occupy nos Estados Unidos. A cereja do bolo de Negri, contudo, serão as experiências latino-americanas, que marcam novos modos de inovação a partir da periferia global, com suas populações multirraciais e incrementos sociais que passavam por uma democracia substancial.
Inicialmente próximo a Hugo Chávez na Venezuela, de quem se afasta relativamente, Negri permanecerá próximo de Lula, se opondo à Lava Jato, sem deixa de reconhecer o valor das lutas de 2013. O pensamento de Negri passa a sofrer uma série de questionamentos à luz da enorme onda de reação operada na América Latina, mas verificada em todas as partes do globo — onde seu otimismo militante com as possibilidades espontâneas da multidão parece, ao final, se desfazer com castelos de areia diante da dura realidade.
Ainda que, de certa forma, as formulações tenham sido submetidas a duros golpes, sobretudo o cenário antevisto em Império, suas análises acerca das transformações do capitalismo não são um fato trivial ou facilmente contornável — e se, de certa forma, o avanço chinês lhe passou, em certa medida, desapercebido, a reciprocidade não foi exatamente verdadeira, uma vez que sua obra no século XXI também foi traduzida para o mandarim.
Apesar das limitações de saúde da idade, Negri se conservou lúcido e defendendo posições corajosas como uma saída realista para o conflito ucraniano ou, ainda, se recusando a abandonar o comunismo, ou as ideias de alegria e amor na linguagem política. Evidentemente, seu legado é imenso, na qualidade e no tamanho, o que deve ser revisitado não apenas após ao final desta onda específica de reação — mas justamente dentro dela, para lhe dar fim o quanto antes.
A lição maior de Negri é jamais abrir mão do norte de revolucionário, mas que isso demanda a unidade entre teoria e prática, o que nos coloca sempre diante do enorme desafio de fazer realidade e desejo caminharem juntos. Não é pouca coisa. Mas apostar no potencial criativo e resistente da humanidade é um caminho justo e razoável — ainda mais em tempos tão assustadores. Não podemos esmorecer, nem dar lugar para a tristeza, pois a alegria é sempre a prova dos nove.
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Toni Negri, um militante comunista acima de tudo. Artigo de Hugo Albuquerque - Instituto Humanitas Unisinos - IHU