06 Dezembro 2023
“O imaginário neocolonial dos países mais ricos parece ter mudado pouco, bem como a persistente visão eldoradista de nossas elites locais, que buscam a solução mágica e acelerada para os nossos problemas com a exportação de algum bem natural que o mercado mundial exige”, escreve Maristella Svampa, socióloga, ativista e escritora argentina, em artigo publicado por Clarín-Revista Ñ, 30-11-2023. A tradução é do Cepat.
Até há poucos anos, pensava-se que a transição energética abarcava apenas a substituição das fontes fósseis (petróleo e gás, carvão) pelas chamadas energias limpas (solar, eólica, hidráulica, entre outras). Uma mudança da matriz energética baseada na descarbonização e assegurada por baterias de lítio, que, juntamente com os parques eólicos e os painéis solares, iria configurando uma nova infraestrutura energética não poluente e sustentável.
No entanto, a transição energética está longe de ser simples e linear. O lítio também não oferece uma imagem imaculada do que poderia ser uma transição para energia limpa em um planeta cada vez mais “em ebulição” devido ao agravamento da crise climática. As inúmeras injustiças sociais, ambientais e geopolíticas que enfrentamos parecem confirmar uma nova armadilha civilizatória.
Na região atacamenha da Argentina, Bolívia e Chile, nos salares altoandinos, estão concentrados 58% dos recursos mundiais de lítio e 53% das reservas, o que os investidores chamam, tentando apagar de uma vez toda a sua história anterior, de “Triângulo do Lítio”. Tal concentração geográfica desencadeou na região uma enorme pressão dos capitais internacionais e dos países centrais, em uma batalha pelo controle do “recurso”.
Em termos geopolíticos, a extração de lítio é uma janela privilegiada que nos permite analisar o tipo de transição energética que emerge, marcada por uma forte monopolização tanto da extração (controlada por poucas transnacionais) como no que diz respeito ao produto, a bateria de lítio (onde se destacam a empresa chinesa ByD e algumas gigantes automotivas).
Uma característica importante destes tempos se refere à complexidade das relações neocoloniais em um mundo multipolar, marcado pela luta interimperial, onde a geopolítica se transforma em geoeconomia e colonialismos múltiplos.
Dito de outro modo: é impossível ver o imperialismo com apenas um olhar. Não apenas os Estados Unidos estão presentes, mas também a União Europeia. O gigante chinês, apesar de possuir os minerais que garantiriam a sua autonomia, está muito mais bem posicionado na América Latina, onde realizou pesados investimentos em setores extrativos estratégicos.
O imaginário neocolonial dos países mais ricos parece ter mudado pouco, bem como a persistente visão eldoradista de nossas elites locais, que buscam a solução mágica e acelerada para os nossos problemas com a exportação de algum bem natural que o mercado mundial exige.
O fato é que o sistema energético que emerge desta transição corporativa e neocolonial não só é geopoliticamente injusto, como também uma continuidade do sistema fóssil, marcado pela monopolização dos lucros. Assim, ao nos perguntarmos quem pagará a transição, fica claro que, caso siga assim, os países do Sul serão zona de sacrifício.
A Argentina, por meio de suas províncias, contribui ativamente para este processo de pilhagem, entregando o mineral a um preço irrisório (3% de royalties, que na verdade se convertem em 1,5%) frente aos 40% que o Chile retém. Da mesma forma, quarenta anos de continuidade do sistema institucional não geraram uma visão estratégica de médio prazo. Tanto é que o lítio tem o mesmo marco regulatório da mineração de metais: a Lei 24.196, símbolo da pilhagem, sancionada na época de Menem, que também tem 30 anos, sem que nenhum dos governos posteriores tenham manifestado a vontade de modificá-la.
A pressão que os centros capitalistas exercem sobre a periferia para extrair recursos naturais se agrava no contexto da dívida externa, o que renova um ciclo interminável de desigualdade. Isso acontece na Argentina, país que arrasta uma dívida externa contraída por Mauricio Macri, entre 2015 e 2019, o que bloqueia a possibilidade de se pensar em qualquer alternativa de mudança que não seja expandir as fronteiras do neoextrativismo, seja como for, para obter os dólares que aliviem os pagamentos da dívida com o FMI.
Em termos ambientais, a mineração de lítio consome quantidades insustentáveis de água, secando ecossistemas frágeis e áridos como as Salinas. Dois milhões de litros de água para cada tonelada de carbonato de lítio. Existem, claro, outros métodos de extração menos lesivos (por exemplo, em nosso país, desenvolvido por um pesquisador do Conicet), mas ainda não foram testados em larga escala e pouco interessam às transnacionais.
A transição energética que vai despontando em nome da descarbonização tem pernas curtas. Os limites naturais e ecológicos do planeta continuam sendo ignorados, pois não há lítio e nem minerais críticos suficientes, caso não modifiquemos o sistema de transporte (hoje, baseado no carro individual) e, de modo geral, o modelo de consumo.
Cada carro carrega em média 8 quilos de lítio, mas em alguns a quantidade chega a 60 quilos. Pouco adianta se replicarmos a frota automotiva existente, substituindo-a por carros elétricos. É igualmente inviável. O fato de as baterias de lítio, assim como os projetos eólicos e solares, necessitarem também de outros minerais (como o cobre, o zinco, entre outros) nos alerta para a necessidade de realizar uma reforma radical do perfil metabólico de nossa sociedade, produzindo com menos matérias-primas e energia.
Além disso, os territórios de lítio não são desertos. Na região atacamenha, vivem vários povos originários há milênios. São eles que sofrem o assédio da falsa retórica verde, ao mesmo tempo em que veem os seus modos de vida, a água e os ecossistemas em perigo.
A recente rebelião do povo de Jujuy contra a reforma (in)constitucional do governador Morales conseguiu visibilizar até que ponto a rejeição à extração de lítio tem como correlação a defesa da vida e da água. De modo exemplar, desde 2010, as comunidades de Salinas Grandes e Laguna de Guayatayoc lutam contra as novas formas assumidas pelo colonialismo energético. Denunciam a ausência de consulta (conforme estabelecido pela Convenção 169 da OIT) e exigem poder dizer “não” à extração de lítio. Uma perspectiva holística e ancestral sustenta a experiência de que o salar é “um ser vivo, doador de vida”.
A ausência de licença social, os conflitos na mineração em grande escala, aos quais se soma agora a batalha pelo lítio (entre outros bens comuns), ilustram claramente o fato de que na Argentina a democracia parece muito desvinculada da defesa do meio ambiente. Vinte anos de lutas socioambientais mostram claramente que quanto mais há extrativismo, menos há democracia.
A equação é infalível e tende a se agravar com a exacerbação do extrativismo, como aconteceu nos últimos anos em Mendoza, Chubut, Catamarca e Jujuy, onde o conluio entre governos (de qualquer signo político) e corporações se dá em plena luz do dia, buscando violentar processos cidadãos e respondendo com a repressão dos conflitos.
A importância da dimensão geopolítica e global não significa que não haja nada a fazer a nível nacional, caso realmente almejemos uma agenda de transição energética justa. Por exemplo, é possível avançar na revogação da normativa neoliberal mineira; na articulação de políticas públicas estatais com o sistema científico público, por meio de alianças regionais; no respeito à vontade coletiva dos povos. Não haverá uma transição energética justa se não respeitarmos a decisão das comunidades.
Em suma, o lítio, assim como a descarbonização em si, não é sinônimo de saída da comoditização da natureza e do extrativismo, sem passar por soluções baseadas na natureza e em uma visão alinhada com a transição justa em termos sociais, ambientais e geopolíticos. Isto exige abandonar as visões imediatistas e primário-exportadoras que predominam no país e nos perguntar que tipo de sociedade queremos construir, em um país atravessado por uma policrise e em um planeta ferido pelo colapso ambiental.
Tudo isto exige vincular democracia e meio ambiente, democracia e defesa dos bens comuns, democracia e transição ecossocial justa. Se verdadeiramente apostamos em renovar e consolidar o pacto democrático, não há outra saída.
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O lítio e o imaginário neocolonial. Artigo de Maristella Svampa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU