09 Junho 2023
"O formalismo jurídico não salva, enquanto as formas de vida pedem para ser interpretadas não para salvaguardar a validade do ato, mas para dar sabor e luz à experiência de seguimento e de discipulado das pessoas. Superar os automatismos sacramentais, garantidos por formalismos jurídicos extrínsecos, e restituir à tradição a sua força mais autêntica continuam sendo o fruto de um complexo equilíbrio entre reformas normativas urgentes, tradução corajosa das linguagens e reconhecimento atento de novas formas de vida", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 01-06-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma discussão justa foi alimentada por duas notícias, provenientes de âmbitos muito diferentes, mas que se valem do “saber sacramental católico” e o põem à prova. Apresento as duas questões e tento fazer algumas reflexões a respeito.
a) A primeira notícia é a de um “fato histórico” (trazido novamente à tona por um filme recém-gravado pelo diretor Bellocchio): ou seja, a história da família Mortara e do jovem Edgardo, que, em 1858, foi tirado de sua família (de fé judaica, mas residente no Estado Pontifício) para ser educado na fé católica, tendo sido batizado ainda criança, no primeiro ano de vida, em sigilo, por uma empregada, por perigo de morte. A relação entre potestade parental e batismo, com a possibilidade eclesial de contradizer a intenção da família de origem em caso de perigo, oferece um nível de reflexão muito interessante e urgente ainda hoje.
b) A segunda notícia é a decisão que o arcebispo de Palermo tomou com um decreto de não antecipar “normativamente” a crisma ao matrimônio, mas sim de poder deslocar a crisma para um momento posterior à celebração nupcial, quando assim o pedirem o caminho de fé do casal que solicita a celebração do sacramento e, em particular, a condição de “coabitantes” ou de “casados no civil”.
Trata-se de dois casos evidentemente muito diferentes, mas nos quais se entrelaçam claramente uma lógica “civil” e uma lógica “eclesial”, cuja coordenação não é decidida de uma vez por todas por uma linearidade imutável da doutrina e da disciplina, mas pede um acurado discernimento dos tempos, dos modos e das pessoas.
A Igreja, que traz em sua experiência uma longa tradição e que nela teve de se defrontar com “regimes civis e institucionais” muito diversos, deve se sentir chamada a especificar, calibrar e discernir todas as coisas com a devida lucidez.
A tradição sabe muito bem que o matrimônio já existia antes do cristianismo, mas poderíamos dizer que já existia antes da fé de Israel e estamos autorizados a dizer que já existia antes mesmo de Adão e Eva entrarem em conflito com Deus.
As pessoas que se casam são homens e mulheres. E a Igreja soube reler a história do matrimônio à luz da Aliança entre Deus e seu povo, entre Cristo e sua Igreja, sabendo, porém, que a aliança entre marido e mulher é, em certo sentido, mais antiga do que a Primeira e do que a Nova aliança! Assim, é inevitável que as lógicas da vida de casal e as lógicas do discipulado cristão nunca estejam perfeitamente alinhadas. Há uma defasagem que é original e que não pode ser forçada, exceto provocando graves danos.
Por isso, a história refletiu com sutileza sobre três dimensões do matrimônio que não se deixar unificar totalmente: o matrimônio natural, o matrimônio civil e o matrimônio sacramental não são a mesma coisa. Em cada um desses níveis, os homens e as mulheres põem a vida em jogo, com um nível diferente de explicitação, mas com experiências muito semelhantes e muitas vezes totalmente idênticas.
Até 1563, não havia nenhuma possibilidade de pensar (ou de realizar) essa unificação na Igreja Católica de todas as competências sobre o matrimônio. Desde então, a ideia de uma “competência geral” em todos os aspectos do matrimônio por parte da Igreja levou a muitos exageros. Entre eles, a indistinção entre “matrimônio entre batizados” e “matrimônio sacramental”. A identificação entre essas duas posições criou uma espécie de “bloqueio”, sobre o qual somos todos obrigados a raciocinar.
É a nossa doutrina que, pelo menos a partir de meados do século XIX, ao equiparar o matrimônio entre batizados com um sacramento, possibilitou que quem não tem crisma também pudesse celebrar o matrimônio, talvez remediando a falta “in extremis”, mas segundo a uma lógica não rigorosa.
O matrimônio foi concebido “sem discipulado”: hoje pagamos um preço muito caro por essa solução institucional. Por isso, hoje, pode ser constrangedor pensar em uma solução normativa diferente daquela que nos parece “normal”. Porém, é justo reconhecer que, se o ritual do matrimônio elaborou uma diferença nos “caminhos de fé”, levantando a hipótese de um rito na liturgia eucarística e um rito na liturgia da palavra, e se, paralelamente, também o Rito da Confirmação considera a hipótese de postergar a Crisma ao Matrimônio, talvez essa escolha também tenha possibilitado a evolução que sabe diferenciar adequadamente as lógicas existenciais e as lógicas do discipulado.
Os ritos de passagem existencial e as formas do discipulado cristão não se deixam equiparar facilmente, nem em nível temporal, nem em nível espacial, nem em nível afetivo. E não acredito que, na medida da Igreja de Palermo, a preocupação com a “condição de pecado” (atribuída imprudentemente aos coabitantes ou aos casados no civil) possa ser considerada a razão do procedimento, como fica claro no texto (que pode ser lido aqui em italiano).
A tradição também sabe muito bem que o batismo, sendo o sacramento que está na margem externa da Igreja (por isso ele se chama “porta”), merece um tratamento muito atento, sobretudo quando é posta em campo a possibilidade de proceder ao rito batismal sob as duas condições excepcionais (e que permanecem como tais) da infância e da doença grave.
Uma doutrina clássica sabe muito bem que existe a possibilidade tanto de batizar os recém-nascidos quanto de batizar quem se encontra em perigo de morte. Em ambos os casos, no entanto, o batismo não pode ser um ato puramente passivo. Deve haver pelo menos a declaração de “querer o batismo” ou de um ato de fé “in persona pueri”, realizado pelos genitores da criança ou pelo próprio sujeito antes da doença grave.
Unir ao mesmo tempo o pedobatismo, a causa de necessidade e a falta de consentimento dos genitores constitui, sem sombra de dúvida, um ato ilícito: não pode ser segundo a justiça de Deus se não consegue ser segundo a justiça dos homens. A “salvação da alma” não pode ocorrer institucionalmente contra a vontade do sujeito ou da família na qual nasceu. Isso só pode se justificar se permanecermos ligados a uma “societas inaequalis”, na qual a liberdade de consciência não é reconhecida como base substancial das relações sociais e religiosas.
Infelizmente, devemos reconhecer que, em nível normativo, a Igreja Católica conserva traços evidentes e muito embaraçosos de uma cultura da “societas perfecta” que não é mais compatível com a dignidade dos homens e das mulheres. Isso enquanto tivermos no Código de Direito Canônico a norma assim como formulada no cânone 868, embora recentemente modificada pelo Papa Francisco. Leia-se em particular o § 2:
“Cân. 868 – § 1. Para que a criança seja licitamente batizada, requer-se que:
1.° os pais, ou ao menos um deles, ou quem legitimamente fizer as suas vezes, consintam;
2.° haja esperança fundada de que ela irá ser educada na religião católica, sem prejuízo do § 3; se tal esperança faltar totalmente, difira-se o batismo, segundo as prescrições do direito particular, avisando-se os pais do motivo.
2. A criança filha de pais católicos, e até de não católicos, em perigo de morte, batiza-se licitamente, mesmo contra a vontade dos pais.
3. A criança filha de pais cristãos não católicos pode ser licitamente batizada se os pais ou pelo menos um deles ou a pessoa que legitimamente ocupar o lugar deles o pedir e se a eles for impossível, física ou moralmente, ter acesso ao próprio ministro.”
Emerge aí uma certa atenção às diferenças confessionais, mas não há dúvida de que um ponto cego sobre a liberdade de consciência transparece com uma clareza embaraçosa. O § 2 é o resíduo de um mundo que não deveria mais tomar palavra dessa forma grosseira, ainda mais em um texto institucional e normativo para toda a Igreja Católica, que pode justificar os piores abusos.
Há comentários ao Código que se limitam a observar: “O direito à salvação prevalece sobre a autoridade dos genitores sobre os filhos”. Trata-se de palavras desprovidas do mínimo discernimento e de suficiente cultura teológica, reduzida aqui a um irresponsável positivismo jurídico. São Tomás de Aquino sabia muito bem que é “contra a justiça natural” impor o batismo contra a vontade (S. Th, III, 68, 10, corpus).
Uma competência jurídica sobre o batismo e sobre o matrimônio, que a Igreja reconhece há longa data, deve manter o sentido da proporção e honrar a condição “periférica” dos dois sacramentos. Com efeito, tanto o batismo quanto o matrimônio habitam a “periferia” da Igreja e obrigam a Igreja a também estar sempre “fora de si”: de fato, eles estão no limiar entre a vida comum e o discipulado cristão.
Os antigos e os medievais sabiam disso tanto quanto nós e talvez até melhor do que nós. Mas o expressaram de acordo com as culturas que, de tempos em tempos, estavam à disposição. Os vestígios dessas culturas do passado marcam a doutrina jurídica e teológica de modo diferenciado. Não é evidente que o direito seja necessariamente mais atrasado do que a teologia ou que a teologia às vezes não seja mais lenta em receber as mudanças que as normativas podem introduzir mais facilmente.
O certo é que um único parágrafo de um cânone, como ocorre no 868 § 2, pode mergulhar a Igreja em uma cultura da intolerância e do fundamentalismo. Assim como pode iludi-la de achar que pode “governar” a pastoral matrimonial com um complexo sistema de “condições sacramentais” para ter acesso ao matrimônio.
O formalismo jurídico não salva, enquanto as formas de vida pedem para ser interpretadas não para salvaguardar a validade do ato, mas para dar sabor e luz à experiência de seguimento e de discipulado das pessoas. Superar os automatismos sacramentais, garantidos por formalismos jurídicos extrínsecos, e restituir à tradição a sua força mais autêntica continuam sendo o fruto de um complexo equilíbrio entre reformas normativas urgentes, tradução corajosa das linguagens e reconhecimento atento de novas formas de vida.
Como a história do “caso Mortara” gira em torno de um pedobatismo, realizado às escondidas, sem o conhecimento dos genitores, por parte de uma empregada, em uma criança em perigo de morte, não se pode deixar de notar, de forma evidente, a valorização paradoxal de uma “competência feminina”, que só pode ser exercida na condição de “privacidade”, o que, há muitos séculos, habilita a mulher a ser também “ministra eclesial do sacramento”. Mas é precisamente o “fechamento privado” da concepção da autoridade ministerial feminina que mostra limpidamente seu limite: desse modo, ela consegue fazer aquilo que institucionalmente não poderia ter sido feito. Um ato “invisível” e, diríamos, “clandestino” torna-se o princípio de efeitos visíveis, institucionais, familiares e legais que decorrem “em cascata” do ato privado feminino.
É óbvio que esse sistema de equilíbrio entre “salvação da alma”, ministerialidade eclesial diferenciada e consequências jurídicas e familiares incontroláveis não se sustenta mais hoje, se é que alguma vez teve uma justificação. E talvez seja precisamente a compreensão “privada” da ministerialidade feminina uma das razões mais evidentes desse paradoxo histórico, que revela uma insuficiente calibragem do nível institucional e das relações privadas e familiares: Deus age no sigilo, e não a empregada ou o monsenhor.
Aqui um mundo inteiro mudou e deve ser repensado, com categorias evangélicas e teológicas novas, para cuja elaboração também é útil reler os textos medievais, muito mais livres e límpidos do que algumas diatribes do século XIX. O modo de entender o batismo, o dom da graça, a condição de validade e de licitude dos comportamentos eclesiais também pede à teologia uma nova responsabilidade conceitual e linguística, com a utilização de categorias menos comprometidas com aquela forma de pensar a relação entre privado e público que não é mais sustentável sem vergonha e sem escândalo.
É necessário continuar a não se envergonhar do evangelho – ai se assim não fosse –, mas sem cair jamais na indiferença apologética diante de modos expressivos e de estilos de comportamento tão violentos. Ou estaremos condenados por muito tempo ainda a confundir a grande tradição eclesial com as piores formas expressivas do ancien régime?
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Matrimônio sem crisma e batismo sem consentimento? A relação entre discipulado e instituição em uma crise de crescimento. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU