23 Setembro 2023
“As reivindicações e a memória dos povos são esvaziadas, enquanto afirmam que os defendem”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 22-09-2023. A tradução é do Cepat.
Quando o nazismo se espalhava, Walter Benjamin escreveu em seu célebre Sobre o Conceito de História: “Nem mesmo os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não parou de vencer”.
Nesses dias, acontece algo paradoxal: a memória de Salvador Allende está sendo adulterada, não pelos seus inimigos pinochetistas, mas por aqueles que se proclamam seus seguidores. O presidente Gabriel Boric está à frente de uma ampla operação para transformar Allende em um ícone do consenso entre partidos do sistema.
O escritor chileno Dauno Totoro, em entrevista à Telesur, desvela esta operação em que Boric tenta reencarnar Allende, “reproduzindo seus passos, seus movimentos, tentando se tornar a figura de Salvador Allende […] é a extensão de algo muito mais sério que tem a ver com a história profunda deste país e os graves acontecimentos que ocorreram durante estes 50 anos”.
Argumenta que foi construído um Allende semelhante a um “ícone cristão”, que se torna “o cordeiro de Deus que lava os pecados do mundo”; “que morre por nós e nos liberta das culpas”. Allende se transformou em uma espécie de redentor quase sobrenatural, que transforma o povo em sujeitos passivos de seus milagres.
Totoro analisa como as últimas palavras de Allende foram manipuladas. Segundo a versão oficial, disse: “Cedo ou tarde, vão se abrir as grandes alamedas por onde o homem livre passará…”. Contudo, o que Allende disse aos operários, a quem invocava, é “…abrirão”, vocês vão abrir as alamedas.
No primeiro caso, é algo mágico. “Vão se abrir” sozinhas? No segundo, é a luta que determina.
Um pequeno truque que modifica tudo, que coloca no centro, no lugar da classe trabalhadora, um ser mítico. Por isso, Totoro conclui: “Transformaram Allende em um produto de exculpação para toda a classe política”.
Boric é peça essencial desta manobra histórico-política, que afirma que Sebastián Piñera é um “verdadeiro democrata”, o mesmo que, durante a revolta de 2019, declarou guerra ao povo.
No entanto, Allende não foi um “cordeiro de Deus”, nem uma estrela midiática, mas, sim, o presidente comprometido que, em sua última aparição, portava uma metralhadora e um capacete para defender o palácio do governo. Essas imagens foram substituídas por outras, como a exposição de seus sapatos em uma vitrine “para que as pessoas venham adorá-los”, acrescenta Totoro.
O escritor não ignora os erros de Allende (ao contrário daqueles que, agora, suprimem dele a metralhadora), já que acreditou em um país que não existia e, em particular, imaginou um “exército republicano” respeitador da legalidade.
O objetivo final desta operação é construir um consenso histórico sem profundidade, “um consenso vazio, sem história, sem futuro, que nos brutaliza e que só pode ser rompido fisicamente, ou seja, com revolta”. É disso que se trata: mostrar um Allende vazio de conteúdo, que serve aos propósitos de uma democracia que nada tem a ver com aquela pela qual o ex-presidente deu a vida, e para afastar a ideia da revolta popular do cenário e do imaginário políticos.
A imagem de que cometeu suicídio vai na mesma direção, destinada a desmoralizar seus seguidores. Gabriel García Márquez escreveu sobre a morte de Allende, em 2003, quando completaram-se 30 anos do golpe: “Allende morreu em uma troca de tiros” com membros do Exército, carregando a metralhadora que Fidel lhe havia dado.
Toda essa história foi apagada porque, como disse o próprio Allende, tratava-se de dar “uma lição de moral” ao entregar sua vida. Atitude ética na contracorrente da política atual assentada no consenso, na unidade. Contra o que ou contra quem? Contra a revolta e aqueles que persistem em sua rebeldia, como setores do povo mapuche e as juventudes que foram reprimidos no mesmo 11 de setembro, por marcarem distância dos festejos oficiais.
As coisas não param por aí. Esta montagem faz parte do cotidiano do capitalismo e, muito particularmente, dos governos progressistas.
Lula colocou uma mulher indígena à frente do Ministério dos Povos Indígenas, mas seus aliados do agronegócio assassinam diariamente membros desses mesmos povos, como aconteceu esta semana com as autoridades espirituais Sebastiana e Rufino, na mais absoluta impunidade.
Na Colômbia do progressista Gustavo Petro, o paramilitarismo continua sendo a política do Estado nos territórios. Em 2022, foram assassinados 215 líderes sociais e 60 ambientalistas.
Desse modo, as reivindicações e a memória dos povos são esvaziadas, enquanto afirmam que os defendem.
Nesse projeto de esvaziar a memória para continuar governando para o capital, que estratégia o governo mexicano está traçando para os povos originários, diante do 30º aniversário do levante zapatista?
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A interminável disputa pela memória. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU