11 Julho 2020
A Ir. Noëlle Hausman, editora da revista Vies Consacrées, entrevistou a Ir. Véronique Margron, presidente da Conferência dos Religiosos e Religiosas da França. Notas sobre as famílias, apontamentos sobre a Igreja e um olhar para o futuro: a vida religiosa “existe para levar a generosidade original da paixão pelos humanos do Deus de Jesus Cristo”.
Ir. Véronique Margron é provincial das Irmãs da Caridade Dominicanas da Apresentação da Santíssima Virgem. É teóloga moral e estudou com X. Thévenot, C. Geffré e B. Cadoré.
A entrevista foi publicada em italiano por Settimana News, 10-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Irmã Véronique, gostaria que você nos falasse, acima de tudo, sobre a sua congregação, um instituto de direito pontifício no âmbito da terceira ordem dominicana.
No século XVII, quando houve a fusão das instituições espirituais e das fundações de caridade, Marie Poussepin, nascida em Dourdan (Essonne, França) em 1653, tornou-se, com a morte de seu pai em 1683, uma genial empreendedora. Ela abandonou o trabalho artesanal, já obsoleto, em uma empresa têxtil.
Ela recrutou nas classes populares aprendizes homens e mulheres entre os 15 e os 18 anos, aos quais assegurou, com sensibilidade social, a formação e a promoção, e, ao mesmo tempo, favoreceu o desenvolvimento econômico da cidade. Ao mesmo tempo, desenvolveu uma intensa vida espiritual, alimentada pela ação educativa e pela espiritualidade da terceira ordem de São Domingos.
Em 1696, tendo conhecido a ignorância e a miséria do vilarejo de Sainville, a 17 km de Dourdan, ela decidiu abandonar todos para dar origem a “uma comunidade da terceira ordem de São Domingos” para a “educação da juventude e o serviço aos doentes pobres”.
Foi a primeira comunidade dominicana feminina de vida apostólica, não contemplativa: uma escolha ou uma coincidência?
Marie Poussepin não quis para as suas irmãs nem clausura nem votos solenes: “Elas irão aonde for necessário” para oferecer um serviço de caridade. Coerentemente com essa intuição, em 1697, ela enviou duas freiras para uma cidade a 30 km de Sainville para cuidar do hospital de Janville, a pedido do bispo de Orléans.
Marie Poussepin deu forma a uma comunidade fraterna dominicana, a partir da Palavra de Deus com uma visão apostólica precisa e sobre “bases sólidas”. Uma comunidade em que “aquilo que diz respeito a todos deve ser discutido por todos” e em que o anúncio da Palavra no ensinamento dominical às pessoas do vilarejo é constitutivo da vida comum.
Que espaço a Palavra de Deus tem na sua espiritualidade hoje? A sua transmissão passa apenas pelo canal da formação intelectual?
Tornamo-nos “pregadores”, de acordo com o carisma de Domingos, acima de tudo, escutando a Palavra de Deus. A escuta comum durante o Ofício. Depois, no contato pessoal com a Escritura na Lectio divina. Trata-se de compreender, para cada uma e para cada um, o apelo do Evangelho: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). A Bíblia é a companhia dos nossos dias. Nós a lemos, a ruminamos, a amamos.
O bem-aventurado Jordão da Saxônia aconselhava em 1225: “É necessário reler o Verbo no teu coração, propô-lo novamente ao teu espírito; é a doçura que deves ter na tua boca como a do mel. É esse Verbo que é preciso ser meditado sem se cansar, sem que Ele deixe de agir no teu íntimo; que Ele habite em ti e habite junto contigo”.
Eis o papel que desejamos dar à Palavra. Sem isso, o trabalho teológico e a formação bíblica seriam apenas címbalos estridentes. Eles são um bem indispensável, mas, dentro dessa conversa constante com a Palavra, como aquilo que nos aferra, nos desloca de nós mesmos e nos conduz aos passos de Cristo.
Vocês tem laços orgânicos com os leigos? E com as duas ordens dominicanas?
Trata-se, principalmente, de pensar a ordem como tal. E de viver o seu carisma. A ordem é composta por cerca de 6.000 irmãos, monjas, leigos e freiras. Essa é a “família dominicana” ou “fraternidade dominicana” que surgiu a partir da santa pregação inaugurada por São Domingos no “encontro de Montpellier” em 1206. Enquanto os legados papais – enviados para combater a heresia cátara – queriam renunciar perante o fracasso da sua missão, Diego, bispo de Osma em Castela, acompanhado pelo seu sócio”, Domingos de Calaruega, provoca uma ruptura revolucionária: mandou de volta as bagagens, os servos e os soldados que acompanhavam a missão de pregação dos bispos e dos legados pontifícios.
Assim nasceu a “santa pregação”, entrando em colisão com a riqueza e os poderes ostensivos do clero e o desprezo dos leigos, para dar espaço para a pobreza mendicante e para a simplicidade do Evangelho.
Foi a mesma intuição, em um contexto completamente diferente, de Marie Poussepin e das suas primeiras companheiras. Um Evangelho anunciado na simplicidade da vida comum e do trabalho em favor dos pobres do seu tempo. Um Evangelho oferecido. Não há nenhum vínculo de subordinação entre as irmãs de vida apostólica e os irmãos. Mas sim uma forte amizade que lembra que, somente juntos, uns com os outros, é que podemos anunciar a Boa Nova do Cristo, cada uma de acordo com seus próprios talentos.
A mesma cordialidade nos liga aos amigos leigos. Não são, acima de tudo, relações institucionais. São um sinal permanente de que, sem os outros, estamos amputados. É necessária a alteridade, uma comunhão diferenciada para testemunhar com maior fidelidade o Evangelho, à maneira de Domingos.
Você já escreveu na revista Vies Consacrées que, na sua opinião, não se tratava de refundar a vida religiosa, no sentido de pedir aos fundadores uma espécie de “nova narrativa”. Em vez disso, falava de possibilitar uma experiência de Deus, de atravessar um “esvaziamento” pascal. Você ainda acha isso?
Sim, absolutamente. A nossa história deve ser acolhida. Em outras palavras, não temos nada a refundar. Também sabemos como se considerar fundador pode ser problemático, senão até perigoso. Trata-se de escutar o que a intuição, vivida por dezenas e centenas de gerações, pode abrir e comprometer para o hoje. A criatividade não parte do zero, e é isso que nos move.
Sim, eu ainda acredito que o mistério pascal está no centro: fazer as pessoas perceberem, mesmo dentro dos nossos limites, que a nossa existência humana encontra a sua alegria em um dom em favor dos outros, do seu crescimento, dignidade e verdade. Um dom perigoso que prevê perdas e passa por um consenso de fundo com a condição humano-carnal, com a encarnação.
Uma vida da qual atestamos, na morte e ressurreição de Cristo, que não está confiada ao destino, que pode sempre se renovar. Nada está definitivamente fechado. A vida religiosa não tem em si mesma a sua finalidade. Ela existe para levar a generosidade original da paixão pelos humanos do Deus de Jesus Cristo.
É necessário que nos preocupemos com o nosso futuro, não nos apegarmos a ele e nos considerarmos indispensáveis, mas por causa do nosso compromisso com irmãs e irmãos e com todos aqueles pelos quais temos alguma responsabilidade.
Dominicana e teóloga moral: como você vê a situação atual da vida consagrada (e não apenas religiosa) na Igreja francesa, que está passando por muitas tempestades?
Acima de tudo, dando graças por tantas vidas magníficas, avassaladoras, de proximidade com o Senhor, em relação a mulheres e homens que conhecem o sofrimento. Vidas que não buscam um destaque social, mas que vão para ao coração. É realmente magnífico: uma multidão de testemunhas de hoje que colaboram para manter o mundo de pé apesar de tudo, para lhe dar um rosto humano para além das brutalidades.
Com realismo. Não tanto pelo contínuo decrescimento em termos sociais e numéricos, mas sim por aquilo que descobrimos em relação aos escândalos e abusos. Agressões sexuais, é claro, mas também abusos de poder, de confiança, de consciência. Eles tocam muitas formas da vida consagrada hoje. Como não se deixar interrogar profundamente?
Não apenas pela imensa dor que eles provocaram em vidas devastadas e desmoronadas, mas também por nós, que os descobrimos hoje e nos interrogamos sobre como isso foi possível. Traições que nos obrigam a retomar o nosso fundamento e a discernir como uma concepção nefasta da obediência, por exemplo, ou da castidade pode ter levado aos abusos.
Finalmente, com esperança. Porque vejo hoje uma autêntica conscientização de muitos sobre esses fatos dolorosos e uma vontade real de lutar contra toda prática desviante e de se formar adequadamente. Também vejo um compromisso de fundo para apoiar as vítimas. Eu acredito que a vida consagrada pode se tornar simplesmente mais evangélica a partir dessa tempestade. Se a nossa Igreja não vai muito bem – é impossível ignorar – eu ainda acredito que o Evangelho vai muito bem.
Deseja acrescentar alguma coisa, em particular sobre a relação entre homens e mulheres na Igreja?
A vida religiosa tem uma grande oportunidade. Ela sempre foi mista, porque mulheres e homens escolheram seguir a Cristo dessa forma. Na nossa Igreja, essa alteridade constitutiva é uma força, porque ela nos torna mais sensíveis às mulheres e aos homens do nosso tempo e, em particular, ao crescimento do papel das mulheres nas nossas sociedades. Ela também permite – e, em todo o caso, assim espero – compreender diversamente as questões do poder de governo como as questões sociais.
Nada já foi alcançado e nada é fácil. Mas sou testemunha de uma verdadeira fraternidade nos nossos encontros institucionais. Testemunha também de que a paridade nas nossas estruturas de representação, como a Corref (Conferência dos Religiosos e Religiosas na França), funciona muito bem e é uma verdadeira força em inúmeras questões a serem abordadas.
Sabemos que ainda há um longo caminho a percorrer na nossa Igreja em relação às relações entre homens e mulheres. A vida religiosa hoje é modesta em número e em idade. Mas isso não impede que o seu papel discreto possa se tornar um sinal, sem ostentação e sem pretender dar lições. Um sinal simples, com limites e fragilidades, de relações mais equilibradas e justas. Porque o Evangelho nos deseja juntos e precisa das sensibilidades e das competências de todas e de todos para se oferecer a este tempo como boa notícia para quem acredita estar distante.
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O “sinal” das pessoas consagradas. Entrevista com Véronique Margron - Instituto Humanitas Unisinos - IHU