12 Julho 2023
As últimas grandes mobilizações contra a guerra no Ocidente remontam a 2003, quando os Estados Unidos decidiram invadir o Iraque. Desde então, as intervenções militares se multiplicaram com a complacência e até mesmo o apoio de muitos movimentos de esquerda. O exemplo mais recente é a guerra na Ucrânia, com muitos “progressistas” se unindo à OTAN para enviar armas e prolongar o conflito.
Com Michel Collon, Saïd Bouamama analisou essa situação no livro La gauche et la guerre: analyse d'une capitulation idéologique (A esquerda e a guerra: análise de uma capitulação ideológica, em tradução livre). O sociólogo, que encontramos todas as semanas em seu canal no YouTube Le monde vu d'en bas, repassa as causas e consequências dessa guinada da esquerda a favor da guerra.
A entrevista é de Robin Delobel, publicada por Rebelión, 11-07-2023. A tradução é do Cepat.
Por que algumas correntes da esquerda, muito críticas às questões econômicas, sociais e ecológicas, seguem a tendência dominante em relação às questões internacionais?
Há dois fatores essenciais, o histórico e o ideológico. O fator histórico, que continua sendo subestimado de forma generalizada, é o impacto da história colonial sobre a esquerda e a extrema esquerda. Para compreender por que o anticolonialismo e o anti-imperialismo sempre foram pontos fracos dessas correntes, é preciso entender que operações tão vastas como a colonização não poderiam ser realizadas em que a oposição estivesse imbuída da ideologia dominante.
Com efeito, a ideia de uma missão civilizadora também estava presente na mentalidade da esquerda, é verdade que de uma forma diferente da direita. E a ruptura com o espaço mental colonial não chegou até o fim. Além disso, na época das conquistas coloniais, não houve uma verdadeira oposição à colonização, tampouco na esquerda, com exceção de alguns pequenos grupos que se opunham verdadeiramente. No seio do movimento operário, não houve uma resposta em massa. No melhor dos casos, o que houve foi a ideia de que a colonização deveria ser mais humanitária, que o capitalismo era ruim porque colonizava mal.
Uma ideia que, hoje, não é mais tão difundida na esquerda...
É verdade, mas deixou um legado: as questões internacionais, a questão da colonização e do imperialismo ficam em segundo plano. São questões incômodas para a maioria da esquerda. Não fala delas. E se o debate midiático obriga a esquerda a assumir uma posição, ela geralmente apoia as intervenções exteriores.
Esse é o fator histórico. E o fator ideológico?
Com uma campanha cuidadosamente elaborada para romper com todas as referências usuais de tomada de posição política, nos anos 1980 e 1990, subestima-se o que ocorreu dentro das grandes potências. Assim, um relatório da CIA afirma que é preciso apoiar financeiramente e de forma opaca revistas, escritores e pesquisadores que tendem a negar a noção de sistema social em seu conjunto.
Essa campanha permitiu estabelecer uma infinidade de teorias que podem estar corretas sobre esta ou aquela dominação, mas que nunca as relacionam com o funcionamento geral da sociedade, com o sistema capitalista dominante e com as classes sociais. No entanto, essas teorias foram sendo progressivamente difundidas e influenciaram as camadas contestatórias da sociedade, a tal ponto que hoje há pessoas que condenam o racismo e o sexismo sem relacionar essas questões com o funcionamento da sociedade capitalista.
Da mesma forma, não é possível entender as questões internacionais sem compreender os interesses das classes dominantes das grandes potências que colonizam, saqueiam e interferem nos países do Sul. Quando se une esse legado histórico com essa campanha ideológica, tem-se o resultado atual: pessoas de esquerda que deveriam condenar as guerras, mas acabam apoiando-as, como, por exemplo, na Líbia.
Quanto às pessoas refugiadas provenientes da Líbia, muitos jornalistas mencionam um caos que parece ter caído do céu. Parece que se esquece a responsabilidade da OTAN e da França, uma responsabilidade que, no entanto, é fundamental. Como se explica essa permanente amnésia?
Há muitos fatores que impedem que o sistema midiático relate a realidade como ela é, o que não significa que todos os jornalistas estejam corrompidos. Contudo, há fatores econômicos, como a busca de audiência, que faz prevalecer o imediato, há fatores ideológicos, fatores sociológicos baseados no interesse próprio e na necessidade de reconhecimento... Toda uma série de fatores transformou o sistema midiático em um aparelho ideológico do Estado a serviço da guerra.
Precisamente, na introdução de seu livro “La gauche et la guerre”, você recorda que, diferente do Iraque, a Líbia não provocou grandes mobilizações contra a guerra. Em 2003, Jacques Chirac se opôs à intervenção dos Estados Unidos e, na sequência, os meios de comunicação franceses criticaram a guerra. Tudo isso facilitou as mobilizações da época?
Sim, e isso demonstra mais uma vez a fragilidade do anti-imperialismo da esquerda e da extrema esquerda. É preciso questionar se, no caso do Iraque, o fato de o imperialismo francês ter entrado em desacordo com o imperialismo estadunidense permitiu se posicionar contra a guerra. Contudo, quando o próprio governo francês está envolvido no conflito, como na Líbia, encontramos dentro da esquerda e na extrema esquerda posições mais ambíguas e, inclusive, favoráveis à guerra.
Além disso, escreve em seu livro: “As guerras de nossos próprios imperialismos são as que menos suscitam indignação”. Temos também o exemplo do Mali. Quando François Hollande empreendeu a guerra neste país, recebeu elogios e, inclusive, os jornalistas consideraram que, enfim, “usava seu traje de presidente”.
Absolutamente. É ainda mais problemático e novo se nos lembrarmos das referências históricas, por exemplo, da família comunista, por exemplo. Um de seus grandes princípios era que é preciso se opor ao próprio imperialismo antes de se opor aos outros, porque é sobre o próprio imperialismo que se pode agir para fazê-lo parar a guerra. A eficiência é maior onde se vive.
No entanto, hoje, a situação está totalmente invertida. Critica-se a política externa de outros países, mas se guarda silêncio e, inclusive, há complacência com o imperialismo da França, no caso dos franceses, ou da Bélgica, no caso dos belgas. Por outro lado, a mesma coisa acontece com a violência policial. Muitos artigos criticam essa violência nos Estados Unidos, mas é muito mais difícil falar sobre violência policial em casa.
Como fator ideológico, não há também a luta contra o pseudoconspiracionismo que vem sendo travado desde os anos 2000? Recentemente, o caso do fundo Marianne revelou que o Estado pagou personalidades e associações – algumas delas atacaram o coletivo Investig'Action – para realizarem um trabalho de propaganda política.
Para entender o surgimento desse discurso global sobre a conspiração, é preciso situá-lo em nossa sequência histórica. Com o desaparecimento da União Soviética e o fim dos equilíbrios surgidos da Segunda Guerra Mundial, assistimos a vinte anos de retrocesso na luta dos povos. Contudo, esse retrocesso foi detido, atualmente, com o surgimento de um mundo multipolar que desafia a hegemonia estadunidense.
É frágil, está em construção, mas volta a existir uma dinâmica de luta em escala internacional que põe em sério perigo a hegemonia estadunidense. A ascensão da China, a aproximação entre Pequim e Moscou, os discursos críticos sobre a situação do Sahel, no Mali e em Burkina... Os Estados Unidos perceberam que devem reagir a todo custo.
Em primeiro lugar, a reação foi ideológica, ao proibir que as pessoas se interessem pelas estratégias do Estado. O conspiracionismo é uma ideologia que classifica como perigosa ou duvidosa qualquer reflexão sobre as estratégias das classes dominantes. Afirmar que a França tem interesses no Sahel que explicam sua política na região é conspiração! Apontar que o assassinato de Gaddafi, na Líbia, foi o resultado de lutas internacionais pelo poder e uma estratégia estatal francesa é conspiração!
Unido ao conspiracionismo há uma ordem para se tornar estúpido, porque não se pode mais refletir sobre as estratégias empregadas. Criminaliza-se o pensamento. Quando alguém busca uma lógica para explicar um ato político, é chamado de conspiracionista. Evidentemente, existem verdadeiros conspiracionistas que inventam coisas onde não existem, mas também existem verdadeiras conspirações que, na realidade, são estratégias.
Em um capítulo de seu livro dedicado aos países do Sul, vemos até que ponto o Norte ignora ou mesmo despreza totalmente os pontos de vista que estes países têm sobre a guerra. É algo deliberado?
Existe uma verdadeira divisão entre as dinâmicas políticas do Sul e as do Norte. Por exemplo, no caso da Líbia, da América Latina à Ásia e África, todo mundo foi contra a intervenção da OTAN, porque se acreditava que não contribuiria em nada com o povo líbio. As esquerdas dos países do Sul estão completamente perplexas com as posições adotadas pelas esquerdas do Norte.
No livro, cito líderes da esquerda na América Latina que se perguntam se ainda existe uma esquerda europeia, já que esta esquerda participa ou apoia as guerras imperialistas. Alguém poderia dizer que essas pessoas vêm do Terceiro Mundo, que são mais bestas do que nós. Mas também poderíamos nos perguntar até que ponto estamos imbuídos ideologicamente pelas classes dominantes de nossos Estados, que, graças a seus meios de comunicação e suas campanhas ideológicas, conseguem nos contagiar com seus próprios interesses.
Regularmente, encontramos nos meios de comunicação ocidentais uma espécie de desprezo em relação aos povos do Sul e a seus dirigentes. Há pouco, uma rádio pública francesa falava com muita ironia sobre a decepção dos chefes de Estado africanos em relação a Putin, por ter sido brando com [Yevgeny] Prigozhin...
Há um discurso que sempre é depreciativo. Também podemos destacar a forma como as manifestações que reuniram vários milhares de malineses e burquinenses foram tratadas, como supostamente mobilizadas pela propaganda de Putin para exigir a retirada das tropas francesas, o que equivale a considerar que os malineses e burquinenses não têm cérebro, como se não se pudessem ter uma opinião sobre a Françafrique sem que venha de Moscou. Assim, as populações do Mali e do Burkina são apresentadas como pessoas manipuladas e não como capazes de refletir sobre questões políticas.
Alguns chefes de Estado africanos são porta-vozes de seus povos, mas também podem ser apanhados por seu papel na "Françafrique”. Em “La gauche et la guerre”, você lembra as declarações de Macky Sall [presidente do Senegal], em 2013, logo após o lançamento da Operação Serval: “Sem os franceses, os islâmicos estariam em Bamako e ameaçariam todas as capitais da região”.
Alguns chefes de Estado enfrentam suas próprias contradições. Podem ter chegado ao poder com o apoio das grandes potências e, nesse caso, tendem a servir a seus senhores. Mas também precisam lidar com a opinião pública de seu próprio país, o que às vezes pode ser uma verdadeira dor de cabeça. Há dez ou vinte anos, podiam apoiar abertamente as intervenções imperialistas. Hoje, se não querem que uma onda de protestos devaste seu país, às vezes, precisam ousar a se opor às grandes potências.
Também encontramos novos chefes de Estado, como no Mali e Burkina Faso. Tendo chegado ao poder com base na rejeição do imperialismo francês, possuem posições independentes. Por último, há um terceiro tipo de chefes de Estado: para servir aos interesses de suas classes dominantes, perguntam-se se é mais rentável continuar tendo relações com as potências imperialistas ou jogar a carta do novo mundo multipolar.
Basta ver a quantidade de chefes de Estado que pedem para se juntar ao BRICS.
Nem todos são revolucionários, mas por razões materiais consideram que é mais interessante se juntar a esta nova configuração do que depender dos Estados Unidos ou da França. Depois de 1945, houve uma mudança similar. Hoje, mesmo chefes de Estado filiados a Washington ou Paris adotarão posições mais ponderadas para evitar enfrentar uma pressão popular muito forte.
Recentemente, em seu canal “Le monde vu d'en bas”, você mencionou a Costa do Marfim e as manobras para impedir Laurent Gbagbo de concorrer à presidência. Lembremos que, em 2011, as forças especiais francesas da Force Licorne tinham ajudado a destitui-lo em favor de Alassane Ouattara, um aliado próximo de Sarkozy [presidente francês naquele momento].
As razões são sempre as mesmas. Se desvinculamos a situação da Costa do Marfim de seu contexto histórico, é possível manter um discurso pseudojurídico. Após ser processado por crimes contra a humanidade, depois do golpe de Estado que o derrubou em 2010-2011, Laurent Gbagbo foi absolvido pela justiça internacional. Nenhum crime foi demonstrado, mas se atua como se fosse culpado e se utiliza uma condenação na Costa do Marfim para justificar sua exclusão das listas eleitorais para as próximas eleições de setembro.
No essencial, os argumentos apresentados pelos nossos meios de comunicação retomam o discurso dos poderes locais, seja para Gbagbo, na Costa do Marfim, seja para Ousmane Sonko, no Senegal. Mais uma vez, estamos diante de uma descontextualização que permite fazer comentários repetindo um discurso cheio de injustiças.
Em uma entrevista que, em breve, será publicada no Investig'Action, Bassekou Kouyate, um griô malinês, explica a importância de ir ao Mali para ver pessoalmente como a população malinesa vive. Será que o modo como os meios de comunicação ocidentais exageram na abordagem sobre a situação de certos países, como Mali e Haiti, não justifica as intervenções ocidentais?
Sim, é preciso ir até esses países. É preciso ir ao Mali, Eritreia e Burkina, por exemplo. Já havia percebido isso com a Palestina. Durante horas, você pode debater sem sucesso com uma pessoa que acredita sinceramente em seus argumentos, mas todos que estiveram na Palestina voltam conscientes sobre o que é a colonização. No caso de todos esses países, ir até eles é a melhor vacina contra a campanha ideológica permanente.
Também podemos dizer que se a maioria da população africana é contra as guerras, é porque conhece seus efeitos?
Absolutamente. Pode ser uma obviedade, mas vale a pena lembrar! Os Estados Unidos possuem uma relação especial com as intervenções militares porque nunca conheceram nenhuma em seu próprio território, lançaram guerras no exterior. Os europeus estão na mesma situação, desde 1945. Agora, a percepção do que é a guerra em termos concretos não é a mesma de alguém que a vivenciou recentemente ou permanentemente.
Por exemplo, no Mali ou no Burkina, estão muito conscientes das consequências da destruição da Líbia. Não é algo distante e sua oposição à guerra não é abstrata. Em nosso caso, um francês ou belga médio tem mais dificuldades de imaginar o que é a guerra.
Em 1925, a França interveio junto com a Espanha para sufocar a insurreição do Rife, mas esta guerra suscitou uma forte oposição que incluiu, sobretudo, uma greve geral. Esse episódio pode servir de exemplo para que a esquerda volte a se mobilizar contra a guerra?
A revolta da população marroquina ocorreu em um contexto particular, o da Revolução de Outubro, na Rússia. Naquele momento, Lenin tinha uma aura para toda a esquerda europeia. E Lenin deu prioridade à questão do anti-imperialismo e da independência das colônias. Havia estabelecido que o anticolonialismo era um princípio fundamental para ser de esquerda.
No âmbito francês, a insurreição do Rife ocorreu quando o Partido Comunista Francês acabava de ser fundado. Este partido recém-nascido teve uma atitude extraordinária naquele momento. Todas as forças foram mobilizadas contra a guerra, com bloqueios de trens, apoio à insurreição e grupos de jovens comunistas impediram a entrega de armas. Houve uma agitação que paralisou a França por semanas. Claro, a repressão foi feroz, mas não impediu atos de coragem.
É de se temer que as guerras de hoje estejam se multiplicando. De fato, uma fera ferida como o capitalismo dominante não se retira sem chiar, mas se as esquerdas europeias se mobilizarem, terão impacto na capacidade de intervenção das grandes potências.
Sim, a insurreição do Rife pode servir de exemplo, mas é preciso lembrar o que é uma ação anticolonial hoje. É preciso se opor ao envio de armas com greves de estivadores e outras ações concretas para conter a máquina de guerra. Com essa máquina sendo freada, é possível considerar a posição contra a guerra.
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“Em relação à guerra, as esquerdas europeias deveriam ouvir mais os países do Sul”. Entrevista com Saïd Bouamama - Instituto Humanitas Unisinos - IHU