06 Junho 2023
Existe um mecanismo automático e descontrolado com o qual os homens de fé relegam as mulheres para o segundo plano e que também está presente nas palavras do magistério. O magistério, ao idealizar a mulher, também a mantém em segundo plano. Falando de “princípio mariano” e equiparando arbitrariamente todas as mulheres a Maria, ele exclui a relevância institucional delas, reservando-a para Pedro, e equiparando arbitrariamente todos os homens a Pedro.
Publicamos aqui a carta aberta do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, 05-06-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Caro Luigi Maria, escrevo-lhe diretamente, embora não nos conheçamos a não ser por “cultura livresca”, porque me parece a coisa mais simples e mais útil, entre colegas, em um caso como este.
Nos últimos dois dias, li dois textos que você escreveu e que realmente me impressionaram e alarmaram: refiro-me a uma entrevista publicada em Alzo gli Occhi verso il Cielo e uma breve intervenção sobre a “teoria do gênero”.
Surpreende-me o fato de que você escreve não simplesmente com base em sua identidade de padre, mas também como filósofo e como teólogo, e por isso as suas palavras carregam uma responsabilidade crítica que os seus títulos acadêmicos esperam de você, assim como de todos nós.
Quero também dizer que o que escrevo depende da leitura desses dois textos citados e nada tem a ver com um julgamento sobre a sua pessoa e sobre o restante da sua atividade. Limito-me a examinar as questões que emergem dos dois textos e tento formular melhor as minhas perplexidades.
Mas acrescento desde já que considero esta oportunidade quase providencial: seus dois textos mostram um fenômeno muito mais amplo do que o que você escreve e permitem enfrentar um “déficit teológico” que atinge gravemente a nossa tradição católica recente e que implica, por parte dos teólogos e dos filósofos, uma urgente função de terapia linguística e de reflexão mais profunda. Estou convencido de que justamente quando emergem posições “escabrosas” como as suas estamos sempre diante de uma passagem útil para o crescimento comum e para a elaboração de uma visão mais madura e mais equilibrada.
Inicio pelo primeiro texto, que é uma entrevista sobre o seu livro “Le affidabili” [As confiáveis]. Nessa entrevista, você faz algumas afirmações de grande estima pelas mulheres, defendendo que “elas são mais confiáveis do que os homens”, referindo-se a Maria, à Adúltera, à Samaritana, a Judite. Porém, quando a pergunta não se volta mais para a descrição das “personagens bíblicas”, mas para as mulheres contemporâneas, você se mostra “incomodado”. Retomo literalmente essa passagem, sobre a qual gostaria de me deter:
“A grande polêmica sobre o papel das mulheres na Igreja me incomoda muito, porque é como se tivéssemos que dar espaço para aquelas que têm todo o direito de considerar que já têm esse espaço e o conquistaram por meio dessa confiabilidade de que eu falava antes. No livro, eu usei uma imagem. No fundo, quando olhamos para um quadro, somos atraídos pelas figuras que estão na primeira fila, mas na realidade essas figuras só são compreensíveis porque há um pano de fundo às suas costas, que dá significado aos personagens da primeira fila. Pois bem, as mulheres são o grande pano de fundo de sentido dentro do qual nenhum personagem que está na primeira fila poderia encontrar significado, senão por meio delas. Atrás dos grandes homens da Bíblia, sempre há grandes mulheres. Na Igreja, os acontecimentos mais importantes sempre tiveram figuras sábias como pano de fundo.”
O incômodo que você sente derivaria, pelo que você diz, de uma “demanda de espaço” que você não entende, porque pensa que esse espaço já é atribuído às mulheres, na forma metafórica de um “espaço de pano de fundo”, que dá sentido a cada “personagem da primeira fila”.
Essa imagem que você usa (entre o primeiro plano e o pano de fundo) é a tradução metafórica daquilo que a Igreja afirmou por muitos séculos, identificando um “específico feminino” na esfera privada e deixando aos homens o “primeiro plano da esfera pública”.
Mas você deveria saber que a “grande polêmica” que o incomoda e que certamente não pode aceitar essa sua visão entrou na Igreja Católica não apenas pela grande elaboração que, a partir do século XIX, muitas mulheres fizeram no nível cultural, social e científico, mas também porque um papa, João XXIII, chamou oficialmente a “entrada no espaço público das mulheres” como um dos sinais dos tempos com o qual devemos fazer as contas. O incômodo de que você fala é uma crise de crescimento, que nos impede de continuar raciocinando com o esqueminha “mulheres no privado, muito confiáveis, mas invisíveis e sem autoridade – homens no público, menos confiáveis, mas visíveis e dotados de autoridade”.
A sua reação, que se completa na resposta à última pergunta, na qual você confessa sua dívida afetiva em relação à sua avó, mãe e irmãs, é exemplar de uma cultura muito unilateral: as mulheres não são apenas “confiáveis e afetuosas”, mas também são sempre mestras, autoridades, teólogas, prefeitas, taxistas, juízas, músicas, diretoras... elas têm recursos de autoridade e de “primado” que o seu discurso, direta e indiretamente, se apressa a negar e teme como um perigo.
Seria específico da mulher estar “destinada” a essa confiabilidade de fundo. Você não vê, mas essa é a “cultura do descarte”. Aqui, a meu ver, suas categorias teológicas e filosóficas não estão de forma alguma à altura de um “sinal dos tempos”, mas permanecem atrás e alimentam aqueles “complexos de superioridade” que a cultura católica há 60 anos deveria sentir a tarefa de superar.
No entanto, esse constrangimento nos é útil, porque nos leva a descobrir como esse mecanismo automático e descontrolado, com o qual os homens de fé relegam as mulheres para o segundo plano, também está presente nas palavras do magistério. O magistério, ao idealizar a mulher, também a mantém em segundo plano. Falando de “princípio mariano” e equiparando arbitrariamente todas as mulheres a Maria, ele exclui a relevância institucional delas, reservando-a para Pedro, e equiparando arbitrariamente todos os homens a Pedro.
Isso não desculpa as suas afirmações, mas as contextualiza e torna ainda mais necessário abrir um debate sério sobre os mecanismos com os quais nós “blindamos” uma marginalidade feminina, justamente ao lhe reconhecer um primado na confiabilidade.
Como você bem sabe, essa é também a estratégia de um dos documentos que inaugurou o posicionamento do magistério católico naquela que você chama de “grande polêmica”. Com efeito, na declaração Inter insigniores [sobre a admissão das mulheres ao sacerdócio ministerial], encontramos a seguinte afirmação:
“‘Os sinais sacramentais, diz Santo Tomás de Aquino, representam aquilo que eles significam por uma semelhança natural’. Esta mesma lei da semelhança natural tem valor tanto para as pessoas como para as coisas: quando se torna necessário traduzir na prática sacramentalmente o papel de Cristo na Eucaristia, não existiria uma tal ‘semelhança natural’, que deve existir entre Cristo e o seu ministro, se a função de Cristo não fosse desempenhada por um homem: caso contrário, dificilmente se veria no mesmo ministro a imagem de Cristo. Com efeito, o próprio Cristo foi e continua a ser um homem”.
Tomás, porém, nunca disse isso. Se analisarmos onde se encontra a citação de Tomás, descobriremos que a expressão citada pela Inter insigniores aparece no “Comentário às sentenças de Pedro Lombardo” (Super Sent., lib. 4 d. 25 q. 2 a. 2 qc. 1 ad 4) e faz parte de uma resposta à discussão, que não diz respeito à ordenação da mulher, mas sim à do escravo (o artigo 2, de fato, se intitula “Se a escravidão é um impedimento à recepção da ordem”). O texto da citação na íntegra, que é muito curto, diz assim:
“Ad quartum dicendum, quod signa sacramentalia ex naturali similitudine repraesentant; mulier autem ex natura habet subjectionem, et non servus; et ideo non est simile” (Os sinais sacramentais manifestam uma certa semelhança natural, mas a mulher tem a sujeição por natureza, enquanto não é assim para o escravo. Por isso, não é semelhante.)
Como é evidente, a referência à “similitudo” não diz respeito em si mesma à “semelhança masculino/feminino” em relação ao Senhor, mas sim à semelhança na “condição de escravidão”, que o escravo tem por contrato ou por convenção, enquanto a mulher tem “por natureza”. Uma “escrava por natureza” não pode de modo algum representar o Senhor!
A pretensão com que a Inter insigniores quer mostrar que o sexo feminino está excluído da representação de Cristo procede de acordo com uma leitura preconceituosa do feminino, cuja característica decisiva não é a confiabilidade, mas sim a sujeição e a falta de autoridade. Esse preconceito me parece estar fortemente presente no “incômodo” com que você não consegue reconhecer nenhum valor àquilo que João XXIII, há nada menos do que 60 anos, identificou como um “sinal dos tempos”: ou seja, o fato de que “mulieres in re publica intersunt”.
Pode incomodar, mas é com isso que o filósofo e o teólogo devem se medir. E, por mais que se fale de confiabilidade, ainda que com razão, se não nos defrontarmos com o exercício da autoridade, não prestaremos um serviço à razão teológica e à dignidade das mulheres.
Parece-me que uma última nota é devida ao segundo texto que citei no início, no qual você apresenta a “teoria de gênero” de um modo totalmente caricatural. Mas isso não me surpreende. Se você não consegue compreender que a consideração teológica da mulher não pode partir dos preconceitos sociológicos e culturais com os quais a pensamos como um “homem defeituoso”, como uma “escrava por natureza”, que não podem ser remediados pelo reconhecimento da confiabilidade – que pode conviver com aqueles preconceitos e, de fato, os confirma –, evidentemente você só pode olhar de modo catastrófico para a elaboração da categoria do “gênero”, em que as dimensões biológica e cultural se fundem de forma mais complexa do que pensávamos até hoje.
Desse modo, parece-me que você não consegue compreender que aquilo que você liquida como uma “experiência do mal”, na realidade, é uma delicada e preciosa reelaboração da relação entre identidade e diferença.
Certamente, a teoria não está isenta de problemas e de limites, mas não pode ser julgada de forma sumária e precipitada como uma “experiência do mal”. É precisamente o “sinal dos tempos” da mulher no espaço público que torna necessária uma “teoria de gênero” que não seja achatada em uma leitura essencialista do feminino. Como se o perfil cultural e social pudesse derivar simplesmente de um dado natural.
Esse modo de entender as diferenças é simplesmente uma forma para defender os próprios preconceitos. É por isso que você pode escrever esse texto, que me parece dominado por um preconceito tão pesado a ponto de ser fruto de uma abordagem fundamentalista, que eu custo a correlacionar com a sua formação filosófica:
“Em todas as épocas históricas, o mal se manifestou de diversas maneiras. Neste momento histórico, a modalidade mais específica pela qual o mal se faz presente e age certamente é a teoria de gênero. No entanto, quero logo salientar que, ao dizer isso, não estou me referindo àquelas que têm uma orientação homossexual. O Catecismo da Igreja Católica nos convida, de fato, a acompanhar e a cuidar pastoralmente desses irmãos e dessas irmãs. Minha referência é mais ampla e diz respeito a uma perigosa raiz cultural. Ela se propõe implicitamente a querer destruir pela raiz aquele projeto criatural que Deus quis para cada um de nós: a diversidade, a distinção. Fazer tudo se tornar homogêneo, neutro. É o ataque à diferença, à criatividade de Deus, ao homem e à a mulher.”
Uma descrição caricatural da demande de identidade que é objeto da “teoria de gênero”, a demonização de uma raiz cultural e a leitura antimodernista do “projeto criatural” não me parecem palavras adequadas para o seu papel de filósofo e de teólogo. Parece-me que estou lendo o texto de alguém que fala com slogans vazios, sem ter realmente meditado sobre o que está dizendo. E isso é muito grave, justamente para um teólogo e para um filósofo que goza de um crédito do qual não deveria abusar.
Tentei raciocinar, brevemente, com parrésia, expondo as razões da minha preocupação. Espero que seja uma oportunidade para dizer melhor também tudo o que nos une, na mesma Igreja, a partir das diferenças aqui evidenciadas, como era inevitável, no diálogo necessário a toda tradição que não seja tentada a parar, mas que sabe que deve caminhar, ontem como hoje, para permanecer ela mesma.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Sobre a mulher e o gênero. Uma carta aberta de Andrea Grillo a Luigi Maria Epicoco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU