"A larga trajetória e a experiência de Jaldemir Vitório deram vida a esta substanciosa obra que sabe conjugar teoria com a prática. O contato prolongado do autor com formandos o fez defrontar-se com inúmeras questões com as quais ele sentiu-se desafiado a refletir: 'as reflexões aqui apresentadas correspondem à partilha das intuições que me foram ocorrendo ao longo de muitos anos de engajamento na tarefa de formador de religiosos e seminaristas' (p. 13)", escreve Eliseu Wisniewski, Presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), ao comentar o livro "A formação na Vida Religiosa Consagrada: reflexões para uma pedagogia mistagógica"[1] (Paulinas, 2022, 280 p.), de Jaldemir Vitório.
O serviço da formação das novas gerações supõe uma pedagogia adequada que incremente a ação de Deus no coração de cada formando, onde se inscreve uma história de amor construída na comunhão com os irmãos de congregação, com que se vive a aventura de em tudo amar e servir. Tal pedagogia, marcada pelo humanismo evangélico, forja religiosos que na saída de si mesmos se lançam na busca do outro, tanto dos irmãos de congregação e de comunidade quanto dos irmãos e irmãs a quem a obediência os envia. A formação prepara para a vida em comunidade e a vida em missão, como os dois lados de uma moeda, pressuposto para o surgimento de comunidades formadas por missionários com espírito comunitário, movidos por uma fé inabalável e uma entrega de si, sem medidas (p. 277-279).
A Formação na vida religiosa consagrada: Reflexões para uma pedagogia mistagógica
Na perspectiva de criar espaço para que os elementos que compõe a formação da Vida Religiosa Consagrada sejam discutidos com honestidade e transparência, tendo o Reino de Deus como horizonte, é que está situada a obra: A formação na Vida Religiosa Consagrada: reflexões para uma pedagogia mistagógica (Paulinas, 2022, 280 p.), magistralmente elaborada pelo padre jesuíta Jaldemir Vitório – este além de professor na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, em Belo Horizonte – há muitos anos tem colaborado de variadas maneiras na formação de religiosos, religiosas e seminaristas.
O referido autor entende que “quando mais acertamos numa pedagogia mistagógica que promova a transfiguração de quem optou pelo carisma da consagração na vida religiosa mais estaremos colaborando para o advento de comunidades e congregações mais sintonizadas com o Mestre Jesus, que conta conosco na condição de servidores e servidoras dos mais pobres, seus preferidos” (p. 13-14), frente a isso, estruturou suas reflexões em onze capítulos, contemplando a relação formador-formando.
A primeira reflexão chama a atenção para a identidade e os pressupostos da Vida Religiosa Consagrada - VRC (p. 19-34), isso, porque a “pedagogia da formação tem como pressuposto uma correta compreensão da identidade e da missão da VRC.
Convém entendê-la como vivência comunitária da fé batismal com seu desdobramento missionário, pautando-se por um projeto congregacional capaz de potencializar o cabedal de humanidade trazido consigo por cada formando. Esse viés leva a compreender a pedagogia da formação como esforço de encontrar os melhores meios de possibilitar ao formando desenvolver seu potencial humano, incrementar a vivência da fé e viver com fidelidade criativa o carisma congregacional, acolhido com liberdade e generosidade “ (p. 33-34).
A segunda reflexão traz um olhar mistagógico para a formação (p. 35-71), esta “deve se tornar mistagogia na medida em que se configura como caminho de fé humanizadora, trilhado como corpo apostólico, tendo a perfeição do Deus Trindade como meta” (p. 42-43). Essa “consciência de base oferece parâmetros objetivos para se articular uma pedagogia de formação” (p. 71), onde os “encarregados da formação, ao se reconhecerem mistagogos, abraçaram a missão com a consciência de serem colaboradores da obra de Deus no coração de cada um dos que foram entregues à sua responsabilidade” (p. 71).
A terceira reflexão delineia o perfil mistagógico do formador (p. 73-96), levando-se em conta que “a pedagogia da formação exige que os formadores tenham consciência de sua identidade específica, além de clareza quanto à especificidade da VRC e uma correta concepção do que seja a formação” (p. 73). Frente a isso ter algumas balizas para a escolha de pessoas a quem incumbir a tarefa da formação mostra-se altamente recomendável.
Na quarta reflexão – “O formador mistagogo no trato com os formandos” (p. 97-140), o autor observa que a “pedagogia da formação será eficiente na condição de haver sólida interação entre formador e formando” (p. 140), onde a “mistagogia apela ao formador buscar as posturas mais adequadas na convivência com os formandos, pois lhe compete a missão de conduzi-los nos caminhos para Deus” (p. 97), atendo –se para o material humano a ser trabalhado (p. 97-105), a personalização da formação (p. 105-110), as posturas a cultivar e evitar (p. 110-127), a apresentação fiel do projeto cristão (p. 127131), o enfrentamento de casos difíceis e complicados (p. 132-137), o acompanhamento dos formandos especiais (p. 137-140).
Na quinta reflexão aprofunda a relação entre formado e formador (p. 141-159), ou seja, a “a incidência do formador sobre o formado encontra seu contraponto na incidência do formando sobre o formador, tento como influencia positiva quanto negativa” (p. 141). Vitório chama, por isso, a atenção sobre os formadores avaliados pelos formandos (p. 141-143), a abertura dos formadores para se deixar questionar (p 144-145), para as atitudes positivas e negativas dos formandos (p. 145-154), para os referenciais inspiradores (p. 154-157), e, por fim, salienta que os formandos são formadores na medida em que estabelecem relações construtivas com este (p. 157-159).
Na sexta reflexão aborda o tema da transparência na formação mistagógica (p. 161-182). O autor esclarece em primeiro lugar o que se entende por transparência (p. 162-164), observando em seguida que a transparência constrói-se como um caminho de múltiplas mãos: do formando ao formador – do formador ao formando, da congregação ao formando – do formando à congregação, dos formando entre si, dos formandos com si mesmos (p. 164-171). Faz notar que a transparência é processual (p. 171-176), é libertadora (p. 179-180), é mistagógico-missionária (p. 180-182), sendo, por isso, oportuno ater-se aos níveis da transparência (p. 176-179), que exige do formador “pensar a melhor pedagogia para facilitar a transparência em suas múltiplas vertentes no trato com os formandos” (p. 182).
Na sétima reflexão aprofunda-se o papel da equipe de formação mistagógica (p. 183-200), mais especificamente sobre: a qualificação dos membros (p. 184-185), número de membros (p. 185-186), recomposição/substituição dos formadores (p. 186-187), estabilidade (p. 187-188), diversidade (p. 188-190), relações internas, ou seja, definição clara das funções de cada membro, respeito às respectivas esferas de competência, unidade afetiva e efetiva dos membros, processo decisório participativo e dialogal, continuidade do processo formativo (p. 190-195), a objetividade e a imparcialidade no trato com os formados, bem como para as modalidades de avaliações: permanente, formal, informal (p. 195-198), o papel dos superiores maiores e equipe de formação (p. 199-200).
Na oitava reflexão examina-se a formação mistagógica no mundo digital (p. 201-222), “o admirável mundo novo digital e cibercultura, nos quais formandos, bem como formadores, estão mergulhados, levantam sérias questões para a o processo formativo das novas gerações da VRC” (p. 222), sendo indispensável “criar já nos primeiros passos na VRC, um modo de proceder, ethos, compatível com a vocação de consagrados no tocante ao mundo midiático-digital, bem como de se servir dele para a formação, em todas as dimensões e ao longo do percurso na caminhada congregacional. Será preciso, igualmente aprender a identificar as eventuais armadilhas, com suas desastrosas consequências, de modo a serem evitadas” (p. 202-203).
Na nona reflexão aborda alguns problemas para os quais o formador mistagogo precisa estar atento (p. 223-259), dentre os quais: a imagem pública dos religiosos (p. 223-228), dar e receber informações (p. 228-233), heterossexualidade e homossexualidade (p. 234-238), recurso à psicoterapia (p. 238-242), vocações de adultos (p. 242-245), vocações tuteladas/ apadrinhadas/ figurinhas carimbadas (p. 245-248), egressos de outras congregações (p. 248-251), acompanhamento de junioristas (p. 252-255), etapas do aspirantado e postulantado (p. 256-259).
Na décima reflexão, Vitório chama a atenção para a internalização de um modo de proceder mistagógico (p. 261-270), observando que “o espírito da VRC possibilita aos religiosos desenvolver seu potencial de humanidade e vier o ideal da vida cristã com radicalidade, com as mediações que têm à disposição. Muitos não ultrapassam o nível da superficialidade, mesmo sendo incentivados a crescer e a dar passos. Porém, cada religioso vê-se desafiado a interiorizar o carisma da consagração, segundo a peculiaridade de sua congregação. A consistente transfiguração pessoal se percebe no estilo de vida marcado pela oblatividade que o impele na direção de Deus e do próximo, numa comunhão sempre mais radical” (p. 270).
Na décima primeira reflexão tece reflexões sobre os frutos da formação mistagógica (p. 271-276), ressaltando que entre êxitos, fracassos, frustrações “o verdadeiro formador vê o processo formativo frutificar em seu coração, antes mesmo de constatar os frutos no coração dos formandos” (p. 275), conscientes de “terem sido fiéis colaboradores de Deus na ação de formar para a oblatividade os religiosos” (p. 276).
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A larga trajetória e a experiência de Jaldemir Vitório deram vida a esta substanciosa obra que sabe conjugar teoria com a prática. O contato prolongado do autor com formandos o fez defrontar-se com inúmeras questões com as quais ele sentiu-se desafiado a refletir: “as reflexões aqui apresentadas correspondem à partilha das intuições que me foram ocorrendo ao longo de muitos anos de engajamento na tarefa de formador de religiosos e seminaristas” (p. 13). Assim sendo, o autor entende que suas reflexões são uma modesta colaboração para formadores e formadoras às voltas com o dia-a-dia da formação “não absolutizando as afirmações encontradas no decorrer da leitura, por não terem o intuito de ser a última palavra sobre nenhum tema aqui abordado. São ideias lançadas para serem rastreadas por quem e embrenhou nesse emaranhado chamado – ‘formação da Vida religiosa Consagrada’” (p. 13).
Sabedores que os desafios da formação de religiosos e religiosas tornam-se cada vez mais complexos, Vitório insiste no papel do formador como “mistagogo” empenhado em assumir, com discernimento, a tarefa de acolher e acompanhar quem se sente atraído para a Vida Religiosa. Um formador mistagogo terá os pés bem firmados na realidade e saberá enfrentar os múltiplos desafios formativos evitando propostas ultrapassadas e posturas cheias de autoritarismo, bem como os esquemas rígidos e inquestionáveis, com soluções inócuas, anacrônicas, ingênuas.
Por essa razão, as reflexões aqui partilhadas serão “úteis para quem recebeu a missão de acompanhar os formandos de seus congregações” (p. 13), levando os “formadores a tomarem consciência de sua condição de mistagogos na tarefa de ajudar os formandos em sua longa marcha para Deus” (p. 279), e contribuindo ainda, “para a construção de consensos pedagógicos por parte dos que são incumbidos de colaborar com os formandos na exigente caminhada para Deus, em comunhão de vida e de missão com tantos irmãos e irmãs” (p. 16).
[1] VITÓRIO, Jaldemir. A formação na Vida Religiosa Consagrada: reflexões para uma pedagogia mistagógica. São Paulo: Paulinas, 2022. 280 p. (Coleção Tendas). ISBN 9786558081098.