06 Outubro 2023
“A relação humanidade-natureza é a causa da crise atual que, além de destruir inúmeras riquezas naturais, expõe a humanidade a ameaças existenciais. A cantilena de que ‘os pobres que têm muitos filhos’ serve claramente para desviar a atenção do fato de que são os ricos (do Norte e do Sul) os responsáveis pela catástrofe climática. O trabalho assume formas particulares de acordo com os modos sociais de produção”, escreve Daniel Tanuro, em artigo publicado originalmente por revista SITO-Students in Transition Office da Universidade Livre de Bruxelas e reproduzida por Alencontre, 01-09-2023. A tradução é do Cepat.
E conclui dizendo que “diante da crise climato-ecológica, só podemos travar a batalha devolvendo ao trabalho o seu caráter de atividade social produtora de valores de uso para satisfazer necessidades humanas reais (em oposição às necessidades humanas alienadas pelo capital produtivista/consumista)”.
“Produzir” significa “fazer aparecer”, “fazer existir”. A natureza produz, a biosfera em particular produz. Porém, na natureza podemos distinguir uma produção especificamente humana. Ela se caracteriza por cinco características principais:
1°) O Homo sapiens identifica recursos existentes em seu ambiente, toma-os e os transforma para satisfazer suas necessidades por meio de coisas que, sem sua ação, não apareceriam espontaneamente.
2°) A espécie humana mantém com o resto da natureza uma relação mediada por uma atividade específica – o “trabalho”; esta atividade usa instrumentos.
3°) O cérebro ajusta constantemente o trabalho ao seu objetivo, avalia o resultado e desenvolve sua produtividade através de novas ferramentas e/ou novas formas de organização; neste processo surgem novas necessidades.
4°) Dado que a espécie é social por natureza, o trabalho é desde o início social, o que pressupõe relações sociais, comunicação e formas sociais de organização.
5°) A evolução do processo de trabalho explica, em última análise, a evolução das formas sociais, cujas características amplas permitem distinguir modos históricos de produção da existência.
Não é preciso dizer que a produção humana surgiu da produção natural como resultado dos mecanismos da evolução. É por isso que as características mencionadas acima existem de forma embrionária em todo o resto da natureza: alguns animais criam ferramentas; alguns insetos vivem em sociedades baseadas na divisão de tarefas, etc. Contudo, a linguagem, o aperfeiçoamento constante da produtividade do trabalho e a sequência dos modos históricos de produção são características especificamente humanas.
O Homo sapiens “produz sua própria existência social”, como disse Karl Marx. A espécie humana faz obviamente parte da natureza, mas ocupa nela uma posição muito particular. O geneticista Alain Prochiantz acredita que estamos na natureza e fora dela [1]. A fórmula é paradoxal mas centra a atenção na relação humanidade-natureza, e precisamos deste enfoque para pensar “a crise ecológica”.
Precisamos dela porque a grave perturbação da relação humanidade-natureza é a causa da crise e porque, além de destruir inúmeros recursos naturais, expõe a humanidade a ameaças existenciais. Os cientistas identificaram nove parâmetros de sustentabilidade da nossa espécie na Terra. Limites relativos foram determinados para cada um destes parâmetros. São ultrapassados em seis dos nove casos (concentração de gases de efeito estufa, declínio da biodiversidade, poluição atmosférica, envenenamento por “novas entidades químicas”, degradação do solo, excesso de nitratos e fosfatos na água).
O estado da camada de ozônio estratosférico é o único parâmetro em relação ao qual os governos tomaram medidas que melhoraram a situação. Os dois últimos parâmetros são os recursos de água doce e a acidificação dos oceanos. É provável que os seus limites relativos também estejam sendo ultrapassados. Exemplo: devido à acidificação, de acordo com o IPCC, 95% das massas de coral morrerão acima de 1,5°C de aquecimento... mas este limite será alcançado em menos de 10 anos. O que farão as dezenas de milhões de pessoas cuja existência depende da riqueza destes maciços?
O angustiante aumento da catástrofe ecológica tende a fazer o jogo de certas pseudoexplicações essencialistas: a produção humana seria essencialmente destrutiva e, portanto, haveria muita gente na Terra. Obviamente não podemos negar que o Homo sapiens tem uma pegada ecológica específica, maior que a de outras espécies: vestimo-nos, alojamo-nos, preparamos a nossa comida, construímos máquinas para nos movimentar e nos comunicar uns com os outros…
A demografia, no entanto, não é a causa da destruição em curso. De acordo com o último relatório do IPCC (AR6), os 3 a 3,5 bilhões de seres humanos que mais sofrem com os impactos das mudanças climáticas são precisamente aqueles que têm menos responsabilidade histórica pelas emissões (um bom número tem mesmo nenhuma responsabilidade!) O 1% mais rico da humanidade emite mais CO2 do que os 50% mais pobres.
A cantilena de que “os pobres que têm muitos filhos” serve muito claramente para desviar a atenção do fato de que são os ricos (do Norte e do Sul) os responsáveis pela catástrofe climática. Com jatos particulares, carros de luxo, palácios faraônicos, consumo conspícuo... e investimentos produtivistas como acionistas motivados unicamente pelo lucro. Resumindo: as teorias essencialistas procuram esconder as causas sociais da crise. Elas fazem o jogo da extrema-direita racista e das políticas bárbaras de repressão aos migrantes.
Quais são essas causas? Por que a relação entre humanidade e natureza é perturbada a ponto de ameaçar a ambas? Dado que o Homo sapiens produz a sua existência social através do trabalho, é necessariamente neste âmbito que devemos procurar a resposta. Ao fazê-lo, trata-se de evitar uma variante da pseudoexplicação essencialista: não é o trabalho em si que explica a destruição ecológica, mas a forma histórica que assumiu ao longo da história recente.
Isto é facilmente demonstrável: a maioria dos cientistas considera que passamos do Holoceno para o Antropoceno. Segundo eles, os três marcadores desta mudança de era são a diminuição da biodiversidade, a proliferação de nuclídeos radioativos e o aumento do nível dos oceanos. No entanto, estes marcadores só começaram a deixar a sua marca geológica a partir de 1945. A pergunta “quais são as causas sociais da crise ecológica” leva, portanto, a outra: qual é a mudança que afetou o trabalho ao longo da história recente, e como é que esta mudança explica a explosão da catástrofe ecológica na segunda metade do século XX?
As cinco características distintivas listadas no início deste artigo se aplicam ao trabalho humano em geral. Mas o trabalho assume formas particulares dependendo dos modos sociais de produção. Grosso modo, durante a maior parte da história humana, essas formas foram determinadas pela função única ou primária do trabalho de produzir valores de uso (utilidades destinadas à satisfação das necessidades humanas). Contudo, já não é mais o caso: hoje o trabalho visa produzir bens (valores de troca) em benefício de um proprietário minoritário dos meios de produção, que acumula dinheiro através da exploração do trabalho e da pilhagem de recursos.
Esta situação é o produto de uma longa transição durante a qual a operação econômica que consiste em “vender para comprar” foi substituída pela operação econômica de “comprar para vender”. O ponto principal aqui é que “comprar para vender” só faz sentido se a quantidade de dinheiro arrecadada com a venda for maior do que a quantidade de dinheiro gasto na compra. A diferença constitui a “mais-valia”. Esta mais-valia, por sua vez, só faz sentido se for reinvestida para gerar ainda mais mais-valia.
Portanto, o objetivo concreto da troca – satisfazer uma necessidade – é gradualmente suplantado por um objetivo abstrato – acumular dinheiro. Esta é a definição de capital: uma soma de dinheiro que busca converter-se em mais dinheiro. É óbvio que este capital visa inevitavelmente produzir cada vez mais, o que implica também consumir cada vez mais. Este modo de produção é produtivista (e consumista) por natureza.
Inicialmente circunscrita ao comércio de longa distância e às finanças, a dinâmica produtivista do capital cresceu em alcance e profundidade ao longo da história. Um passo decisivo foi dado quando a força de trabalho se tornou uma mercadoria. Esta mercantilização foi imposta pela apropriação dos meios de produção: as populações camponesas expulsas da terra foram obrigadas a trabalhar para os proprietários, em troca de um salário. Assim, através de uma longa transformação, iniciada no século XV, o capital foi cada vez mais além da esfera do comércio para assumir o controle da produção.
De repente, foram lançadas as bases sociais para que tudo, absolutamente tudo, se tornasse mercadoria. Com a Revolução Industrial, iniciada no final do século XVIII na Inglaterra, o capital bulímico uniu-se aos combustíveis fósseis, graças aos quais conquistou a Terra inteira [2]. Foi assim que, em menos de dois séculos, o produtivismo capitalista mudou a face do mundo e iniciou a catástrofe ecológica global que cresce à nossa volta.
Esta catástrofe não pode mais ser evitada. O máximo que podemos fazer é tentar evitar que se transforme num cataclismo. Mas isto só é possível afastando-nos da lógica produtivista e, portanto, emancipando o trabalho das restrições do capital. O problema é que esta lógica organiza hoje a atividade da grande maioria da população mundial. Privados de qualquer autonomia, dependem inteiramente da venda da sua força de trabalho para sobreviver. A principal questão estratégica da luta ecológica é, portanto, uma questão social, que é formulada da seguinte forma: como subtrair o mundo do trabalho da amarra capitalista do lucro?
O problema é tanto mais espinhoso quanto o mundo do trabalho está na defensiva e já não é suficiente para impedir o crescimento capitalista: a catástrofe assumiu tal magnitude que um declínio global na produção material e nos transportes tornou-se essencial, particularmente para manter o aquecimento abaixo de 1,5°C, conforme decidido na COP21 em Paris. Como podemos trazer para esta luta trabalhadores consumidos pelo individualismo, empurrados para a defensiva por 40 anos de neoliberalismo brutal, e que temem – com razão! – que a chamada “transição energética” capitalista ocorre à custa dos seus empregos e dos seus salários? That’s the question…
As “Soulèvements de la Terre” (Revoltas da Terra) não são uma exceção francesa. Nos últimos anos, assistimos ao desenvolvimento de lutas radicais em quase toda a parte contra a destruição ecológica capitalista [3]. Com raras exceções, os trabalhadores/as e suas organizações sindicais estão ausentes. Estas lutas são travadas pelos jovens, pelos povos indígenas e pelos pequenos agricultores – em particular pelas mulheres, na linha da frente destes três grupos sociais.
Ao se unirem, estes componentes podem criar um equilíbrio de poder e, em certos casos, fazer recuar os capitalistas e os governos ao seu serviço. Mas a batalha só pode ser vencida, em última análise, devolvendo ao trabalho o seu caráter de atividade social produtora de valores de uso para satisfazer necessidades humanas reais (em oposição às necessidades humanas alienadas pelo capital produtivista/consumista).
O “capitalismo verde” é um engodo. Parar a catástrofe exige, pelo contrário, a abolição do capitalismo. Essa necessidade é compreendida por cada vez mais pessoas. O anticapitalismo é uma bússola estratégica. Nesta base, os movimentos ambientais radicais devem tentar articular a sua radicalidade legítima com as abordagens destinadas a atrair setores do mundo do trabalho para uma luta comum por um projeto social e ecológico. Esquematicamente, essas abordagens têm dois aspectos:
— em primeiro lugar, o apoio sistemático aos trabalhadores que lutam pelas suas reivindicações sociais, porque só nas lutas é que se pode desenvolver uma consciência ecossocial comum a todos os movimentos sociais;
— em segundo lugar, a invenção de reivindicações que respondam às necessidades sociais e ecológicas, como, por exemplo, a redução radical do tempo de trabalho sem perda de salários, a socialização da energia, bem como do crédito, e a extensão da gratuidade.
A dificuldade é enorme, mas não há outro caminho. A direita, em crise de legitimidade, está se deslocando cada vez mais para a extrema direita, particularmente ao designar demagogicamente os ativistas da ecologia radical como inimigos do emprego e dos padrões de vida, muitas vezes como “ecoterroristas” ou, além disso, como “wokistas”.
Ela espera assim atrair eleitores das classes trabalhadoras, para submetê-los ainda mais às suas políticas antissociais. Trump, Darmanin, Bouchez [Georges-Louis Bouchez, presidente do Movimento Reformista Belga, expressou o seu “respeito” por Zemmour, entre outras explosões reacionárias] são alguns exemplos deste perigoso fenômeno. Para fazer-lhe frente, é essencial uma estratégia ecossocialista.
[1] Alain Prochiantz, Singe toi-même, Ed. Odile Jacob, 2019.
[2] Ver sobre este tema: Le premier âge du capitalisme (1415-1763), 3 volumes, Edições Page Deux (Lausanne) e Syllepse (Paris), 2018-2019. (Ed.)
[3] Para uma visão geral, ver o trabalho que coordenei com Michaël Löwy, Luttes écologiques et sociales dans le monde. Allier le vert et le rouge, Ed. Textuel, Paris, 2021.
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Produção, trabalho e crise ecológica. Artigo de Daniel Tanuro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU