27 Novembro 2023
Bolsonaro e Milei representam o fundo do poço de uma esquerda envelhecida, que não soube responder unida à retomada do fascismo.
O artigo é de Tarso Genro, já foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil, publicado por Sul21, 26-11-2023.
Segundo ele, "a súbita aparição de duas personalidades políticas de extrema direita neste território, Javier Milei e Bolsonaro, só foram possíveis – entre outros fatores – principalmente pela nossa incapacidade de compreender uma nova situação política e geopolítica, que tornaria irrelevantes as utopias cansadas da revolução democrático-social, já então substituídas pela barbárie combativa contra o establishment".
O futuro Presidente de um país culto e educado como a Argentina, considerados os padrões sul-americanos, confessou – entre outros atributos – inspirar-se em conversas com seu cão morto há dez anos, através de um parapsicólogo (certamente de alta capacidade cognitiva) e após confirmou que vai privatizar completamente a educação pública e a prestação de serviços de saúde, bem como extinguir o Banco Central do país.
O ex-Presidente do Brasil elegeu-se convidando seus eleitores a assassinarem seus adversários, afirmou que vinha para destruir, governou exercendo ilegalmente a medicina – quebrando todos os protocolos de combate a uma pandemia – e ajudando – assim – a matar no mínimo 300 mil pessoas com a sua campanha espúria contra a vacinação.
Ambos os Presidentes só venceram porque tiveram votações massivas nas classes médias, quase unânime nos setores mais ricos – empresariais ou não – bem como tiveram votações massivas em setores da população mais pobres, mais explorados e oprimidos, e também nos grupos sociais mais educados.
Tal fenômeno ocorreu tanto nas regiões em que a sociedade é mais ancorada nos patrimônios culturais da modernidade burguesa, como nos espaços que a sociedade de classes é mais fragmentada e desorganizada. Ambos tiveram um desempenho eleitoral extraordinário, com campanhas financiadas pelas “classes altas” de todas as regiões dos seus respectivos países.
Em 1989, Oscar Correas no seu monumental “El otro Kelsen” (Unam, México, pg 12) que é uma obra crítica da visão tradicional do materialismo histórico – tanto na Teoria Política como na Teoria do Direito – buscou superar a visão corrente de que bastava dirigir os “processos sociais” – a luta de classes, queria dizer – para que chegássemos na revolução: “para liquidar as classes, o direito e o Estado.”
Correas aduzia: “ao finalizar o Século XX a razão retrocede, ante a aparição de outros fatores que não haviam sido tomados em conta – por serem “metafísicos” -como a vontade de poder, o inconsciente, o desejo, o mito, conceitos todos de origem irracionalista, mas cuja presença não pode explicar-se sem (reconhecer) o fracasso da ciência e da técnica”.
Este fracasso da ciência e da técnica para promoverem abundância, atributos da ideia tanto socialista como socialdemocrata, acordaria os instintos de sobrevivência naturais da espécie humana, instando que a guerra pela vida, na América do Sul deste século 21, se tornasse uma luta selvagem de “arminhas” e motosserras, transformadas em símbolos de uma ideia narcísica de poder, que as classes “altas” passaram a comandar, como revide ao crescimento de uma esquerda já em “default”.
A súbita aparição de duas personalidades políticas de extrema direita neste território, Javier Milei e Bolsonaro, só foram possíveis – entre outros fatores – principalmente pela nossa incapacidade de compreender uma nova situação política e geopolítica, que tornaria irrelevantes as utopias cansadas da revolução democrático-social, já então substituídas pela barbárie combativa contra o establishment.
Neste contexto, uma parte da esquerda continuou crendo no velho projeto proletário, hoje sem proletariado combativo, cuja maioria não “tugiu nem mugiu” para combater – por exemplo – a reforma trabalhista, ou mesmo para defender a democracia política em vias de destruição. Uma outra parte da esquerda refugiou-se num identitarismo insuficiente, como se isso já revelasse o nascimento de uma nova história da esquerda.
Fernando Pessoa num dos seus melhores poemas diz que “há metafísica bastante em não pensar em nada”, cuja antítese poderia ser: “pensar em tudo” – só perante os fatos já realizados – pode ser uma perda grave para se ter um entendimento sólido do espírito da época. Um outro livro publicado no mesmo ano (Alec Nove, “A economia do socialismo possível”, Ática, pg.282), mostra o vazio do pensamento revolucionário ou evolucionista-democrático, presentes no fracasso da experiência democrática de Allende.
Naquela trágica e heroica crise chilena ficou manifesto que não havia “poder efetivo para planificar, nem sequer a chamada área social, pois as forças do mercado foram desmanteladas, mas não foi introduzido nenhum substituto, criando assim o pior dos dois mundos”. Foi a socialização da carência, com a queda da oferta dos bens necessários a uma vida digna para todos, cujo reverso bestial imediato foi um grupo de militares e civis delinquentes no poder.
Não só Bolsonaro, mas sobretudo Milei que é mais sofisticado, são o fundo do poço de uma esquerda envelhecida, que não soube responder unida à retomada do fascismo – contido nos projetos neoliberais em curso – nem à destruição dos valores democráticos da razão iluminista transformada em mitologia do mercado, como pulsação histérica de um presentes sem futuro.
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Milei está no fundo do poço de uma esquerda envelhecida. Artigo de Tarso Genro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU