10 Junho 2023
"A instituição não é o carisma, assim como o governo não é o Espírito, mas o carisma se 'expressa' em instituições e os dons carismáticos precisam daqueles do governo. O carisma é vivido na instituição, mas não se identifica com ela. O carisma pertence à Igreja e o fechamento no tempo de uma instituição não impede os curiosos percursos ocultos dos dons espirituais".
O artigo é de Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, publicado por Settimana News, 06-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
É chamado de "cumprimento": um termo que indica a realização do propósito e a efetivação de sua razão de ser. No Ocidente cristão, um número significativo de institutos religiosos, masculinos e femininos, caminha para a extinção. Fechamentos de comunidades, fusões de instituições, dificuldades de liderança: o envelhecimento e a escassez de vocações se acumulam, criando as premissas para o fim.
Na história da Igreja já aconteceu muitas vezes, mas não de forma tão generalizada. Já o tinha dito João Paulo II numa catequese de 1994: “Nenhuma forma particular de vida consagrada tem a certeza de uma duração perpétua. Comunidades religiosas podem terminar. Historicamente, constata-se que de fato algumas desapareceram, como também entraram em declínio algumas Igrejas particulares. Os institutos que não mais se adequam à sua época, ou que não têm mais vocações, podem ser obrigados a fechar ou a unir-se com outros. A garantia de duração perpétua até o fim do mundo, que foi dada à Igreja como um todo, não é necessariamente concedida a nenhum instituto religioso”.
Uma aguda intérprete da vida consagrada, a irmã Noelle Hausman, acrescenta: “Devastada por abusos, despojada há tempo de sua utilidade social, a vida consagrada assim como se encontra na Igreja Católica de rito latino não estaria talvez se extinguindo sob o peso conjunto das infidelidades e do desinteresse dos contemporâneos, especialmente cristãos? Muitos pensam assim e alguns, mesmo entre as autoridades responsáveis, tomam providências para antecipar os tempos, definindo como veleidade toda esperança, pois parece inútil ir contra a história. Isso não deveria ser considerado um comportamento sábio e realista?”
Há algumas décadas, um dos teólogos mais perspicazes, Hans Urs von Balthasar, escrevia: “Às vezes pode acontecer que as estruturas das instituições temporais se afrouxem; são verdadeiramente temporais, o tempo as devora e desgasta, muitas coisas enferrujam, apodrecem, precisam ser substituídas; encaixes aparentemente sólidos, se soltam e permitem entrever pelas réstias a luz ou até mesmo a escuridão”.
Pode acontecer, portanto, mas, como observa uma freira canadense: “o ponto central não é tanto o futuro da vida dessa ou daquela congregação, mas o futuro da vida consagrada na nossa Igreja”.
Pode uma Igreja local ser privada de religiosos e religiosas sem sofrer prejuízos? Os indicadores comuns, apresentados com diferentes intensidades, são reconhecidos nos processos de secularização, no declínio da prática religiosa, nas famílias mais reduzidas e com menor disponibilidade em apoiar uma escolha desse tipo do filho ou da filha, na deslegitimação cultural das escolhas “para sempre", nas múltiplas modalidades de "serviço" na Igreja e na sociedade, na escassa possibilidade das novas gerações de encontrar figuras religiosas. Acrescente-se o peso do escândalo dos abusos sexuais, a não inclusão da mulher em papéis de responsabilidade, a persistência de indicações morais consideradas ultrapassadas (homossexualidade, coabitação...), o envelhecimento, etc.
E tudo isso apesar do reconhecimento de que a vida monástica e a consagração tenham paralelos antropológicos em muitas religiões e que, pela primeira vez, todas as confissões cristãs convergem sobre o valor evangélico da escolha religiosa.
Conhece uma significativa ancoragem em países não ocidentais, um enraizamento e o início de uma interpretação original dos carismas fundadores em outras culturas. Até o momento tratava-se de uma simples expansão do modelo europeu, agora assistimos a um movimento criativo, ainda que cheio de incertezas. O Ocidente não é mais central e não determinará seu futuro, mas seu peso não deve ser subestimado.
O dicastério da vida consagrada dedicou um longo e silencioso trabalho ao problema do "cumprimento". As primeiras discussões datam de 2015, uma experimentação foi feita, em 2022, na Holanda com a aprovação do Vaticano de diretrizes para o governo e a administração dos bens dos institutos diocesanos prestes a fechar.
Entre setembro e março deste ano, uma série de quatro encontros por área linguística permitiu esclarecer o quadro teológico, os passos para promover a conscientização, o futuro das obras, a colaboração com os leigos, as competências das conferências nacionais de religiosos/as, as relações com as Igrejas locais e com o dicastério. Um percurso em que o carisma informa também o fim da instituição eclesial e deixa rastro naquilo que sobrevive.
Para o pe. Pier Luigi Nava, subsecretário do dicastério: “Uma instituição, ao longo do tempo, percebe progressivamente não estar mais em condições de satisfazer as expectativas eclesiais derivadas do chamado carisma fundacional e não faz disso um drama. Ao mesmo tempo, toma consciência de ter cumprido a sua tarefa na Igreja. Assim, supera a dupla tentação de fechar-se sobre si mesma e de fazer-se surda a um diálogo eclesial (“não venham criar outros problemas”) ou remover seus próprios limites, acabando no curto-circuito de uma míope autorreferencialidade (“nós somos nós e nos bastamos”). No horizonte da experiência de fé, a percepção do cumprimento se verifica como um progressivo exercício de desprendimento, na lógica paulina da 'perda' para nos redescobrirmos - apesar de tudo - na graça da fidelidade ao dom de Deus. Graça que precede e acompanha também o resultado dos nossos limites”.
De acordo com o direito canônico, um instituto religioso se fecha com a morte do último religioso ou religiosa. Em princípio, pressupõe crescimento e continuidade, e não contém indicações quanto ao declínio e ao cumprimento. O mesmo vale para o direito próprio das instituições. Não há manuais ou literatura canônica sobre o tema. A situação também se complica pelas exigências do direito civil e do direito concordatário (onde estiver em vigor).
O problema afeta os institutos internacionais apenas tangencialmente, afetando sobretudo os pequenos institutos diocesanos que talvez tenham uma única presença no exterior. A relação com o bispo local e seus colaboradores torna-se necessária. Falta de competência, falta de confiança e pouca transparência podem dificultar a situação. Os religiosos/as esperam a compreensão do seu carisma, uma comunicação eficaz, o respeito pela autonomia e pelos direitos de propriedade.
Da parte das dioceses, pede-se que se reconheça a competência e a autoridade dos consultores que podem ter uma palavra importante a dizer, por exemplo, na área econômica e financeira. Em geral, uma liderança compartilhada requer uma seleção cuidadosa de leigos aos quais, talvez, reconhecer uma espécie de ministério de fato.
Na Bélgica e na diocese de Bruxelas, nasceu uma associação sem fins lucrativos, apoiada pelos bispos, que permite transferir as propriedades de algumas dezenas de congregações diocesanas, garantindo a continuidade do serviço ou iniciando outras intervenções caritativas.
Em Viena, surgiu uma "rede" para as ordens religiosas que estão "no limiar" do cumprimento para sugerir os passos e medidas a serem tomadas antes que a situação se torne incontrolável. O objetivo deveria ser que todo instituto tenha na gaveta um curso para o cumprimento.
Além das dioceses, é necessária uma nova responsabilidade para as conferências nacionais de religiosos/as. A sua função de apoio, ajuda e acompanhamento requer um reconhecimento de autoridade que ainda não está previsto no código. Mesmo salvaguardando a autonomia decisória dentro de cada instituto, poder-se-ia reconhecer à conferência um papel de supervisão, como garantia do carisma e também para evitar que ingenuidades e nepotismos acabem com os bens ainda disponíveis. Isso exige mudanças dentro das conferências e também um mais exigente financiamento e angariação de competências.
Quais são os sinais da crise? Pode-se mencionar os números de membros, especialmente quando não permitem mais indicar uma liderança (provincial, conselho, ecônomo, superiores). Ou quando já não se pode mais oferecer um curso de formação, ou por situações pessoais complexas e difíceis (doenças, escândalos) ou por graves complicações financeiras. Pode acontecer que a crise seja evidenciada pelo assistente, pelo visitante, pelo comissário apostólico.
Outro sinal é a decisão de não aceitar mais vocações ou de não ter comunidade nem competências que assumam a responsabilidade por elas. Entre os motivos da crise, a referência aos abusos volta no testemunho de muitos representantes religiosos das nações mais afetadas (até agora). Assim é na França como nos países anglo-saxões.
Um religioso canadense admite: os abusos e encobrimentos “causaram danos devastadores... Esses terríveis eventos nos levam a rever os modelos da Igreja que permitiram o abuso de poder e as falsas imagens de Deus”.
Um religioso estadunidense afirma que a falta de vocações é influenciada pela "crise dos abusos sexuais que equipararam sobretudo o sacerdócio, mas também toda a vida religiosa masculina, a uma sexualidade reprimida e doentia... Dado que os Estados Unidos foram o epicentro originário nessa crise, parece ter tido um impacto particular nas pessoas que se tornaram céticas quanto à possibilidade de uma vida celibatária saudável".
Foi R. Hostie (Vie et mort des ordres religieux, Paris 1972) que traçou com eficácia o ciclo de vida dos institutos religiosos. Estima-se que sua duração seja de cerca de dois séculos e meio. Mas o ritmo atual parece mais rápido. Retomaram o tema G. Rocca ("Ciclo de vida dos institutos religiosos e ciclo de vida das instituições de vida religiosa", em Recollectio 2017, nº. 2) e P. L. Nava (“O ciclo de vida de um instituto de vida religiosa”, em Vita consacrata 2010 n. 6).
O desaparecimento atravessa não apenas os números e os anos, mas a identidade profunda da vida consagrada. Em positivo, porque nasce desde o início como “substituta” do martírio na generosidade do seguimento, na seriedade do serviço aos pobres e no exercício severo do trabalho agrícola ou intelectual. Em negativo, quando o medo da morte (das pessoas, das obras, da reputação, etc.) "acaba por prevalecer sobre as obras da vida, por uma espécie de apostasia silenciosa que renuncia a acreditar que Jesus, com a sua paixão e sua morte, reduz ‘à impotência pela morte aquele que tem o poder da morte, ou seja, o diabo’” (N. Hausman).
À mudança no ciclo de vida dos institutos corresponde aquela de cada religioso individualmente. Durante séculos, os religiosos morriam entre os 40 e os 50 anos, permanecendo empenhados até o fim de suas vidas.
Hoje abriu-se um período mais ou menos amplo entre o fim da missão e a morte. Um tempo geralmente confiado à inventividade dos indivíduos.
Um pequeno insight é oferecido pela irmã D. Faltz para uma comunidade de freiras de Luxemburgo. Todas bem acima dos 65 anos, sabem que a missão de sua congregação está chegando ao fim, mas continuam a servir os doentes e os idosos, vivem a vida comunitária com seriedade, participam, na medida do possível, da Igreja local, continuam a investir na formação carismática dos leigos que assumiram os seus serviços.
“O percurso de cumprimento, embora marcado pelo tempo, tem uma meta para além do tempo, uma superação que não pertence a nós, mas ao Senhor. Temporalidade que não escapa das amarguras, cansaços e desilusões. Não há caminho de vida consagrada que não seja marcado pelo mysterium Crucis. No entanto, o cumprimento permanece sub lumine Crucis. Não seremos capazes de entender completamente o porquê; muitas coisas nos escapam mesmo recorrendo a elaboradas análises histórico-sociológicas. Disso a necessidade de um acompanhamento 'personalizado' que ajude a enfrentar o cumprimento não com espírito de resignação, mas com conscientização lúcida e serena, sabendo que não se fica 'sozinhos'. Temos ao lado irmãos e irmãs da nossa Igreja que sabem cuidar das nossas vidas, da nossa causa, porque é e continua a ser causa da Igreja” (P.L. Nava).
Trata-se, portanto, de aceitar a realidade da mudança, da perda e até da morte, deixando de sonhar que um futuro seja possível voltando ao passado.
Na história, os momentos mais críticos às vezes são o pré-requisito para um renascimento inesperado e surpreendente. Em todo caso, é necessária uma decisão de escolha de vida, uma capacidade de se deixar mudar em profundidade.
A prioridade do consagrado é sempre a mesma: quaerere Deum, buscar o Senhor. E, no entanto, é prudente preparar competências leigas e religiosas para a animação, a vida espiritual, a administração, a assistência, os bens e os arquivos.
Monsenhor J. R. Carballo, secretário do dicastério, recordou: “Bento XVI convidou os religiosos a se reconhecerem como minoria. Não é fácil aceitar isso. Devemos abraçar a nossa condição de minoria. Também nos disse para não nos tornarmos profetas da desventura. Se dissermos que essa vida está prestes a morrer, se vocês estiverem convencidos disso, é melhor ir embora logo antes que o navio afunde. Se estamos nesse navio é porque acreditamos no valor da vida consagrada”.
E um religioso irlandês acrescenta: "Existe o risco de quem entrar não receber o apoio de que precisa para manter e fazer crescer a sua vocação e a sua busca por Deus. Alguns membros das congregações se opõem às entradas, como se temessem que, aceitando novos chegados não se possa satisfazer o seu mantra da diminuição".
A instituição não é o carisma, assim como o governo não é o Espírito, mas o carisma se “expressa” em instituições e os dons carismáticos precisam daqueles do governo. O carisma é vivido na instituição, mas não se identifica com ela. O carisma pertence à Igreja e o fechamento no tempo de uma instituição não impede os curiosos percursos ocultos dos dons espirituais.
Não existe, portanto, possibilidade de transmissão a terceiros como se o carisma fosse uma herança que possa ser disposta livremente. No máximo, a questão pode dizer respeito à crise que afeta não instituições individuais ou congregações, mas sua forma, em particular a forma apostólica, hegemônica há alguns séculos. Está realmente superada? Tem possibilidade de renascer, e como?
As perguntas repercutem sobre a acrescida responsabilidade da vida consagrada fora do quadrante europeu, em formas antigas que retornam e em formas novas que estão aparecendo. Eremitas, ordo virginum, ordo viduarum, beguinarias parecem pedir novos espaços, ainda que marginais.
No plano da novidade estão as "famílias eclesiais", isto é, aqueles institutos que reúnem sujeitos consagrados, clérigos e leigos em uma única estrutura canônica. Caminhos antigos e novos, não isentos de provações e feridas, que reabrem o panorama da vida consagrada e solicitam uma nova atenção ao que o Espírito pede à Igreja.
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Consagrados: o carisma está morrendo? Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU