07 Agosto 2021
“Isso faz muito dano à Vida Consagrada e à própria Igreja”. É a reflexão de José Rodríguez Carballo, secretário da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, ao colocar sobre a mesa a deriva de alguns institutos de vida consagrada de novo cunho. Fala desde seu ser franciscano, porém, sobretudo, com a experiência que lhe dá trabalhar no observatório romano que acompanha os institutos e sociedades de vida apostólica.
Por isso, não tem dúvidas em animar a “prestar muita atenção no momento de discernir a necessidade, a conveniência e a utilidade para a Igreja na hora de aprovar associações em caminho para o reconhecimento canônico”. O ‘número dois’ do ‘ministério’ vaticano para os religiosos lamenta o “fundamentalismo” e o “sectarismo” em que, por vezes, caem estas realidades.
A entrevista é de Darío Menor, publicada por Vida Nueva Digital, 04-08-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Quantos fundadores e fundadoras de novas formas de Vida Consagrada estão sendo investigados pela CIVCSVA neste momento?
Tendo em conta as novas realidades ou formas de vida consagrada que se apresentam com algumas notas de novidade em relação às reconhecidas no Código de Direito Canônico e sobre as quais a nossa Congregação tem competência (há outras realidades que dependem do Dicastério para os Leigos, Família e Vida), neste momento temos cerca de dez fundadores e fundadoras que estão sendo investigados pela Santa Sé. Na maioria dos casos, são associações a caminho do reconhecimento canônico.
A estes devem ser acrescentados alguns institutos já reconhecidos como tal e cujos fundadores e fundadoras também estão sendo investigados, e o número está aumentando significativamente. Tudo isso sem contar aquelas realidades pelas quais, depois da investigação, nossa Congregação procedeu a curá-los ou, em alguns casos, a suprimi-los. Deve-se notar também que houve alguns casos em que, após a correspondente investigação, o Fundador deixou a Vida Consagrada ou o Fundador foi reduzido ao estado laico.
Como essa situação acaba?
Como é fácil compreender, tudo isso prejudica muito a Vida Consagrada e a própria Igreja. Portanto, muito mais atenção deve ser dada ao discernir a necessidade, conveniência e utilidade para a Igreja ao aprovar associações no caminho do reconhecimento canônico. Essa aprovação é um direito dos bispos, mas também uma grave responsabilidade. É urgente discernir a autenticidade de um carisma.
A Igreja oferece critérios claros e precisos neste discernimento. Entre outras, gostaria de destacar: a comunhão com a Igreja, a presença dos frutos espirituais, a dimensão social da evangelização, a estima pelas outras formas de vida consagrada na Igreja, a confissão da fé católica (cf. Iuvenescit Ecclesia, n. 18). Infelizmente, é preciso confessar que, às vezes, é difícil descobrir a autenticidade e a originalidade de um carisma em algumas realidades.
Quais são os motivos mais comuns para essas investigações?
Os motivos são geralmente de três tipos, que por vezes ocorrem ao mesmo tempo: problemas na gestão do patrimônio do instituto para ganho pessoal, abuso de poder ou abuso espiritual (abuso de consciência, plágio...) e problemas relacionadas à afetividade. Deve ser lembrado aqui que por abuso entendemos qualquer violência psicológica, física ou sexual que ocorra em um contexto religioso, ou também qualquer manipulação que prejudique a relação de uma pessoa com Deus e com seu próprio ser interior.
O abuso espiritual a que se referia é comum?
O abuso espiritual ou de consciência costuma ser mais frequente do que você imagina. O Papa Francisco define isso como assédio espiritual, manipulação de consciências, lavagem cerebral. Este tipo de abuso geralmente ocorre em áreas de direção espiritual ou dentro de uma comunidade, especialmente quando o fórum interno não é diferenciado do externo. Em termos gerais, podemos dizer que é um abuso de “clericalismo”, sabendo que tal abuso não é apenas típico do clero, mas também ocorre em pessoas com autoridade, sejam homens ou mulheres.
E quanto ao abuso sexual?
Geralmente, trata-se de abusos com membros do próprio instituto, mas às vezes também com menores ou adultos vulneráveis. Talvez seja bom lembrar que o abuso sexual geralmente não é o primeiro, mas sim o abuso de poder ou o abuso espiritual geralmente ocorre primeiro (cf. Papa Francisco, Aos Jesuítas na Irlanda, 28 de agosto de 2018).
Por que algumas dessas novas formas de vida religiosa tendem ao sectarismo?
O sectarismo costuma se manifestar na defesa fundamentalista e ideológica do carisma para preservá-lo de possíveis contaminações que possam vir de fora. Nos grupos em que se observa uma “tendência sectária”, favorece-se a mentalidade de que “somos os melhores”, de que somos os únicos fiéis. Isso leva ao fechamento e à elevação de barreiras de todos os tipos contra possíveis influências prejudiciais. Em grupos como este, pensa-se também que o carisma pertence aos fundadores e não à Igreja, a única que realmente pertence seu reconhecimento e seu acompanhamento.
Por isso, existem fundadores e fundadoras que se sentem acima de qualquer mediação, mesmo dentro da própria Igreja, e se consideram mestres e donos do carisma. Não se justifica, pois o documento da Congregação para a Doutrina da Fé, Iuvenescit Ecclesia (2016), já afirmava na época que existem algumas realidades que se dizem da Vida Consagrada (na realidade não são) que evitam a obediência à hierarquia eclesial ou exercer um ministério autônomo.
Em casos assim, a Igreja tem o direito e o dever de intervir para sair de um exercício desordenado dos carismas, como já fazia a Igreja primitiva (cf. 1 Cor 14, 19). Em muitos destes casos, cria-se um sentido generalizado de “perseguição” por parte da mesma Igreja. Muitas vezes a deriva sectária também vai acompanhada de uma espiritualidade muito superficial e pouco fundamentada em uma teologia saudável e no magistério da Igreja.
Pode se chegar inclusive ao fundamentalismo?
No processo de sectarismo não se deve excluir o fundamentalismo, furto de uma “ideologia que mutila o Evangelho”, como diz o Papa Francisco, e que, infelizmente, palpa-se em muitas das chamadas “novas comunidades” ou “novas formas de vida consagrada”. O fundamentalismo fossiliza o carisma. Esquece-se que, como recorda o Pontífice, o carisma é como a água: se não corre, apodrece.
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Clericalismo. "O abuso espiritual ou de consciência costuma ser mais frequente do que você imagina”, diz D. José Rodríguez Carballo, secretário da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU