05 Dezembro 2023
Esta minha entrevista com Primo Levi para l'Espresso remonta a um tempo distante, 1984, e ainda assim impressiona pela sua visão e coragem intelectual, a ponto de parecer atual. Dois anos antes, Levi havia condenado a invasão israelense do Líbano. Ele concordou com relutância, mas com meticuloso cuidado, voltar ao assunto quando no governo de Israel foi readmitido Ariel Sharon, mesmo sendo reconhecido indiretamente como responsável pelo massacre de Sabra e Shatila. O texto total do diálogo é publicado pela Einaudi nas Opere complete de Primo Levi e, online, por Doppiozero.com.
"Acabei por me convencer de que o papel de Israel como centro unificador do judaísmo agora – sublinho o 'agora' – está em uma fase de eclipse. É, portanto, necessário que o centro de gravidade do judaísmo se inverta e retorne fora de Israel, retorne a nós, judeus da Diáspora, que temos a tarefa de lembrar aos nossos amigos israelenses a linha judaica da tolerância".
A entrevista com Primo Levi é de Gad Lerner, publicada por Il Fatto Quotidiano, 01-12-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Por que, Dr. Levi? Talvez perceba o retorno do falcão da politica Sharon como uma ruptura, como uma ameaça?
Não falaria de ruptura, não creio que estejamos perante uma involução irreversível. Afinal a degradação da vida política não é um fenômeno apenas israelense. O ofuscamento dos ideais se registra em todo o mundo. Certo, há uma piora da qualidade de Israel, mas não vamos esquecer que é um país dotado de uma agilidade, inclusive intelectual, anômala, onde acontece em um ano o que em outros lugares acontece em dez.
O que lhe preocupa, então? Talvez a ascensão do rabino Meir Kahane, aquele que defende a expulsão de toda a população árabe da Terra Prometida, aquele que fez propaganda de si mesmo com um comercial de televisão em que se veem jorros de sangue pingar sobre uma pedra de mármore?
Kahane é apenas um ponto fora da curva, tenho certeza disso. Se não surgirem novos traumas, a sua força política está destinada a extinguir-se. Alguém poderia objetar: Hitler também era um ponto fora da curva em 1923. Respondo que ninguém pode prever o futuro, mas não vejo Israel no caminho do fanatismo de Kahane. Vamos lá, não é racismo afirmar que os judeus não são alemães! Para se tornar racista, um país deve ser compacto, tender a tornar-se um bloco maciço, uniforme, manobrável (…).
Não é, portanto, a difusão da intolerância aos árabes a fonte das suas preocupações?
Eu poderia responder que nos últimos tempos Israel também vive um fenômeno que infelizmente não chama a atenção: está ocorrendo nas universidades e nos hospitais uma integração vasta e profunda entre árabes e judeus israelenses (…). O discurso é diferente para o milhão e meio de palestinos da Cisjordânia ocupada.
Justamente. Em seu delírio, o rabino Kahane coloca um problema que angustia muitos israelenses: de acordo com as atuais taxas de natalidade, os árabes se tornarão maioria numérica até o ano 2000 (…). Então, diz Kahane, antes daquele dia Israel deverá deixar de ser uma democracia, para salvaguardar a sua identidade judaica.
Essas projeções demográficas são muito questionáveis, ninguém pode fazer profecias sensatas para além de cinco anos. Pelo que sei, por exemplo, a taxa de natalidade dos judeus israelenses está em aumento, enquanto a dos árabes israelenses decresce. A situação na Cisjordânia é muito diferente, o que deveria induzir os governantes israelenses a retirarem-se rapidamente dos territórios ocupados (…).
Então, para o que a angústia, doutor Levi? A que se refere quando fala de degradação da vida política israelense?
(…) Aludo sobretudo ao fato de que antes das eleições foram assumidas algumas teses francamente repugnantes com o único propósito de ganhar votos. Nem isso está acontecendo apenas em Israel, mas talvez nós estejamos mal-acostumados. Estamos acostumados ao Israel país dos milagres, ao Israel de 1948, do sionismo que coincide com uma determinada ideia de socialismo. Agora assistimos a uma degradação que é uma normalização.
Israel está se tornando, infelizmente, um país normal. Além disso, sendo um país do Oriente Médio, tende a tornar-se bastante semelhante às outras nações daquela região. Por exemplo, pode-se temer o contágio entre o khomeinismo islâmico e a propagação do fundamentalismo religioso em Israel, mesmo que em perspectiva, não vejo as massas israelenses se prostrando diante de um novo aiatolá, seja ele Kahane ou o próprio Sharon.
Não acredita que tendo nascido em maioria no seu Estado, os judeus de Israel já tenham mudado em relação aos da Diáspora, que sempre estiveram acostumados a sentir-se “minoria” no país em que vivem, moldados por sua própria “diversidade”? (…)
É um futuro previsível. Acredito que cabe a nós, judeus da Diáspora, combater. Lembrar aos nossos amigos israelenses que ser judeus significa outra coisa. Guardar com zelo a linha judaica da tolerância. É claro que percebo que estou tocando num ponto crucial, ou seja, o questionamento: onde está hoje o centro de gravidade do judaísmo?
Pelo menos de 1948 em diante as principais instituições sionistas não têm dúvidas: o centro de gravidade é Israel.
Não, pensei muito nisso: o centro de gravidade está na Diáspora, está novamente na Diáspora. Eu, um judeu da Diáspora, muito mais italiano do que judeu, preferiria que o centro de gravidade do judaísmo permanecesse fora de Israel.
Isso poderia soar como o anúncio de seu afastamento da nação israelense pela forma como mudou.
De forma alguma, é o desenvolvimento de uma relação profunda e passional. Eu apenas acredito que a corrente atual do judaísmo seria melhor preservada em outro lugar do que em Israel. A própria cultura judaica, especialmente aquela ashkenazi, está mais viva em outros lugares, nos Estados Unidos por exemplo, onde é até determinante.
Pelo que está falando, parece que estar na Diáspora, isto é, continuar a ser uma comunidade minoritária, poderia quase ser uma condição obrigatória para perpetuar a identidade judaica (…)?
Eu diria que o melhor da cultura judaica está ligado ao fato de ser dispersa, policêntrica. Ao atribuir aos judeus da Diáspora a tarefa de educar os israelenses aos valores do judaísmo, você atrairá muitas reações furiosas. Não era o contrário? Não era Israel que deveria infundir força e segurança em todos os judeus do mundo?
Infelizmente temos que falar em uma inversão. Da fonte de onde hauriam força os judeus do Diáspora, hoje tiram motivos de reflexão e aflições. É por isso que falo de eclipse, espero momentânea, do papel de Israel como centro unificador do judaísmo. Devemos apoiar Israel, como também nos pedem as suas sedes diplomáticas, mas também devemos fazer com que sinta o peso numérico, cultural, tradicional e até econômico da Diáspora. Temos o poder e também o dever de influir, em certa medida, na política israelense.
Em que direção?
(…) Acredito que deveria ser pedida a retirada do Líbano. Igualmente urgente é bloquear novos assentamentos judaicos nos territórios ocupados. Depois disso, como eu lhe dizia, deve ser buscada de forma cautelosa mas decidida, a retirada da Cisjordânia e de Gaza (…).
Dois anos atrás, após a invasão do Líbano, você deu origem junto a outros judeus italianos a um protesto público contra o governo israelense. É a indignação, portanto, a força motriz que pode unir os judeus da Diáspora?
Estamos falando, mais pacatamente, de desaprovação. Sim, essa é uma força motriz, embora eu sempre tenha idealmente na minha frente o israelense que me repreende "é fácil para ti, judeu italiano sentado na poltrona, decidir por nós!”. Mesmo assim eu insisto. A história da Diáspora foi, sim, uma história de perseguições, mas foi também uma história de trocas e de relações interétnicas, portanto uma escola de tolerância (...).
A relação com as instituições judaicas e israelenses é difícil para alguém que pensa como o senhor?
Eu falaria de uma relação afetuosa e polêmica. Certamente profunda. Porque estou convencido de que Israel deve ser defendido, acredito na dolorosa necessidade de um exército eficiente. Mas estou convencido de que também seria bom para o governo israelense se confrontar com um nosso apoio sempre condicional.
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“Israel, se isto é um Estado”. A histórica entrevista de Gad Lerner. Entrevista com Primo Levi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU