06 Dezembro 2023
Se pontos de inflexão forem possíveis para a questão do clima, o controle do aquecimento global ainda é uma possibilidade, explica Valérie Masson-Delmotte. Desde que haja compromisso político na direção certa.
A entrevista é de Hervé Kempf, publicada por Reporterre, 05-12-2023. A tradução é do Cepat.
Valérie Masson-Delmotte é paleoclimatóloga, membro do Conselho Superior para o Clima e foi co-presidente até julho de 2023 do grupo 1 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Nos últimos anos, novos sinais de alerta surgiram no front da ciência climática...
O que me surpreende é que os impactos nos ecossistemas ou nas sociedades humanas estejam ocorrendo mais cedo do que se previa há vários anos. Se há uma falha nos modelos climáticos, esta não é a de superestimar a acentuação dos fenômenos.
Estamos falando de pontos de inflexão. Do que se trata?
No momento estamos ao redor de uma mesa, com copos sobre ela: se empurrarmos gradativamente um deles, ele se deslocará um pouco e, depois de um tempo, estará na beirada da mesa. Se você empurrar só mais um pouquinho, ele cairá. Da mesma forma, o clima é perturbado e, num determinado processo, ultrapassaremos um limiar.
Com a Groenlândia, a calota continental da Antártida ou o oceano profundo, mesmo sem um ponto de inflexão, já estamos vendo mudanças irreversíveis a longo prazo. Onde podemos ter pontos de inflexão é na base da ancoragem da camada de gelo da Antártica, o que chamamos de linha de ancoragem. Se, em decorrência de um deslizamento mais rápido, esta linha de ancoragem se mover, então, inevitavelmente, este movimento será autossustentável e causará abruptamente uma perda adicional de gelo.
Quanto mais afetarmos o clima, maior será a possibilidade de ultrapassar estes pontos de inflexão. Isto deverá proporcionar uma motivação muito forte para conter o aquecimento.
Em que momento haverá uma irreversibilidade em nível planetário?
Já produzimos consequências a longo prazo, porque pusemos em ação as componentes lentas do clima. Mas a evolução futura da temperatura da superfície da Terra depende do que fizermos daqui em diante. Se reduzirmos agora as emissões globais de gases com efeito de estufa para 0, poderemos conter o aquecimento atual em 1,15°C em comparação com a era pré-industrial.
Só que continuamos a aumentar as emissões a uma taxa anual de 40 bilhões de toneladas de CO2 na atmosfera...
O potencial técnico permitiria reduzir pela metade as emissões globais de gases de efeito estufa, satisfazendo ao mesmo tempo as necessidades básicas de cada um. Mas isso não está sendo implementado. Muitos agentes econômicos não compreendem a urgência de transformar as práticas e de abandonar os combustíveis fósseis.
Você ministrou uma formação no outono de 2022 ao governo de Emmanuel Macron. Como foi?
O que notei foi a seriedade com que foi encarada pelo primeiro-ministro e pelos ministros que estão na linha de frente, que compreendem claramente os desafios da descarbonização da economia. Outros ministros estão ainda mais afastados desses temas. Fiz um preâmbulo e depois respondi às perguntas por vezes surpreendentes.
A mais relevante do ponto de vista deles foi a seguinte: “Entendemos que precisamos fazer transformações profundas e rápidas. Mas elas podem irritar os eleitores e, em particular, os eleitores deste governo, que são por vezes mais idosos ou com um patrimônio mais alto do que a média. Que capital político pode ser obtido com isso?” Esta pergunta veio de ministros do governo.
A discussão passou então para a construção de uma economia livre de carbono e a sua integração numa visão estratégica de criação de empregos e de desenvolvimento. Achei relevante nos afastarmos da questão climática e nos perguntarmos que visão compartilhada podemos construir coletivamente.
Já teve a oportunidade de dizer a eles que, segundo a Oxfam, o 1% mais rico do planeta emite mais CO2 do que os 66% mais pobres?
Eu disse que os 10% mais ricos da população mundial são responsáveis por 30 a 40% das emissões, ao passo que metade da população mundial é responsável por apenas 15% das emissões. Houve então uma discussão sobre as implicações das mudanças climáticas na migração.
Apesar desta formação, o governo continua, por exemplo, a construir uma estrada absurda entre Toulouse e Castres...
Os governos, os líderes regionais e as autoridades locais têm valores enraizados há décadas, num modelo que já não se adapta aos desafios atuais. A implementação de objetivos de redução das emissões de gases de efeito estufa está ganhando força, mas a legislação ambiental permite que grandes projetos avancem ao mesmo tempo que é fraca nos estudos de impacto ambiental, com hipóteses por vezes fantasiosas.
Na realidade, os políticos não recusam a transformação?
Em questões substantivas, é evidente que não estamos em sintonia. Entre os três principais pilares para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, o da inovação tecnológica é a que mais agrada os políticos. Mas o pilar de ação que se centra no controle da procura, da eficiência e da sobriedade está pouco desenvolvido. Além disso, estamos assistindo ao surgimento de uma narrativa muito preocupante que opõe as elites científicas ou urbanas às necessidades das zonas rurais, quando, na realidade, estas últimas sofrerão na linha de frente as consequências de uma mudança climática.
Podemos reduzir as emissões de gases de efeito estufa sem redistribuir a riqueza?
Tenho a impressão de que o que paralisa os governos não é só isso, é também o peso dominante das classes médias nos países desenvolvidos. E, portanto, o medo de contra-reações violentas, como vimos com os Coletes Amarelos.
As políticas públicas são feitas por atores políticos que fazem escolhas, especialmente através da tributação, para favorecer este ou aquele grupo social...
Bastante. A nível internacional, também é impressionante. Recentemente investiguei os atores que financiam a pesquisa sobre a manipulação deliberada do clima, a geoengenharia solar. São fundações privadas de bilionários estadunidenses da tecnologia que se unem aos interesses de bilionários que investem em combustíveis fósseis. É uma espécie de álibi que eles dão a si mesmos para não agirem sobre os determinantes das emissões de gases de efeito estufa.
Como podemos fazê-los evoluir, se é que isso é possível?
Esta é a questão fundamental. A sua visão das coisas é preservar os estilos de vida ultra-emissores durante o maior tempo possível.
O que fazer se isso não mudar?
Toda a força do marketing nos leva a adotar esse tipo de estilo de vida absolutamente insustentável. O país anfitrião da COP28, por exemplo, os Emirados, além de ser um grande ator na exploração de combustíveis fósseis, joga com todas as forças do consumismo e continua a transmitir esse imaginário.
Na Argentina, acaba de ser eleito um presidente neoliberal e cético em relação ao clima. Existe uma forte possibilidade de que Donald Trump, outro cético climático, retorne à presidência nos Estados Unidos. Na França, o Rassemblement National poderá chegar ao governo. Como podemos interpretar esta recusa deliberada da realidade das mudanças climáticas?
Integrá-la colocaria em xeque os valores, os privilégios e a visão ideológica que estas pessoas possuem. Se tomarmos como exemplo a situação na Argentina, temos observado uma explosão das desigualdades e de imensa pobreza nos últimos tempos. E entre os determinantes desta grave situação estão as ondas de calor e as grandes estiagens que afetaram os rendimentos agrícolas, que são um dos setores econômicos fortes do país.
A população já não confia nos governos, digamos progressistas, para satisfazer as suas necessidades, mesmo que soluções como a privatização da água ou do sistema de saúde não respondam aos problemas dos mais pobres.
Além disso, o que me impressiona é a importância do poder político. Desempenha um papel fundamental na evolução da tributação, dos modelos energéticos e agrícolas, do comércio e das regras do jogo. O exemplo mais marcante é o do Brasil, que conseguiu frear o desmatamento da Amazônia. Bolsonaro desfez isso em poucos anos e causou um desmatamento galopante. E novamente, [com Lula] este ano, recuperando o controle: o desmatamento continua significativo, mas caiu um quarto em relação ao ano anterior. Isto mostra a importância das personalidades no poder, o seu compromisso e os seus valores.
Como podemos reduzir coletivamente o consumo de energia e materiais?
Construímos uma espécie de paz social na França, como em muitos países, sobre o consumo. O desafio é poder dizer: vamos fazer um esforço coletivo, ele deve ser compartilhado, então será maior para quem tem maiores recursos. O esforço deve ser visto como justo e deve enfatizar o controle do consumo.
Quando você era uma jovem pesquisadora, teve uma vertigem ao tomar consciência da influência da atividade humana no clima. Você sente a mesma vertigem hoje?
Temos de ser capazes de ver o que foi conquistado: as trajetórias de um aumento acentuado das emissões de gases de efeito estufa são, na verdade, menos plausíveis. Poderíamos até ver o início de um ligeiro declínio. Mas isto não é proporcional à redução acentuada que seria necessária para limitar a escalada dos riscos climáticos. As coisas estão avançando, mas não rápido o suficiente.
Atualmente, num contexto de conflito, o aumento das despesas militares em todo o mundo prejudicará a capacidade dos governos para iniciar transições e prejudicará a capacidade de enfrentar os riscos climáticos.
Diante da ascensão dos nacionalismos associados à visão de uma utilização crescente de energia fóssil, as forças progressistas têm dificuldade em se coordenar. O grande desafio agora é mostrar alternativas possíveis em escala suficiente e que sejam desejáveis.
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“Os impactos das mudanças climáticas estão ocorrendo mais cedo do que se esperava”. Entrevista com Valérie Masson-Delmotte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU