Por: Ricardo Machado | 27 Setembro 2016
Ao contrário do dilema shakespeariano sobre o ser, que partia de uma dúvida existencial do âmago do sujeito, a contemporaneidade impôs um elemento novo à questão: a coragem. “Quem tem coragem de ser indivíduo? Como pode existir coragem em uma sociedade absolutamente violenta com pobres, negros, homossexuais e mulheres? Vivemos em um sistema de dominação que nos instiga às paixões mais tristes”, provoca o professor e pesquisador Roberto Romano, diante de uma plateia de mais de 80 pessoas na noite da segunda-feira, 26-9-2016, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU.
Roberto Romano apresentou a conferência Reinvenção do espaço público e político: o individualismo atual e a possibilidade de uma democracia da igualdade e dos afetos. O evento integra a programação da quarta edição do Ciclos de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum.
Dono de um discurso teoricamente preciso, Roberto Romano, não poupa expressões fortes quando se trata de descrever o comportamento social. “As pessoas têm horror a políticos e à política, mas quase se masturbam quando veem o Big Brother Brasil - BBB. As pessoas têm gozo quando um sujeito é eliminado do reality show. É a sublimação da fofoca. O BBB desperta as paixões horríveis, que transforma em normal o infame” critica.
Se o desafio de construção de uma sociedade democrática no século XVII era grandioso, nem mesmo todo processo moderno de civilização nos quatro séculos posteriores foi capaz de facilitar tal tarefa, dado que o verniz de nossas democracias não resiste a poucas décadas. “O regime democrático para Spinoza é aquele que dispensa salvadores. É a força dos peixes pequenos unidos contra o peixe o grande. Se não se tem força física para opor a força física do tirano, infelizmente, não se pode mudar nada. A pressuposiçao da uniao dos corpos individuais é fundamental para a democracia”, explica Romano. “A democracia como aquele lugar onde todos se entendem e conversam tranquilamente não existe. Em uma democracia os homens continuam desejando o mando, tendo inveja, tendo ódio. O que ocorre é que há a possibilidade de se unir indivíduos para relativizar essa paixões”, complementa.
Roberto Romano durante conferência na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros no IHU (Fotos: Ricardo MAchado/IHU)
Para Spinoza a democracia era o único sistema político natural. Ele partia de uma visão teológica, muito particular à época, para justificar a existência política humana. “Se Deus é uma substância infinita com infinitos atributos, nós só conhecemos dois deles: a extensão (o corpo) e o pensamento. Portanto, para Spinoza qualquer um que quisesse controlar os pensamentos e os corpos estaria indo contra Deus”, esclarece Romano.
O argumento de Spinoza vinha a calhar em um momento que, apesar do Renascimento e do princípio da fratura entre Estado e religião, a Inquisição ainda fazia suas vítimas. Além disso o filósofo propôs uma leitura da política que permanece original nos dias atuais. “Nós não podemos pensar a política como se reuníssemos uma série de pensamentos. A política é uma reunião de corpos, corpos que têm desejos, afetos. Essas paixões pessoais não podem ser extraídas de nossos corpos e quando nos reunimos em sociedade”, avalia. “É irrealista que a política seja fundada no pensamento e que possamos ignorar que somos corpos que desejam. Se esquecermos esses aspectos, fracassamos”, destaca Romano.
“Se não imaginamos os desejos – inveja, ódio, alegria, amor sexual, vontade de ganho, vontade de poder – estamos pensando em termos utópicos. Muitas vezes sublimamos esses desejos em coisas bonitas, mas que não correpondem ao que de fato pensamos. Quando se tem a disputa pelo poder, mesmo o sujeito que se diz apolítico está experimentando coisas”, propõe.
A política, ressalta Romano, é o jogo das paixões. No fundo, o que mobiliza politicamente os sujeitos é muito menos as racionalidades e muito mais os afetos. “A partilha dos afetos que vai formar a multidão de que trata Spinoza pode ser destrutiva ou construtiva. Podemos transformar o sentimento de amor em ódio. Nesse sistema, todo indivíduo é pedra fundamental, não existe possibilidade de se pensar um todo sem as individualiades. Ele é elemento capital”, descreve o conferencista. “O que assistimos a partir do século XIX é a emergencia de uma técnica de vida chamada 'individualismo' e isso se casa muito bem com o capitalismo, mas essa tese não tem nada a ver com o individualismo proposto por Spinoza”, explica.
Na prática o que ocorre nas sociedades marcadas pelo individualismo é que a união de forças contra o soberano torna-se uma tarefa muito difícil. “Apenas quando há fatos muito violentos se gera um movimento social mais coeso, mas logos os indivíduos se separam. A união das individualidades ocorre, porém, em pequenos grupos em que os indivíduos se organizam em torno de pautas comuns e a pessoa passa a assumir a identidade do movimento”, frisa. “A partir do momento em que as pessoas passam a fazer parte de um movimento – LGBT, negro, feministas etc – elas precisam se submeter às regras daquela comunidade. É um movimento que se insurge contra as regras das sociedades impondo novas determinações e quem foge dessas identidades é um traidor”, complexifica Romano.
De acordo com o professor, quando se fala em ética no Brasil as pessoas tendem a imaginar que a “ética” é uma coisa boazinha, feita por intelectuais, mas que a ética vista desde o ponto de vista de Spinoza é capaz de revelar seu caráter conservador, como resultado não de um pensamento puro, mas de costumes. “Há costumes negativos que se tranformam em éticas, uma forma reiterada de agir que se impõe aos outros e que se acha bom, mas que para outras pessoas é ruim. Vejamos a o caso da Alemanha nazista, em que milhões gritavam Heil Hitler e isso era ético”, relembra.
Ser não é, simplesmente, uma questão de existir biologicamente. Ser pressupõe a liberdade, que é algo natural à espécie humana, mas ser livre na vida social exige a coragem de ter liberdade de pensamento. “Falemos o óbvio. Para ter liberdade de pensamento é preciso, primeiro, pensar. Se você pensa a propaganda, se você pensa o desejo do outro, você não está pensando”, provoca Romano. “Pensar pode ser capaz de levar alguém à solidão. Levantar-se contra o senso comum é um trabalho de lucidez muito difícil e muitas vezes mortal. Mas continua sendo a única forma de sermos livres”, provaca Romano.
Roberto Romano
Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França. Escreveu, entre outros livros, Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997), Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).
Nota de esclarecimento: devido a problemas técnicos, não houve a transmissão ao vivo da conferência de Roberto Romano.
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A coragem da liberdade de ser - Instituto Humanitas Unisinos - IHU