18 Setembro 2016
"Falhamos retumbantemente em sermos capazes de reconhecer no outro um semelhante e detentor dos mesmos direitos que nós. Não só ao decretar que a vida da xepa pobre vale menos porque menos tem ou que pessoas são lixo porque mexem com lixo, mas por transferir a cidadania das pessoas aos automóveis". O comentário é de Leonardo Sakamoto, jornalista, em artigo publicado em seu blog, 18-09-2016.
Eis o artigo.
O catador de materiais recicláveis Aldemir Ribeiro foi assassinado por uma flechada no pescoço, nesta semana, em São Paulo. O caso ganhou notoriedade e, após uma célere investigação, a Polícia Civil apontou um comerciante de 33 anos com passagens pela polícia por tentativa de homicídio como responsável pelo crime. Ele foi preso e teria confessado o crime. A razão seria uma discussão de trânsito.
Antes de tocar no assunto deste post, uma reflexão. A vida e a dignidade de parte dos que cuidam da limpeza de nossa vida cotidiana são invisibilizados ou ignorados. Dos catadores e garis às empregadas domésticas, seguem como parte integrante da Senzala – por mais que conquistas tenham sido obtidas e leis criadas. Não sem muita briga por parte dos trabalhadores e muito mimimi por parte da Casa Grande, claro.
Se fôssemos uma sociedade justa, profissionais responsáveis pela nossa qualidade de vida e que, ainda por cima, exercem funções insalubres, como limpar a porcaria dos outros ou garantir o milagre que faz do Brasil um dos países que mais reciclam no mundo, receberiam uma remuneração condizente com a importância e os riscos da função. Mas não. Pagamos relativamente pouco. E os consideramos o restolho da sociedade. São o exemplo do que não deu certo.
Enquanto isso, fazemos patéticas comemorações quando ficamos sabendo de histórias de garis ou catadores de recicláveis que se tornaram ''alguém'' através de muito esforço pessoal sem a ''ajuda do Estado'' e, hoje, são diretores de empresas. O que, por contraposição, faz com que os demais sejam enquadrados como ''indolentes'' que não se dedicaram o suficiente para deixar essa estigmatizada atividade.
Quantos anos um político com bacharel em qualquer coisa estudou? E qual a porcentagem de suas promessas de campanha são devidamente cumpridas? E agora me digam a porcentagem de cumprimento de planejamento de limpeza de um gari. O que me leva a crer que lixo não é o entulho que se acumula nas ruas. É a falta de respeito que muitos cultivam, dia após dia, com uma das mais essenciais profissões.
Mas esse não é o tema deste post.
O que queria era apenas decretar a falência completa de nossa sociedade.
Falhamos retumbantemente em sermos capazes de reconhecer no outro um semelhante e detentor dos mesmos direitos que nós. Não só ao decretar que a vida da xepa pobre vale menos porque menos tem ou que pessoas são lixo porque mexem com lixo, mas por transferir a cidadania das pessoas aos automóveis.
Mais uma morte derivada de uma discussão por causa da merda de um carro.
O homem apontado como assassino era violento? Ao que tudo indica, sim. Mas a verdade é que muitos perdem a razão em um automóvel da mesma forma que muitos ignoram regras básicas de convívio social nas redes sociais. Afinal de contas, em ambos os casos, não são eles, mas os carros e perfis nas redes que estã cometendo os abusos, um alter ego protegido pelo volante e pela tela do computador ou do smatphone.
O problema é que, qualquer tentativa de mudar essa mentalidade, que subordina a vida na pólis aos automóveis e aos seus limites de velocidade, é taxada como coisa de comunista.
E se as sucessivas administrações públicas federais, estaduais e municipais, ao longo dos anos, tivessem investido mais ainda em transporte público, favorecendo a coletividade e não o individualismo?
E se o Brasil optasse por gerar mais empregos na fabricação e veiculação de ônibus, trens, bondes, na reestruturação da malha urbana para acolher ciclistas e pedestres, na redução de tarifas ao invés de incentivar que pessoas comprem seus bólidos, cada vez mais planejados para suprimir as suas frustrações do dia a dia?
Nós, paulistanos, ou melhor, o Povo do Horizonte Marrom nos Dias Frios, nos refestelamos com um ar condicionado potente, bancos confortáveis e um aparelho de som master-blaster double stereo high quality que tem que ser forte para esconder o barulho da buzina do lado de fora. Acreditando, piamente, que não morremos a cada dia com a poluição de nossa própria ignorância e nos tornamos menos humanos pela perda de empatia com quem anda a pé, esquecendo – entorpecidos por comerciais de TV que vendem sonhos e por financiamentos em 60 vezes – que a vida enjaulada no trânsito da metrópole não é vida. É um simulacro.
Reconheçamos, São Paulo é dos carros. As pessoas são apenas seus escravos.
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A morte do catador de recicláveis na São Paulo escravizada por automóveis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU