19 Junho 2023
"Os discípulos de Jesus Cristo reconhecem que sua vocação é servir e não ser servidos. As pessoas consagradas acolhem essa verdade e procuram pô-la em prática. A sua é uma cultura de escuta, acompanhamento e encorajamento para o crescimento de cada filho de Deus. A vida religiosa oferece uma cultura de participação".
O artigo é de Rinaldo Paganelli, membro da consulta do Escritório Catequético da Itália e sócio da Equipe Europeia de Catequese, publicado em Settimana News, 15-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Costuma se dizer que a vida religiosa está morrendo na Europa, mas, na verdade, deve-se reconhecer que a crise do abandono é global. No último ano, em primeiro lugar nos abandonos encontramos a Índia, em segundo lugar o Brasil, em terceiro lugar o México, depois a Argentina..., para chegar em décimo lugar com a Espanha. A hemorragia da vida consagrada atinge muitas zonas e muitos países, constata D. José Rodríguez Carballo, secretário do Dicastério para os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica.
De 24 a 26 de maio foi realizada a 99ª Assembleia da USG (União dos Superiores Gerais). 110 participantes, cerca de metade da lista de 213 superiores maiores de congregações religiosas. Tema: “Mantenha viva a chama do dom de Deus que está em você” (2Tim 1,6). As intervenções na assembleia foram propostas por quatro superiores gerais: Mauro Giuseppe Lepori dos Cistercienses, Mark Hilton dos Irmãos do Sagrado Coração, Tesfay Gebrtesilasie Tadese dos Missionários Combonianos e Miceal O'Neil dos Carmelitas.
O grande movimento de renovação da vida consagrada começou com o Concílio Vaticano II. A sugestão do decreto conciliar Perfectae caritatis (1965) era de retomar o espírito do fundador e renovar o modo de viver a própria pertença a Cristo Senhor, segundo o espírito do fundador e no desenvolvimento da sã tradição de cada instituto.
Desde então, cada instituto se empenhou numa profunda e ampla renovação através da oração, formação, pesquisa, encontros, congressos e capítulos, tudo para adquirir um maior conhecimento de seu espírito e com o desejo de dar, na vida, um testemunho mais convincente.
Cada instituto incentivou seus membros a se aprofundarem em textos básicos como a Regra, os escritos do fundador e o desenvolvimento de sua história. Esse trabalho continua até hoje.
Após o Vaticano II, muitos se perguntavam por que uma renovação fosse necessária. A resposta é: porque se pertence a uma Igreja que é um organismo dinâmico. O que diferenciou o século passado de outros tempos em que a vida religiosa foi renovada é que, desta vez, o chamado à renovação partia da própria Igreja, de um concílio ecumênico, e era dirigido a cada instituto. Como a Igreja havia se redefinido, particularmente na Lumen gentium e na Gaudium et spes, por isso os institutos religiosos foram solicitados a fazer o mesmo.
A Igreja exorta constantemente a "manter vivo o carisma" e os capítulos gerais e locais - e todos os outros encontros - expressam o desejo de viver mais autenticamente a vocação recebida. Muito tempo e energia foram gastos na redescoberta da identidade carismática.
No entanto, é justo perguntar se essa vida ainda seja significativa para o mundo de hoje. A partir dessa questão - central para todos os oradores - tentou-se uma leitura da realidade.
O contexto atual é cheio de ambiguidades. É fácil apontar muitas características negativas do nosso mundo; no entanto, justamente cada aspecto negativo trouxe e continua a trazer respostas positivas. Se é verdade que existem muitos aspectos problemáticos, não deixa de ser verdade que a vida religiosa tem boas chances de se propor com eficácia como uma alternativa positiva.
Sem a pretensão de uma análise exaustiva, o carmelita Miceal O'Neil ofereceu alguns pontos de discussão.
No mundo de hoje há uma grande ênfase na individualidade. Vemos isso na cultura que tenta responder de todas as formas às necessidades do indivíduo, às vezes prestando pouca atenção à realidade que o cerca. Assim acontece que as necessidades de alguns são bem atendidas, enquanto milhões de pessoas nem são levadas em consideração.
A vida religiosa cuida também do indivíduo, mas sempre no contexto de uma comunidade, com a filosofia de São Paulo: “quando um membro sofre, todos os outros sofrem com ele; quando um membro é honrado, todos os outros se alegram com ele" (1 Cor 12,26).
Hoje a Igreja Católica encontra dificuldades. Muitas pessoas da comunidade eclesial estão se afastando ou não se mostram mais interessadas. As razões são muitas. Sob acusação está, em particular, a forma como a autoridade e o poder são exercidos na Igreja. Uma maneira que mortifica a competência e o talento de muitos, principalmente das mulheres; favorece o abuso de pessoas vulneráveis por parte dos membros da Igreja e a incapacidade de enfrentar os abusos, as vítimas e os abusadores; provoca falta de honestidade e transparência na administração dos bens eclesiásticos…, numa palavra: uma Igreja que prega uma coisa e faz outra.
A vida religiosa está dentro desse esforço, mas tem uma sua capacidade de se reformar, tem tempos e lugares para se examinar regularmente, deseja um modo de viver mais autêntico e pratica a correção fraterna como estilo de vida.
Costuma-se dizer no mundo de hoje que as pessoas têm sua própria espiritualidade, mas não são religiosas. Sentem que têm uma vida interior, um conjunto de valores e um desejo de algo mais, mas não querem seguir nenhum líder ou pertencer a uma religião institucionalizada.
Diante desse desafio, os religiosos propõem um estilo de vida centrado na revelação de Deus na pessoa de Jesus Cristo, o Verbo Encarnado. Com isso, pretendem viver uma intensa vida espiritual em comunhão com o Espírito de Deus. As pessoas consagradas se colocam no mundo como aquelas que acreditam que todo bem e toda possibilidade de crescimento e de salvação vêm de Jesus Cristo.
Além disso, há uma parte desse mundo que, enquanto proclama os méritos da democracia, permite que muitos governos favoreçam os interesses de poucos e de impor a sua vontade por meio de mecanismos de poder que vão da corrupção e do engano até a prevaricação e a opressão.
Aqui encontramos pouca atenção para os pobres ou os vulneráveis, considerados pessoas supérfluas.
Embora as condições dos pobres em algumas sociedades tenham melhorado significativamente, em muitos contextos ainda há um longo caminho a percorrer. O que está acontecendo no Mediterrâneo é apenas um sinal de um mundo que não está disposto a mudar para permitir que os países mais fracos desfrutem dos benefícios e dos recursos que Deus doou.
O religioso responde propondo um estilo de vida em que todos os que fazem parte da comunidade são cuidados, todos dão sua contribuição e o poder é exercido por um período para depois ser repassado a outros.
Os discípulos de Jesus Cristo reconhecem que sua vocação é servir e não ser servidos. As pessoas consagradas acolhem essa verdade e procuram pô-la em prática. A sua é uma cultura de escuta, acompanhamento e encorajamento para o crescimento de cada filho de Deus. A vida religiosa oferece uma cultura de participação.
Nosso mundo exige frutos imediatos. Na tecnologia, educação, saúde, agricultura, produção, os resultados e a velocidade são as marcas do sucesso. Para alcançar esse sucesso, a visão deve ser restrita. Os efeitos colaterais e as consequências negativas recebem pouca atenção, pois atrapalham e retardam o processo.
Professando os votos de obediência, pobreza e castidade, os religiosos promovem o crescimento da pessoa na liberdade, na partilha dos recursos para que ninguém fique necessitado, e no cultivo de relações humanas que permitam às pessoas crescer até a plena maturidade. Tudo isso requer tempo e funciona a partir de uma filosofia fundada na esperança.
A pergunta de Pilatos: "O que é a verdade?" (Jo 18,38) desafia-nos num mundo onde a verdade é vítima da publicidade agressiva, da corrupção política, da ambiguidade moral. A verdade é o que convém aos interesses de quem fala em determinado momento.
A leitura diária da palavra de Deus e o discernimento comunitário são a resposta à manipulação da verdade para fins egoístas, como acontece com frequência no contexto atual.
O desafio hoje é jogado no contexto da vida religiosa vivida em comunidade. Se olharmos para a Europa, maravilhamo-nos com o que foi realizado e como o estilo de vida religiosa entrou na mente e no coração de tantas pessoas. Gerações inteiras foram marcadas por ela e vivemos com a ideia de que tudo isso será salvaguardado nos países europeus. No entanto, é justo perguntar se o ideal de vida religiosa seria adaptável às exigências de hoje e como manter vivo o carisma.
O problema é tomar consciência do próprio carisma. A verdadeira questão - destacou o cisterciense Giuseppe Lepori - é qual é o dom de Deus que devemos acolher sempre de novo e manter vivo continuamente. Manter vivo não significa ir recuperar algo no arquivo, nos celeiros ou no cofre. O dom é mantido vivo pela reativação da relação com o Doador.
Isso é o que muitas vezes falta e ao qual não se presta suficiente atenção. Muitas vezes, nas visitas canônicas, corrigem-se coisas superficiais, mas não há questionamentos sobre o acolhimento do dom do carisma. Se realmente se estivesse interessado pelo carisma, se prestaria atenção à qualidade da oração, ou à fidelidade à meditação da Palavra de Deus, assim como à qualidade da vida fraterna, porque o dom do carisma é um dom de comunhão.
Mesmo quando já somos idosos e reduzidos a poucos, pode-se sempre acolher um dom e ter uma relação de confiança com o Pai e o Filho, para acolher o Espírito. Aliás! Se o dom de Deus não for aceito, de nada adianta ser jovem e de nada adianta ser muitos. A vocação não se vive quando o dom não é acolhido.
Muitas vezes se quer ter novas vocações sem aceitar gerá-las. Novos membros da comunidade são necessários mais para sobreviver do que para transmitir a vida. Também nisso se revela uma concepção "arquivística" do carisma, como se as vocações tivessem que vir para conservar um museu, um patrimônio, e não para transmiti-lo. Perde-se assim a conexão com a fonte, com as raízes do carisma, porque Deus o doa a nós para permanecer n'Ele.
Nesse panorama se insere a contribuição rica de informações de D. José Rodríguez Carballo, secretário do Dicastério para os institutos de vida consagrada e as sociedades de vida apostólica.
Afirmou que a vida consagrada como um todo desfruta de boa saúde. Acima de tudo, ela está fazendo um grande esforço para tornar sua vida e missão significativas e evangélicas. No entanto, não faltam alguns problemas críticos.
Primeiro tema, os abandonos. Há uma média de cerca de 2 mil abandonos a cada ano. Isso mostra que chegou a hora de rever os processos de formação. A partir do discernimento vocacional. Em nosso tempo, em que há um apetite desordenado de vocações, facilmente se atendem pedidos nem sempre motivados.
As práticas que chegam ao dicastério dizem que as causas do abandono são as tradicionais.
- A primeira causa é a crise de fé. A crença na comunhão interna à Trindade tem pouco impacto no processo de comunhão a ser realizado em comunidade.
- A segunda causa é o excessivo espiritualismo. Muitas vezes o devocionismo mais extremo, forte nas novas gerações, gera uma espiritualidade desencarnada, incapaz de tornar filhos do Céu e filhos da terra.
- A terceira causa são os problemas afetivos: "O que não se encontra dentro da comunidade, procura-se fora". Neste tempo, existem muitos problemas afetivos de tipo heterossexual e homossexual.
Costuma se dizer que a vida religiosa está morrendo na Europa, mas, na verdade, deve-se reconhecer que a crise do abandono é global. No último ano, em primeiro lugar nos abandonos encontramos a Índia, em segundo lugar o Brasil, em terceiro lugar o México, depois a Argentina..., para chegar em décimo lugar com a Espanha. A hemorragia da vida consagrada atinge muitas zonas e muitos países.
São outro elemento de preocupação.
As novas formas são caracterizadas por mulheres e homens vivendo juntos e o responsável pela comunidade pode ser uma mulher ou um homem. Mas o que é problemático é a perda do sentido eclesial. Muito peso é dado a fundadores e fundadoras já canonizados em vida. O que eles dizem vem antes do evangelho. Isso cria dificuldades na passagem do carisma à instituição.
Esse dado exige um redimensionamento das figuras dos fundadores e das fundadoras, e também prevenir-se daquele tipo de herança que se recebe dos fundadores quando chegam a indicar o seu sucessor.
O serviço da autoridade precisa urgentemente ser evangelizado para evitar duas derivas: o autoritarismo e o laissez-faire.
Quem exerce o serviço de autoridade deve saber tomar decisões. Às vezes, tem-se a sensação de que muitos superiores não querem assumir suas responsabilidades, tanto que, quando surge um problema, recorrem ao Dicastério em vez de tratá-lo nas devidas sedes.
A questão dos abusos em menores não diz respeito ao Dicastério para a Vida Consagrada, porque é tarefa do Dicastério para a Doutrina da Fé.
As muitas cartas denunciando abusos de poder são muito preocupantes. Um tema que ainda não foi enfrentado com a seriedade que merece. Muitos abusos sexuais têm sua origem no abuso de poder.
Os abusos de consciência ocorrem mais no âmbito feminino. É importante formar os provinciais e os superiores no saudável serviço da autoridade no sentido etimológico de “fazer crescer” o outro.
Outro tema de preocupação são os recursos. Muitas vezes há razões mais do que suficientes para demitir um membro do instituto, mas, por defeito de forma, muitas vezes o recurso deve ser aceito, caso contrário a Assinatura Apostólica dá razão ao religioso cuja demissão é solicitada. Por isso é necessário ser muito diligentes na redação dos textos, respeitando ao máximo as normas do direito.
Nos últimos anos, muita atenção tem sido dada aos pequenos institutos. O tema foi examinado em algumas conferências de superiores maiores. A conferência alemã foi a primeira a abordar o tema, seguida pelas conferências francesa, inglesa e espanhola.
Atualmente, existem mais de 500 institutos de direito pontifício com menos de 100 membros. Destes, metade tem menos de 50 membros e 14 têm menos de 10 membros. Alguns ficaram com 2 membros e 1 até com apenas um membro. Mas o problema não é só o número, a média de idade também é muito alta. Há institutos com idade média de 85 anos.
Todos os representantes das conferências mencionadas acima foram convocados para falar sobre esse problema. Na maioria dos casos sugere-se uma fusão, mas não é fácil porque as resistências são fortes e numerosas.
No que diz respeito aos mosteiros, tenta-se favorecer as afiliações, mas no momento não temos mosteiros tão fortes que possam afiliar os mais fracos. Existem também mosteiros com apenas 2 pessoas. Também é preciso levar em conta as ressonâncias que as eventuais afiliações poderiam suscitar tanto interna quanto externamente. As visitas apostólicas e as intervenções procedem tentando sanar as situações incompatíveis com a vida consagrada.
A comunidade de Bose teve muita ressonância nos últimos meses. Agora está tudo bem encaminhado, há muito diálogo com a comunidade e as constituições foram renovadas. Foi feito um bom trabalho. Um agradecimento vai ao novo Prior por aceitar as sugestões do Dicastério.
A lista de dificuldades referidas por D. Carballo, no entanto, não pode fazer esquecer o crescimento de determinadas realidades e tudo o que há de positivo nos institutos de vida consagrada.
Durante o encontro também foram eleitos os delegados ao Sínodo sobre a sinodalidade: Arturo Sosa (Companhia de Jesus), Mauro Giuseppe Lepori (Cistercienses), Ernesto Sanchez (Irmãos Maristas), Mark Hilton (Irmãos do Sagrado Coração), Tesfay Gebrtesilasie Tadese (Combonianos).
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O carisma dos religiosos num mundo em mudança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU