11 Setembro 2023
Um estudo publicado na revista científica "Nature" propõe redefinir os conceitos de desenvolvimento e bem-estar numa perspectiva diferente da do crescimento econômico para um futuro mais justo e sustentável.
A reportagem é de Andrea J. Arratibel, publicada por El País, 06-09-2023.
A relação que desenvolvemos com a natureza, a forma como a percebemos e com ela interagimos, exige mudanças urgentes para a preservar. Acreditar, por exemplo, que o valor de um mogno está no preço que a sua preciosa madeira obterá no mercado, e não no facto de constituir um elemento de convivência e de beleza em si, faz parte da origem das alterações climáticas que enfrentamos. Isto é afirmado em um estudo revelador publicado na revista Nature. O trabalho, no qual participaram mais de 80 investigadores da Plataforma Intergovernamental de Ciência e Política sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistémicos (IPBES), conclui como aqueles princípios que subestimam a natureza - aqueles que regem a maioria das sociedades -, conduziram o mundo à atual situação ambiental. crise.
“Existem muitas formas de compreender e ver a natureza, mas apenas uma foi priorizada, a comercial”, explica Patricia Balvanera, bióloga do Instituto de Pesquisas de Ecossistemas (IIES) da UNAM e uma das autoras do trabalho que identificou quatro abordagens “centradas em valores” que podem promover as condições necessárias para uma mudança transformadora rumo a um futuro mais justo e sustentável.
A primeira perspectiva proposta pelo estudo consiste em reconhecer a diversidade de valores que existem em relação à natureza. Como argumentam os autores, vivemos numa sociedade em que os princípios ambientais baseados no mercado tendem a prevalecer sobre outros princípios não mercantis que têm inúmeras contribuições dos ecossistemas para as pessoas e que foram ignorados no último século.
Após a recuperação da Segunda Guerra Mundial, mas especialmente a partir da década de 1980, foi encorajada a ideia de que a vida dos seres humanos e o desenvolvimento econômico dependiam da natureza. “O que promoveu a perspectiva de olhá-lo em relação à forma como vivemos dele, de assumir o ambiente natural como uma fábrica de tudo o que precisamos”, explica Balvanera. Segundo o cientista, essa visão teve implicações diferentes. “Por um lado, fez-nos conceber a natureza como algo estranho para nós, que está lá fora. Também levou ao estabelecimento de princípios em torno da prosperidade das populações humanas numa perspectiva materialista, que assume a natureza como um mero instrumento de bem-estar”, afirma.
De acordo com o estudo que co-liderou, baseado numa revisão de mais de 50.000 publicações científicas, documentos políticos e diversas fontes baseadas no conhecimento dos povos indígenas e comunidades locais, esta predominância contínua de um conjunto limitado de valores provou ser insuficiente para resolver a dupla crise da biodiversidade e das alterações climáticas. Como solução para este declínio, o trabalho propõe uma segunda abordagem: incorporar outros princípios não mercantis na tomada de decisões em todos os sectores.
“Nas negociações globais e locais tem havido muita ênfase na biodiversidade, mas a natureza é muito mais do que isso, inclui os seres vivos e os que não o são, bem como os vários vínculos que podemos estabelecer com ela”, explica Balvanera. Para quem a concepção da natureza “como mera fábrica de insumos nos levou ao estabelecimento de indicadores de bem-estar voltados exclusivamente para o quanto ela pode nos oferecer, a quantidade de peixes e de madeira, de plantas medicinais, a maior ou menor regulação climática que o planeta pode suportar.”
Para avançarmos para futuros mais justos e sustentáveis, é essencial, conclui o estudo, “romper com a predominância dos benefícios de curto prazo e do crescimento económico a todo custo”, que se manteve em detrimento da inclusão dos numerosos valores da natureza nas decisões económicas e políticas. Para fazer isso, os cientistas propõem uma terceira abordagem que visa reformar as iniciativas jurídicas e os quadros institucionais que existem hoje.
Como afirma o estudo, apesar dos acordos para incorporar os valores da natureza em ações, como o Quadro Global de Biodiversidade Kunming-Montreal (GBF), um acordo que visa adotar um plano global para salvar a biodiversidade em declínio do planeta, e De acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, as políticas ambientais e de desenvolvimento predominantes ainda dão prioridade a um subconjunto de valores, especialmente os comerciais, ignorando outras relações com o ambiente.
“Dadas as condições de pobreza e desigualdade, muitos países como o México decidiram tornar-se fábricas de mercadorias para exportar os seus recursos. Um exemplo claro são os benefícios que o Canadá colhe da mineração extrativa no território, ou das plantações de dendezeiros que enriquecem as empresas transnacionais ao custo da destruição de paisagens", explica Balvanera, um dos autores do estudo que revela como uma "crise de valores” apoia muitos outros interligados: a perda de biodiversidade e as mudanças climáticas, o surgimento de pandemias e injustiças socioambientais…
Para acabar com esta desigualdade e apoiar valores alinhados com a sustentabilidade, a quarta abordagem proposta pelo relatório exige a necessidade de mudar as normas sociais e equilibrar os valores que sustentam as estruturas sociais, promovendo princípios como cuidado, solidariedade, responsabilidade, reciprocidade e justiça, tanto para com as pessoas como para com a natureza.
“Ao longo desta avaliação percebemos que a forma como é concebida a nossa relação com a natureza determina sobremaneira a forma como as regras da sociedade são propostas e priorizadas”, destaca Balvanera. Conforme explica, as nações podem dar preferência a valores instrumentais, quando a natureza é percebida como um bem económico, por exemplo, ou a outros valores socioculturais. “Aquelas que estão abrangidas pelo conceito de Mãe Terra, conjunto de princípios que regem os comportamentos de determinadas comunidades, e que se refletem nas suas narrativas e canções.” Enquanto “alguns priorizam o lucro e vendem a natureza por 3 pesos, há populações que defendem as suas raízes no território e o seu conhecimento sobre ele”, defende o biólogo.
São precisamente estes últimos os mais desprotegidos e os mais vulneráveis aos efeitos das alterações climáticas. “Os valores em torno da natureza dos povos indígenas e das comunidades locais não são considerados. Esses grupos também não participam da tomada de decisões, embora sejam os que arcam com os maiores custos da degradação ambiental”, afirma Balvanera. Se quisermos um futuro melhor, conclui, “é urgente questionar a supremacia do desenvolvimento económico que rege o mundo para repensar outras formas de bem-estar e desenvolvimento, para influenciar a raiz do sistema a partir de uma interacção homem-natureza que nos leva a caminhos muito mais justos e sustentáveis.”
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“A visão comercial da natureza foi priorizada”: a crise de valores por trás das mudanças climáticas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU